quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Rósea e rubra



A mulher rósea e rubra cuja imagem estava refletida no espelho era ela mesma. Ela mesma envolta em seus rosados e vermelhos. Em suas seduções e simulações. Ela.

Espanto.
Uma mulher. Não mais garota, não mais uma jovem. Uma mulher.
Ela era. Era ela.

Os dias estavam leves e pesados, em igual medida. A leveza era inconsciente e inconseqüente, e ela se deixava levar. Pesavam a saudade e a solidão de mulher. Onde estariam seus homens?

Sonhava com um ao seu lado, mas se reconhecia em vários. Nenhum, porém, estava perto. Apenas seus espectros sob a forma de lembranças. Apenas.

Difícil viver o luto. Luto de quem não morreu, pelo contrário: seguia vivo e reluzente, disposto e disponível para o amor. Mas não o amor dela, ou para ela, ou com ela.

Não podia tê-los todos, em plenitude e ao mesmo tempo. Ou podia? A vida, um dia, quiçá, incertezas e descaminhos, poderia premiá-la com um deles, um homem que a amasse de verdade – e que despertasse nela esse amor fulgurante –, porém a despedida dos demais doía de antemão. Porque com eles ia um mito, um rito, uma particularidade, um pedacinho de si mesma. Ela também se apaixonava pelas histórias que a uniam a eles, essa era sua especialidade incompreendida. O descaso deles pela história de casal, a facilidade com que se desfaziam do mito fundador do encontro deles e dela, a surpreendia negativamente. E a dilacerava.

Aquela mulher rósea e rubra era assim tão dispensável?
Como esquecer tão facilmente uma mulher rósea e rubra?
O espelho não mentia: por incrível que pareça, a imagem era de uma mulher bonita.
Luminosa.
Rubra – e rósea.

As perguntas surgiam ao despertar, na hora do banho, enquanto bebia água perdendo o olhar no horizonte, na hora de ajeitar o lençol ou de enxugar demoradamente os pratos. E as lágrimas.

Se ela se recordava, por que eles não mais? Por que dispensavam, assim tão displicentemente, a passagem dela por suas vidas? Como apagar de sua memória essas lembranças? Porque ela ficava com as doces, seu inconsciente era diabético e dispensava amarguras e azedices.

Os cheiros de pães e tortas recém-saídos do forno a comoviam tanto quanto a visita fugaz de beija-flores pela manhã. Rósea, a mulher se enternecia com os entardeceres. Rubra, tentava lidar com os pedidos de seu corpo – este que faz sua seleção natural e sensorial com base nos que por ele passam. E dos últimos não se esquecia.

A dor de mulher de uma mulher rósea e rubra é superlativa e poética. Parece um rio de sandices e loucuras deliciosamente prometidas, porém não concretizadas. O amor dessa mesma mulher segue desconhecido: ninguém ainda se aventurou a prová-lo, nenhum homem se arriscou a lançar-se nele –temeroso, talvez, de tornar-se eternamente dependente de tamanha intensidade e jamais ali sair.

O ventinho suave levou consigo um suspiro quase abortado desse peito feminino e maiúsculo.
O espelho, contudo, não deixava escapar mais que o róseo, mais que o rubro daquela mulher inteira. Inteira.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

::: chispa! ::::

Para Leo, porteño querido



La lluvia no paraba y yo me sentía aún más preso.
Preso a la vida y a mis compañeros, como un poeta brasileño* había dicho cierta vez.
Preso a mis discursos de siempre, ella me había dicho.
Se había dicho demasiado.
También yo ya había dicho tanto… siempre diciendo tanto.

Pero aún preso.
Ahorita la culpa era de la lluvia, ayer era la jefa, mañana sería el jefe, siempre ellos. Siempre gente ajena los culpables. Los capitalistas, el mercado, gobiernos y empresarios, los despiertos y los ignorantes. Culpable… Yo mismo, en verdad. También eso yo ya me había dicho. También eso…

Pero había una chispa. Una chispa fuerte, caliente y bella.
Una chispa encendida aún que yo no me diera cuenta. Una chispa de algo grande, que yo había tocado y todavía no comprendía. Una seguridad de que no estaba solo y de que no era un chiflado por mis sueños revolucionarios, por mis ganas de cambios, por mis deseos de volar y volar y volar cada vez más lejos de la explotación de corazón y mentes que mi inocente sensibilidad captaba. Volar y volar y volar cada vez más cercano de mí mismo aunque fuera acto doloroso, más cercano de mis compañeros aunque eso me exigiera una tolerancia para la cual todavía no me encontraba listo, volar y volar y volar en acto puramente creativo sin someterme a las reglas-arregladas-de-una-sociedad-aburrida-y-pasiva.

Yo me había dicho eso? Sorpresa.
Y la chispa, la chispa crecía y me rellenaba de fuerza.
Pero los cárceles de la vida cuotidiana… mi miedo, mis miedos todos, la maleta de sentimientos antiguos, de antiguos intentos…
La chispa, la chispa.
Y mis pies ligeros, pies calzados de Havaianas blancas, pies de paz, de sueño.
Pies que no tenían miedo! Mis pies!

Caminemos, entonces. Y juntos caminamos un poco. Minutos, horas, días, semanas, no importa. Caminé. Los tres tomos del Capital de Marx que no pesaban nada en mis brazos, porque eran los brazos míos… Ella estaba allá, ellas estaban, ellos también, mis compañeros...

La lluvia.
Esa lluvia que no apaga la chispa, porque la chispa está. Simplemente está. Nadie ni nada la apagará.
Salgamos a la lluvia, ella dijo.
Si fuera hoy, le contestaría sí. O mejor: ni contestaría. Saldría. Simplemente saldría. Y volaría aún más alto, por no sentirme sólo. Por no sentirme encerrado. Por sentirme acompañado. Por sentirme caliente de esperanza y energía.

No más dichos. Actitudes ahora.
Mi sonrisa ya me llevaba para otros cantos…


* Carlos Drummond de Andrade

Gol de Azúcar

al Cristian


Yo veía la película mientras comía una tarta de limón. O, tal vez, mientras sorbía el dulce de la tarta de limón, intentaba volar en la película de nostalgias y sueños. Unos más melados que los otros, con más o menos crema, y el gusto del limón a veces discreto, en otras imperativo. Buscaba a algo además de la tarta, de la película, de la vida cotidiana que me rellenaba cuando yo no me sentía exigente. Buscaba a tí, perdida entre plantaciones de caña de azúcar y deseos distintos y diversos. Te perdía, aunque estuviera tan despierto. Te encontraba, cuando así mismo me daba cuenta de que había soñado.

Tú paseabas por La Habana entre balcones y bicicletas con tu camiseta de equipo de fútbol. Tu siempre en el tuyo, distribuyendo sonrisas al mar, al Malecón, a las olas y a los holas que venían sin cualquier pudor. Eras tú, estaba seguro, pero tú no me seguías ni tampoco me mirabas. Eras tú, tu sonrisa, tu caminar bailado y dulce. Pero yo me veía amargo. No por mí, pero por el vacío que tú dejabas mientras caminaba: pues te alejabas. Pues te alejabas demasiado. Y los balcones se quedaban más largos y me impedían de mirarte aún más, de acompañar tu brillo. Tú jamás me has vuelto tus ojos. Cómo si fuéramos de equipos distintos y tú necesitabas alcanzar tu reto a fin de dominar el partido. Como si fuéramos. Pero yo aún me creía tu hincha, tu admirador.
Tú, siempre. Y linda.

Después la escena se fue a un campo de caña de azúcar, y tú te perdía entre las plantas, y yo te perdía entre las plantas, y había mucha gente trabajando ahí. Ya te habías cambiado, no vestías nada, eras simplemente tú y tu brillo, pero yo ya no te encontraba.

Y el dulce de la tarta, dulce de caña de azúcar de mis pensamientos.
Y la película de nostalgias de lo que compartimos y de lo que tampoco compartimos.
Yo entre ambos, pero tú no conmigo. Era un sazón que yo buscaba hace tiempos… y que todavía busco. Lo sigo buscando.

retorno

Tem uma estranheza no retorno que eu mal entendo e não como, porque não parece maduro. Suspiros novidades entranhadas em meu ventre, porém não reconheço as ruas, as esquinas, os semáforos tão manjados eles todos, todos eles. Não esperava nada e tampouco o que não esperava veio. Porque já não sei se existe ou foi brincadeira do futuro, soprando-me piadinhas e promessas de eternas novidades.
Não me aborreço com a chuva e com a falta de sol, porque o cinza já não me incomoda tanto quanto antes. Se saímos para regressar, regressamos para sair?
Ainda em dúvida quanto à vontade de compreender a estranheza, apenas vivo, estou, respiro, como, durmo e vou ao banheiro. Me transformo em célula nadadora, espreguiçando-me no interstício e alcançando companheiras para uma partilha de descobertas. Mas o tempo traz seu truque: as velocidades não são as mesmas. Descompasso, um monte de passos. De repente, uma solidão de indivíduo. Que sempre foi minha, contudo que tanto se transformou quando eu realmente estive só. Talvez doa a solidão do lar que se pressupõe repleto de queridos e queridas, amigos e amigas, gentes tateáveis e reconhecidas desde longe, ainda que os olhos tenham ficado um pouco mais cansadinhos.
Tem uma estranheza nesse retorno que eu não queria, mas sabia que precisava por um não sei quanto de motivos e motivações. Tem um sentido que só brilha quando não estou aqui, mas sim lá. E que, e que. Quem me dirá o quê? O cotidiano pesa e se faz inclemente nas minhas necessidades mais básicas: transcender.
Esse será, portanto, o próximo aprendizado.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

BATIDA DE UM CORAÇÃO

para a querida amiga Ana Paula Minehira


I.

Tiroteio
Trânsito carros bancos santos praças
Camelôs camelos túneis montanhas sanhas
Dinheiro ganância estilhaços cansaço
Apelo
– não, por favor –
Um tiro
Corta cabelo corta cabeça catapulta
Arma na mão algemas no chão dignidade
Medo barulhos escuro ódios perdões
Senões
– por favor –
Outro tiro
Respiro reféns nenéns somas comas
Corrida carreteira desespero destempero
Planos fugas fumos insumos suspeitos
Pleitos
– e se...? –
Três mortos, onze feridos, e os bandidos.


II.

Um policial que sabia realizar partos emergenciais. Soldado Lamas.
Um motoqueiro chamado Leandro.
Um criminoso. Que tinha nome.
Três cruzes pregadas no asfalto seco e gélido de um chão manchado de sangue.
Chão que já não é mais de ninguém.
Qual? Quem?

Bancários e clientes de uma agência bancária.
Mulheres numa casa da zona norte.
Um carteiro, um estudante.
Uma mãe e sua filha ao volante.
Os tiros, os olhos dos homens alucinados
A fuga, a fuga agonizante.

– Quero seu carro.
– Quero minha vida.

Um instante, quem sabe o quê da vida e das horas?,
O tempo é quem decide.
Meu Deus, é Deus,
Não somos nós,
A quando pertencemos?
Lágrimas com susto com medo com desespero
Com alívio com generosidade com agradecimento
Com alento com momento com sentimento.

Estamos vivas, oh,
Quanto vale a pena.

E a vida o que é, cantava Gonzaguinha,
– nada de tiros –
Ela é a batida de um coração!


III.

Nasci de novo e descobri que amo.
E que quero preciso vou
Dizer às pessoas que amo
Que eu as amo.
Porque o tempo da gente
Cabe no instante entre uma batida do coração
E outra.
E esse tempo não nos pertence.
Amém.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

~ ~ ~ mareo ~ ~ ~

Sentía un mareo
Y por allá no había mar
Pero dentro de sí
Un oceano revuelto
Y estrellas fugaces
Le arrastraban entrañas
Hacia adentro.

Cuevas. Lagunas. Sin olas.
Estaba extraña.
Mareo.

Cuentan las escrituras
Que Salomón fue juez de una decisión:
Un niño entre dos mamás.
Y les hizo justicia a todos.
Hay siempre que eligir…
Viento, venga viento.
Por que no dos corazones
En vez de uno así tan dividido?

Mareo
Si pudiera parir desde dos úteros,
Si pudiera sembrarse de sol y de luna,
Si fuera todo tan más simple y sencillo,
Si fuera...
Ella tal vez se iba.


Se iba al encuentro de aquel
El que le cantaba a su alma
Y le hacía sentirse continente,
Espejo de sus propias rutas
Llegada de sus tantas búsquedas.


Era cierto, entonces, mareo.
El faro le apuntaba el horizonte.


Mar suave,
Oscuridad con brillo, cielo sin nubes. Sonrisas, siempre.
Y en nueve meses
Las olas volverán a echar saludos!

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

::: HOGAR :::

(MFV, 2008)


A los amigos de la EICTV
Y a todos que han pasado por mi vida en ese viaje, permitiendo que yo también hiciera parte de sus vidas


Ya había unos minutos que observaba la hormiga. Tonta esa hormiga, pensaba. Y suspiraba aún más fondo y profundo. La criaturita se movía alucinadamente por la toalla lila, dando vueltas al platillo ya agotado de servicio: solamente unos restos de comida y una servilleta con marcas de pintalabios. Sácame de aquí, casi le pedía él a una de ellas. ¿Qué quieres, tarada? ¿Contarme tus secretos o saber de los míos? La respuesta jamás vino: su dedo feminino tiró la pobre hormiga tan lejos cuanto estaban sus pensamientos. Miedosa, le dijo, como consuelo a sí misma por tal demostración de fuerza sin necesidad. Y puso en el platillo más una servilleta cargada de pintalabios. Basta de sonrisas por hoy, quisiera besos. Los de él. Pero él estaba, pues tan inesperado, aún lejos en tiempo y espacio. Quizás no estuviera en corazón, pero… ¿quien sabría?

La vida subitamente se cambiara en una sucesión de escenas de sueño y de epopeya, de poesía y de entrañas, rellenas de sentimientos fragmentados y pura pulsión de vitalidad. Se sentía títere en las manos de un creador demasiado inventivo, lanzando al mundo un personaje tan inverosímil cuanto atractivo. Que era ella, aunque el espejo enseñara una mujer como cualquiera, con mejillas rosadas y cabellos finos, ojos atentos y las sonrisas que le venían con mucha facilidad. Que era ella, aunque le costara creer que vivía todo aquello de una sola vez. ¿Un poco más despacio, se puede?

La mañana le traía paisajes de India, ay, que tiernos los recuerdos, y el sonido dulce y bello de la cítara. Estrellas fugaces, flores que duran un solo día. Por la tarde, historias que los gobiernos insisten en botar a la basura: masacres, luchas por la dignidad, ciudadanía olvidada, esperanzas destruidas en las venas y órganos de un El Salvador que jamás vino. Y no vendrá. La Palestina le surgió por la noche, más delgada que lo habitual, insistiendo en las dificultades de saltar los muros todos que alejan las gentes y los destinos y los diálogos. Ella quería silencio. Para estar simplemente. Para llamarse a sí en el mundo de adentro, traerse de la vida invisible que era tan suya. Porque ya era parte de la vida de todos, de una vida comunitaria, dónde cada uno es un farolito indispensable en la larga procesión de pequeños o grandes luceros. Ella no podía faltar. Ella tampoco quería faltar.

Hiciera ya unas cuantas travesías. Se acordaba de la mítica puente en Mitrovica, aquella que separaba el viejo país del nuevo. De un lado, las montañas impasibles, rencores en una capital siempre en la defensiva, un pasado que ya no se podía olvidar. De otro, el sabor de las novedades, plata fresca en circulación, nuevas banderas para antiguos problemas. Trozos de guerra fría, de ex Yugoslavia. Por la ventana, la Historia pasaba demasiado rápido. Sus intestinos digerían mitades, pues los enteros se ponían muy, muy grandes para una pronta comprensión. Pensaba incluso en un hecho formidable, había conocido dos fauces de una misma Macondo: la Nicosia turca, o sea, la Lefkosa chipriota, y una muy amable Bejucal, parte de una Cuba de millones de fronteras. Fronteras que hasta hoy le hacían eco. Macondos que la llamaban de amiga.
Amiga.

¿Dónde estaría la pobre hormiga? Buscaba ahora apoyo para sus largos suspiros. ¿Quien era ella ahora? Se reconocía en tantos rostros, en tantos deseos, en tantas preguntas y en no sabía cuantas esperanzas. Ya no cargaba una única nacionalidad, pertenecía a muchas tierras y a muchos pueblos, expresaba en sí las contradicciones de un mundo torcido y perdido, aunque estuviera ella encontrada. A los pies del Volcán Poas, en el casi-verano costarricense, los hallazgos se pusieron en paseo desde su alma. Se había quedado impresionada. Creciera demasiado. Muy grande, ya no cabía más en las ropas antiguas o en el barquito de otros tiempos. Las alas se le habían alargado y siempre se encontrarían pintalabios para colorir aún más sus sonrisas que no terminaban de surgir. Otra servilleta en el platillo ya dormido, y más otra, otra más. Pero ahora estaban llenas de lágrimas las servilletas. Y esa lluvia que llovía dentro de ella no era tristeza. Al revés. La ruta desconocida parecía no tener fin, eso era bonito, muy bonito, y el retorno ahora la llevaba hacia dentro de si misma. Se reconocía su propio hogar y no sentía más frío. Que siguiera volando, entonces. Desde y para su hogar.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Tenho um vulcão

Quando me deram a notícia,
eu corria atrás de sonhos:
--- Você tem um vulcão aí dentro.
Nem susto nem surpresa, talvez um pouco de pressa:
--- Quando vai despertar?


Pensava eu que tinha um útero
ou um coração, mas não:
essa fonte de tanta intensidade era
-- com beleza particular -- um vulcão.


Lava quente, espessa e úmida
entranhava por minhas veias, por meu corpo
eclodia ganas e indignações
volúpia, chuviscos e ternura
aos poros, aos olhos, aos lábios:
demasiadas sensações.


Carregava, agora sim entendia,
um calor, uma erupção constantes
que um chamava de libido,
outro de bem-aventurança,
outro ainda de coragem.
Na fantasia, chuva de verão entre os trópicos falantes;
rárárá...


Era nada mais que esse vulcão, portanto,
entre as costelas e os intestinos,
entre meu silêncio e minhas verbalizações,
em algum lugar, entre meu tudo e meu nada.
Criadora, criatura, sou eu
e de um vulcão.


Chama!

CONCEPCIÓN


Al querido C., gracías por la inspiración



El desayuno, un diálogo

entre pan y mantequilla

más que una palabra,

un deseo,

quizás una ciudad hija de unos cuantos países,

la semilla pide para existir:

-- ¡ay, que casi vuelo!


La mirada.

Hubo sonrisa, hubo risa

Día antes, manos juntas,

un rápido y distraído cariño:

-- enserio o bromeas?

"Te bautizo humana, mariposa, gaviota..."


Desde el pecho lleno de quereres

El corazón ferviente de ideas

-- ¡un suspiro!

y cantos venidos desde el útero hambriento

y de la boca rellena de amores

¡ Ah, eres fruto de tu tierra y de tu gente!


Entre vales y montañas,

cuantos pasos, cuantas alas

entra un rayo de luz

-- sea flujo, sea abstracción --

y se da la magia:

la concepción.


sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Achados e perdidos



Outro para o T., que me fez (positivamente) aprimorar meu olhar


À primeira vista, um estranhamento. Atração e concorrência. Ambos isso, ambos aquilo na fantasia deles. Uma aspereza, uma pseudo-raiva, uma falsa quase-repulsa, um encanto. Era medo, era o quê? Até que, sob o reflexo da luz artificial na piscina, a epifania: Lucia e o Sexo, o filme, latejante nas mentes cinéfilas e nos corpos calientes de todos os runs, de todos os rumos. Coqueiros, estrelas, Cuba. Eram apenas eles dois, na Cuba deles, achados e perdidos.


Veio, então, o segundo olhar, outros encontros, tentativas de entrega e de entendimento. Havia uns descompassos, uma rudeza da parte dele, uma atitude sensível porém grudenta da parte dela, mas a vida fluía por meio de seus beijos e olhares. Fluía. Dava a sensação de brotar como flor. Arriscavam-se, do jeito deles, no equilíbrio do bem-querer.


Um dia, choveu. Choveu e esfriou, embora o ar seguisse abafado e denso. Ela sentiu que algo dentro dela, de vidro e tão frágil, acabara de se partir. Doeu, doía. Tentou refazer as formas, capturar o sentido e o sentimento. Contudo, o ar escapara e parecia impossível trazê-lo de volta. Não seria mais aquele ar. Se o mesmo havia se passado do lado dele, ela não sabia. Intuía apenas que seu barco, por algum desses mistérios insolúveis, tinha mudado de mar ou de rio, de proa ou de vento, e seguia para um lado diverso. Ela estava grande demais – e não entendia por quê.


Um dia, quem sabe, o mar, o rio, o vento, a proa, a epifania.
Uma luz artificial na piscina.
Runs, rumos.
Serão outros dois, ambos, mas também achados e perdidos.


quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Fragmentos del discurso amoroso

Para T., sólo el tiempo tiene la respuesta


I.
Estaba yo así
tan distraída, tan perdida
cuando la luna me llamó:
mira lindo, mira cálido
y ahí, entonces, ya verás.
Era un enamoramento reflejado
en las águas suaves de una pileta.
Era yo, era él
éramos, fuímos, encuentrados.


II.
Un compartimiento
de río y mar, mar y río
uno jamás sabrá:
¿para que tanta sensibilidad?
--- ¡ah, sendero desconocido!
Aunque los espinos sean muchos,
siempre valerá la pena.
Aunque.


III.
Viene verano, viene invierno,
nieve, lluvia, sol y plumas.
El jardinero no se sabe si vendrá.
La flor sigue gañando su batalla por la vida,
pero hay que darle cielo.
Cielo y sueño.
Sueño y alas.
Quizás palabras...

domingo, 10 de agosto de 2008

Olho d'água, meu

para a Marcita, feliz aniversário!


E foi quando enxerguei aquele bote
um navio um transatlântico um caiaque
asa de pássaro borboleta vagalume
podia ser cipó podia ser poço podia ser porta
ponte ponto início partida?
eu?
um abismo!

Mas o fluxo o fluxo o vento e a vontade
-- tempo de me mergulhar
mergulho? em mim?

Quis buscar as origens das águas todas
as que me transbordavam
as que me afogavam
as que me navegavam
as que me benziam
aquelas nas quais aprendi a me fazer eu

Eu...
As águas todas
Os choros e os espirros
As lágrimas e as turbulências
Minhas tempestades, meus impulsos
Desejos e sustos

Sim!

O bote
a água primordial
-- eu pensava que era a água placentária
de minhas origens pré-oceânicas,
origens de ilha, molhadas plantações de arroz,
shakuhachi brotando dos bambus,
som que sou, sou que som?
Essas águas têm música!

Delicadamente
canto som passos na floresta meio do mato ei, sô
sou quem sou
Diadorim, Diadorim, Adoniran
diamante, diademas, olho d'água!
Miguilim!
Meus olhos cheios d'água.
Meu coração aquático, Bethânia.
Uma mulherona mesmo.
Eu inteira.
Eu completa.

Sim!

No princípio de todas as coisas
Eu mesma que me esquecia
Porque a gente se esquece para se encontrar
Mas são as águas as nossas as suas as de todos
Meu olho d'água a fonte o broto o bebê a semente
Navegante de bote de ilha de flor
As águas que me lembram, que me acham

Navegante em flor
O som o cântico meu cântico
sem dó
sem ré
Puro sol, lá e aqui,
Mim

Sim!

E agora que os mares que me levem
correntezas todas
porque sei flutuar e nadar e fluir
porque sou novo oceano e novo igarapé
porque guardo doces e salgados dos sabores de água
todos os sabores
mas alguns ficam, outros vão
marés ondas navegação
desapego, aprendizado, novidades, continentes!

Contente!

Sigo sendo
Sob as bênçãos
Costurando as peças de minhas delicadezas
Numa colcha que não é só para mim nem nunca será.
Olhos cheios d'água.
Neles cabem a vida generosa e a gene de toda minha humanidade.
Olho d'água, esse meu.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Natividade

Ao doce Q., querido, querido


Quando o olhei de perfil, imediatamente notei os cílios longos e escuros. Um homem de cílios longos. Embora no início dos seus 20 anos, é surpreendentemente maduro. Podia ser rapaz, um rapaz de cílios longos, mas jamais garoto, como muitos que ainda engatinham no aprendizado da apreensão do mundo e das pessoas.

Já sinto saudade desses cílios longos, que acariciam o mundo que os olhos enxergam. Mundo de opressão, mundo de ocupação, mundo de conflito, mundo de dilemas e problemas. Mas os cílios.
Esses cílios seus.

Observo os detalhes, os dentes que escapam da arcada, conferindo charme ao sorriso largo e sincero. Os ombros estreitos, os braços finos. Cigarro. Algum gel no cabelo liso e negro. Como os olhos, as sombrancelhas, os começos de barba. Ah, esses cílios longos, esse sorriso.

Estou no início de minha navegação. Ilha Desconhecida ainda ensaia suas despedidas da baía primeira, embora já em alto mar, trata-se apenas do começo. Coração muito elástico de desejos e sonhos, mas miudinho pelo início do parto de mim mesma. Sem expectativas quanto a, pois o tempo é curto e o movimento, necessário. Mas a epifania.
O sorriso.
E os cílios longos.

Quebrando regras e muros, os dois.

Conexão imediata. Meus olhos estavam num outro olhar, na verdade, olhar cor de mel na tez morena. Enigmático esse. Porém, foram os olhos de cílios longos que me acharam e fizeram cócegas no meu olhar a fim de chamar-lhe a atenção. E meus olhos curiosos, lacrimosos naquele dia por tantas sentimentalidades, ficaram encantados.

E aqui estou eu, uma década de vida na frente, mas tão presente nesses olhos de cílios lindos e longos que confortam, acariciam e me reconhecem como uma pessoa -- inteira, faceira e primeira.

domingo, 11 de maio de 2008

Um grande sertão

Petra, Jordânia, 2007 (MF)

Lóri Capitu sai em nova jornada, desta vez longa, bem mais longa que as anteriores. "Antes precisava tocar o mundo, antes precisava tocar a si própria".
Este blog será alimentado muito esporadicamente... mas, para não se sentir abandonado e só, você pode acompanhar as aventuras de Meryem viajante em http://www.mundodemeryem.blogspot.com/.

E la nave va...

HUMUS

Bandeiras doloridas
E a coragem do não.
Sempre será cedo
Para adormecer o grande sonho.
Olhares.
Adeuses aliviados
Às guerras de trincheiras,
Agora mandam as batalhas diárias
De um tiro só.
Tudo se dilui.
Tudo... — o quê?
O vento leva meus cadernos
E revolve os fios grisalhos
Da jovem senhora.
Delírios.
O avesso dos tortos descaminhos,
Mil ruídos, mil ruínas.
A garotinha
E seu irmão
Caminham rumo à névoa
Ainda marcada pela claridade.


* O duplo sentido do título: alimento de qualquer jeito, meu sabor nos próximos 30 dias.

BRILUZ

Estupefata,
agarro-me a alguns cipós
aparentemente frágeis.
Quem serei eu, como seremos, e o mundo,
e a vida
daqui pra frente?
Bem, não passo em branco:
recolho pequenas epifanias por aí.
Sempre à luz das quatro horas da tarde.

Venha ver o pôr-do-sol

Tel-Aviv, Israel, 2007 (MF)


Selçuk, Turquia, 2007 (MF)

Mais uma jornada, mais uma travessia, mais oportunidades de seguir o sol, aonde quer que ele vá. Sou Lóri Girassol, Meryem viajante!

quinta-feira, 8 de maio de 2008

SENSATEZ

O prato com as cascas de uvas
Chupadas, deliciosamente chupadas
Uma a uma,
Estava ao lado das almofadas.
Da sala, vinha o som de um CD de Nina Simone
E a tarde era de um lilás ainda róseo,
porém quase azul.
Sonhava em pé,
Ninava-se,
Não se continha.
Ele, ele, ele...
Criava preocupações:
louça por lavar,
segunda-feira de trabalho,
contas a pagar,
um mundo onde só existissem homens comprometidos
versus mulheres celibatárias
digladiando-se, destruindo-se
– e ela seria, mais uma vez, destruída.
Ponto para os homens.
Mas, droga, não fugia!
Preocupava-se à toa: impossível,
Não se continha.
Era ele, ele, ele,
Ele vinha –
Destruía seus mais íntimos ressentimentos
E instalava-se em seu corpo, em seus poros,
Ocupava todos os seus suspiros.
Teve fome.
– A tarde mais azul
Que as uvas lilases. –
Catava os grãos esquecidos, perdidos
E os chupava, constrangida, como
Se pedisse perdão às almofadas:
Sou até mais macia que vocês.
Ele, ele, e ele?
O CD tocava à exaustão, na tentativa de reproduzir
Um som que não viria do mundo, ao menos hoje:
I love you, I love you so much...
Acordes mais altos, era sinal de noite,
Rolava pelo tapete da sala.
Apagou as luzes, mas a vida brilhava em si.
Seus lábios com sabor de uva
Murmuravam algo.
Entregou-se, cansada da fuga.
Dançava com ele, ele, ele.
Derretia-se, descascava-se,
Fazia amor, fazia calor.
Abria as janelas, suava,
Gozava.
Ele, ele, ele.
E quando ele ligou,
Era ele, dizia o celular,
Ela não atendeu – como se quisesse
Prolongar aquele prazer todo
Infinitamente, indefinidamente.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

adeus

É tempo de travessia, eu sei. Travessia no sentido mais pessoal e mais Pessoa do termo. Mas não contenho as lágrimas. Olho para meu quarto bagunçado, para o meu cotidiano espalhado sobre a cama, o carpete, a mesa do computador. A estante em desordem, o armário quase ajeitado, meus espaços, meus tão reconhecidos e conhecidos espaços, e as lágrimas pedindo liberdade dos meus olhos. Queremos escorrer até a alma, me suplicam.
Fique, você poderia dizer. Você até diz. De um jeito ou de outro, escuto você falar. Mesmo que nem se dê conta. Eu também quero ficar. Mas igualmente quero ir.
Parece simples. Outros foram antes de mim: cursos longos de inglês, round-the-world trip em casal, turismo de bicicleta, amigo morando em Paris, amiga que acabou de voltar da Austrália, outra que ficou dois anos fora e eu a acompanhei ao aeroporto. Diante de todos eles, tanto você quanto eu tínhamos a certeza do retorno. Mas... e eu? Por que eu não tenho tal certeza?
O frio lá de fora parece um frio imenso e universal. Um frio que me coloca no aconchego do lar. Meu lar. Eu, você, nós, todos juntos. Mas meu bote está na margem e me espera, o bote que eu construí, no qual pus todo meu empenho e minha motivação. E agora tenho medo de subir nele. Tenho medo de me sentir só. De estar no meio da travessia, do rio, correntes, ventanias, e me sentir só. Sem você, sem ela, sem ele. Você sabe disso.
Do outro lado da margem, nenhuma expectativa. Como você atravessa um rio sem esperar nada? Não sei, mas assim ocorre. Sinto apenas que devo atravessar. Estarei à minha espera lá do outro lado. Não sei se caberei nas antigas roupas. Se o armário será ainda aquele meu armário. Se você será você, se nós nos reconheceremos de novo.
Mas há um rio. O rio tem duas margens. O rio leva ao mar.
Talvez nosso medo, o meu e o seu, seja o de que eu jamais retorne à primeira margem. Que eu me encante de tal forma que siga direto para o mar.
Anteontem machuquei o dedo, o polegar esquerdo. Fiz um corte. Saiu sangue. Pingou no chão, doeu. Carregarei a pequena cicatriz comigo. Pois então. A gente sabe que, se eu for, quando eu for, preciso ir inteira e levar meu coração. Você vai nele, é claro. Mas ele vai comigo, meu coração vai todo comigo. Por isso também choro, de saudade, de carinho, de não poder expressar meu afeto com meus braços. De olhar, desde o bote, e vê-los na margem primeira. De ter de fazer o périplo para voltar.
Por que você não fica?, uma última tentativa.
Porque, se eu não atravessar, jamais saberei quem sou de verdade! Mas, acredite, não é fácil. Não é fácil. Não quero ser só forte agora, quero ser corajosa. E permitir que venham todos os choros, todas os cansaços, todos os enjôos, todos os suores. Porque sei que vão passar.
Você vai me acompanhar, não é?

domingo, 27 de abril de 2008

Do mundo que vejo fora da janela de meu coração. Isso também é com você!


Me cansei das reclamações fáceis, dos julgamentos apressados, de um espanto estudado diante dos fatos e dos eventos cotidianos – oh! – e de uma falsa surpresa quando as feras individuais ou coletivas saem de seus casulos-donos-aparentemente-bem-comportados para arranhar com garras afiadas e gosmentas a singeleza artificial, fria e dormente de nossa sociedade. Cansada também dessa dependência patética do dinheiro, do adiamento de sonhos em nome de um nome: estabilidade, crença frágil numa segurança que não se segura na insegurança de corações agitados ou frustrados ou confusos. Estabilidade vem de dentro, não de fora. Paz vem de dentro antes, depois reverbera fora. Gaiolas para as loucas! Prisão para os assassinos! Os políticos não prestam! Abaixo as imoralidades! A turba grita, ensandecida. Enquanto isso, os repórteres comezinhos comem os pezinhos de suas notícias por falta de espaço. Ah, estardalhaço... Discursos de novidades em confronto com arcaicas metas de lucro: esse papo eu já conheço.


Pois estou cansada, mas não sou datada, embora seja esse o adjetivo que empreguem –(quem? como? onde? quando? por quê?), que vocês empregam?, vocês? também? – ao se deparar com indivíduos de ideais. Variações de “datada”, “datado”: louco, bobo alegre, romântico, inconseqüente, surtado, passado, futurado, alterado, cheirado, metido a besta. Dia desses, amigo antigo vendo a mim em foto feliz e autêntica, eu contente como palhaço, me disse: parece uma bêbada tombando na rua. Mais um sinônimo, portanto: bêbada tombando na rua. Sou eu.

Cansada, então. Cansada de fuzuês-redemoinhos, que giram em torno deles mesmos. Cansada de palestras de jornalistas para outros, quando ninguém acredita em mais nada. Cansada das CPIs todas, que gastam nosso dinheiro e energia elétrica e roubam minutos no noticiário televisivo das boas notícias. Existem essas? Perguntemos aos preguiçosos e pessimistas e eles dirão que não. Você... você que acredite no que quiser. Você acredita em algo? Cansada do discurso pseudo-social de que ‘nenhum filme presta, então prefiro não ver nada’. ‘Teatro é chato e peça que me interessa tem global e é cara. Que música é para os outros cantarem. Vou ao museu, sou legal e tal, mas nada me diz mais nada’. Cansei desse discurso alheio a, cansadíssima dos discursos alheios... Cansei de discursos. Ainda mais porque há vômitos de dizeres, mas pensares, refletires, sentires, impressionares, olhares, abraçares, sorrires, desprendimentos e disposições, será que há?


Cansada de gente rancorosa que não colabora por pura ranhetice, que finge não escutar porque quer devolver comportamentos, que cobra atitudes quando não tem nem sentimentos a oferecer. Gente ainda presa à Lei de Tabelião. Gente presa à tabela de calorias. Gente presa, pela própria pele botóxica, às aparências. Gente presa aos “fundamentalismos de standcenter”, baratos e vendidos como se fossem posições políticas consistentes e atuais. Ah, quiçá.
Eles passarão, diz Quintana, você passarinho.
Farto do lirismo comedido, grita Bandeira sem levantar ideologias de escritório.



Travessia, brada Pessoa, que podia ser Fernando, Fernanda, Maria, Márcia, Meire, Débora, Denise, Karina, Marina, Mariana, Alexandre, Alexandra, Alejandro, Edmilson, Edison, Roberto, Rudi, Regina, Graça, Ivan, Rosana, Rita, Ricardo, Jaki, Sercan, Pablo, Paco, Peter, Lilly, Rodolfo, Irene, Liane, Ana, Ada, Hassan, Haim, Naim, Breno, Bruno, Bruna, Busi, Bora, Bárbara, Xavier, Jefferson, Jane, Josi, Cidinha, Cecília, Olga, Eugênia, Fred, Fabio, Fabrício, Sonia, Cristina, Lucas, Guilherme, Gabi, Monique, Malu, Mišo, Waleska, Lisete, Susana, Patrícia, Priscila... Pessoas! Pessoa: tra-ves-si-a. Milton: Todo artista tem de ir aonde e onde o povo está.


Mas onde estão os artistas? Cansados, não. Enclausurados? Tampouco. Estão apenas reclusos, como os grilos jovens que esperam a chuva para terra-que-te-pariu. O sol, o vento, o céu azul, a poeira, até a poluição. E zunem esses. E estatelam nas paredes para fazer barulho. Mas estatelam ainda mais nas gentes quando bradam por companheirismo. O que é isso, companheiro? Démodé? Não.


Ontem assistia a um telejornal. Notícia sem link, sem imagem, sem repórter, sem reportagem. Notícia na boca do apresentador. Durou 15 segundos. Criança foi morta por não-sei-quem em não-sei-onde. Na seqüência, 15 minutos de links, imagens, reportagens e repórteres, transeuntes, polícia, advogados, promotores, refletores de caso Isabella Nardoni. Que encontrem os culpados e lhes apliquem a punição adequada. Mas que também encontrem os culpados e lhes apliquem a punição adequada no caso da criança anônima – sem holofotes, sem destaque, anônima, mera rubrica, traço, troço – dos 15 segundos. E da outra criança anônima morta também por alguém no meio da semana, esta com 10 segundos apenas de menção, em outro telejornal, em outra cidade, mas no mesmo país. E que encontrem os culpados e que lhes apliquem a punição adequada no caso de tantas crianças indigentes indigestas deixadas mortas violentadas esquecidas mal paridas desprezadas cansadas como eu, sentidas sem valor sem vida sem comida sem estupor sem futuro só no escuro, crianças que não têm nem um segundo de atenção crianças tantas desse Brasil que me, te, os, as, nos, vos pariu. E... se os culpados também formos nós?


Pessoa! Travessia. Pessoas! Vamos.


Não fechem meu espaço aéreo. E o espaço aéreo etéreo esquecido olvidado apagado de Eldorado dos Carajás? Vigário Geral? Candelária? Irmã Dorothy Stang? Raposa Serra do Sol? Do agricultor morto esta semana lá no Pará por denunciar a ação nefasta das madeireiras livres leves e cínicas? E os mortos do Carandiru? Fecharam o espaço aéreo quando da prisão dos criminosos culpados assassinos daquela família queimada viva no carro no interior de São Paulo? A turba, a polícia, a mídia, os políticos – queremos a cueca usada do Abadía!!! Os cartões corporativos!


Pergunta: Menino, o que você quer fazer? Resposta-roleta: Ganhar o BBB ou ser reitor da UnB!
E você, poeta?
“O meu olhar é nítido como um girassol./ Tenho o costume de andar pelas estradas/ Olhando para a direita e para a esquerda,/ E de vez em quando olhando para trás.../ E o que vejo a cada momento/ É aquilo que nunca antes eu tinha visto,/ E eu sei dar por isso muito bem ../ Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras.../ Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do mundo ...” Para a eterna novidade do mundo, caro Caeiro! Nascendo-me já, descanso e não mais cansada caminho, feito girassol.


“E vivam os dólares e os euros das Olimpíadas, danem-se os monges e seus protestos, danem-se todos, iraquianos e afegãos, leio a Veja e me basto, faço sexo mas me castro, tirando a sensibilidade humana que me caracterizaria”, grita um homem de um milhão de dólares, adorado por muitos, invejado por tantos, até por uma vizinha minha, mulher de bom coração. Deus! Deus! Por que nos abandonastes? Ou fomos nós que O/A (heresia!) abandonamos para estar com nossa mesquinha pequenez tosca de auto-suficientes heróis dos tempos?



Miscelânea, você pode dizer. Faltam-lhe objetividade, português castiço, centímetros a mais nas pernas e nos cabelos, quilos a menos, isso é dor-de-cotovelo de desempregada fingindo-se de libertada, mulher encalhada e mal-amada, feia, poros abertos, cravos, cruz. Corrijo: via-sacra, sacra mas não dolorosa, dolorida mas não de sofrimento: de vida.
O que digo, o que grito, o que então?


Fiquem com seu pseudocaminhão, que eu sigo – cansada mesmo, embora tão empolgada e disposta – o meu caminho. Ao lado de Pessoa, de Pessoas, pessoando, pessoaizando, girassol, criança recém-parida, partindo para, humaníssima, irmanada, claro.

>> Quinze vezes se for necessário:
PORQUE O NOSSO CANTO NÃO PODE SER UMA TRAIÇÃO À VIDA. E SÓ É JUSTO CANTAR SE NOSSO CANTO ARRASTA CONSIGO AS PESSOAS E AS COISAS QUE NÃO TÊM VOZ!!! (Ferreira Gullar)
Nota de repúdio (dá-lhe, Meiroca!)

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Estou num labirinto. Nem feio nem bonito, nem frio nem fabuloso, um mero labirinto. Neutro. Nada ameaçador. Inevitável.

Estou no meio do labirinto, portanto. Não sei mais voltar, porque fui sem fio de Ariadne. Só que não quero voltar. Porém, em algum momento, por alguma razão, me perdi. Não tive a sensação de equívoco; talvez tenha sido um breve momento de distração, um desligar de segundos. Ou então, desmaiei tão docemente quanto um sono e achei que apenas descansava quando, na verdade, me perdia.

E agora estou aqui, perdida. Todos os caminhos parecem me levar ao começo de tudo, ao retrocesso, ao retorno ou ao ponto de partida. Será que o fim do labirinto é o recomeço? A volta ao início? Retornar para onde tudo se fez ou se formou?

Não quero mais a auto-suficiência.
Preciso de um guia, de alguém que partilhe uma orientação.
Quero achar uma saída para o labirinto.

terça-feira, 22 de abril de 2008

... e mais ou menos às nove e tanto da noite sentiu que o chão agitou-se, a mesa tremia, a cadeira balançava, ela parada e o mundo, o solo, a cidade, a placa tectônica movendo-se à revelia. era princípio de labirintite de loucura de paixonite um stress porque a ordem dos fatores alterava seu humor?

algo se movia dentro dela de tal forma que, paralisada, reverberava na cadeira, na mesa, no computador, no chão, na cidade, na placa tectônica.

a verdadeira revolução, de grandes graus da escala Richter dentro e fora do ser, revolve as profundezas puro parto partida passos pessoas e possibilidades.

e uma, de mais de 5.2 graus, estava apenas começando em sua vida de esperantos e esperanças.
epicentro: a alma. sem alarmes, mas com muita bossa. pacífica.

Ela usava óculos

Ela usava óculos. E eles já foram seus maiores inimigos. Funcionaram como a maior muralha. A barreira certeira. O esconderijo perfeito. Os reveladores, os denunciadores. Suaram muito com ela. Choraram também. Estes, agora, estabeleceram uma relação harmoniosa, serena e um tanto divertida. Folgas durante a semana, décimo terceiro salário, cuidados higiênicos, até elogios. Os anteriores sofreram; uns foram despedaçados, sem querer, com os pés. Outros, de propósito, com as mãos. Ela era ela, com ou sem eles. Mas eles só eram eles com ela.

Ele também usava óculos. Eles eram amigos, parceiros, companheiros, aprendizes. Eles guardavam seu tique, disfarçavam sua timidez-não-tímida, saíam estrategicamente de cena quando fosse tempo de deixá-lo olhar, de deixar com que fosse olhado. Ele era ele de óculos, mas sabia ser-se-a-si sem eles. Eles o queriam incondicionalmente, pois se sentiam sós e sensíveis.

Ela gostava dele de qualquer jeito. Ele não sabia que ela usava óculos.
Eles eram parecidos.
Eles também eram parecidos. Pretos, vermelhos. O dela trazia florzinhas.

Ele de óculos, ela sem óculos, logo de cara a identificação se instalou. Ela olhava sem maiores preocupações, ele olhava com curiosidade. Afetuosos e expansivos. Agrandando-se, ambos, na vida um do outro. Sem saber. Distraídos. Expostos. Nada de rótulos ou definições. Quem eram eles depois de um e do outro? Ela sentia, ele ainda tentava entender. Ela partia, ele queria até acompanhar.

Os óculos. Os dele iam e voltavam. Os dela ainda não foram revelados. Precisava?

Ela gostou do que viu.
Passado um tempo, gostou mais. Deu vontade de lhe dar um beijo. Nele, com ou sem óculos, sem pedir licença a eles. Mas nem sabia se. Como agradecimento.

Sentiu ternura. Quis passear suas flores e suas hastes vermelhas pelo rosto dele. Um milagre. Um achado. Um carinho.
Eles haviam se reconhecido! Pressentiram a existência um do outro. Espelhados, simétricos.
Ela tinha um quê de mistério, ele disse. Mas era ele quem se revelava pela metade.
Pois ele levava óculos.
Ela queria levá-lo em si.

No fim de tarde, depois da chuva, ambos redescobriram um céu luminoso e iluminado além de quaisquer lentes embaçadas.
E eram eles. E estavam ali. Inteiros, brilhantes e presentes.

Testemunhas oculares do bem-querer.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Esse Campeonato Paulista já tinha me dado bode desde as primeiras rodadas. Hoje, quando vi que havia chuva lá fora, céu nublado e friorento, constatei que faltava o vermelho sangüíneo ao meu time. Assim, quando acabou a luz aos 40 e já de quarentena, dei graças a Deus. Desliguei a TV e fui brincar de Rapunzel porque deste modo iria, ao menos, me surpreender muito mais. Ei, troquem os príncipes e os imperadores. Me achem um rei.


Na mochila, é claro, além da canarinho, segue a 10 do segundo uniforme tricolor. Bonita, bonita, bonita que só.


Entre o porco e a macaca, fico com a gata que eu sou. Miau.

domingo, 20 de abril de 2008

Câmera na mão, idéias na cabeça e tal.

Pois então me deram um olho diferente para olhar, eu que sabia só escrever. Um olho que respondia a comandos outros, que não os meus cerebrais. Que precisava de minhas mãos firmes. Que pedia minha sensibilidade. Minha perspicácia. Que me exigia atenção e presença. Luz, foco, enquadramento. Escolhas. Tripés. Microfones. Áudio e silêncio.

Olhar o mundo com uma câmera nas mãos muda muita coisa. Muda a gente, muda o mundo, materializa invisibilidades que só sua alma capta.

Cenas vieram à mente. Wong Kar-wai, Almodóvar, Sean Penn, Nuri Bilge Ceylan, Gus Van Sant, Beto Brant, Antonioni, Agnes Varda e tantos outros que me emocionam.

Agradeço à Ana, que me fez entrar nesse mundo mágico das imagens que brotam dos meus olhos, das minhas mãos, dos meus passos e do meu novo olho. Por que demorei tanto? Não sei por que contive meus ímpetos de ter esse novo olho, de registrar aquilo que meu coração já sentia de antemão. De imaginar que você e ele e ela e os outros podem partilhar, por breves momentos, do olhar que é só meu.

A câmera entrou na minha vida, largou a porta destrancada. E trouxe junto o ganzá.
Ih, ferrou!!!

sexta-feira, 18 de abril de 2008

~*~ NAMORABILIDADE ~*~

(MF, 2007, Mar Mediterrâneo)




Namorabilidade me lembra disponibilidade, me lembra mar, me lembra amora, me lembra namoro e amor. Ter tudo isso junto não é tão fácil -- acho que há muita gente que namora sem namorar, apenas para fugir da solidão triste e stricto sensu que é essa sensação de desencontro com a própria alma.



Namorabilidade também me recorda habilidade, hora e nanar: um lançar-se ao outro, aos braços do outro, partilhando no momento certo o encanto, com ternura, num tempo de delicadezas. Não acho que estejam todos prontos para isso, embora os rótulos anti-Clarice (que já avisava: "por não andarem distraídos...") sejam grudados em relacionamentos superficiais e medíocres numa vã tentativa de mentir para eles mesmos: estou infeliz, estou namorando. Ou vice-versa. Na namorabilidade cabe saudade, cabe vida. Vida de verdade, não mortos-vivos disfarçando-se de casaizinhos quando estão, na verdade, noivos cadávares atrapados a suas dores e neuroses.



Namorabilidade é para os corajosos. Porque os medrosos, covardes e banais contentam-se com os vapores baratos de um relacionamentozINHO, frisando com orgulho cheio de cólicas o diminutivo. Porque talvez fujam do afeto, fujam das perguntas pessoais e das confissões íntimas, fujam do sexo a dois (transam com eles mesmos, sempre, e para eles mesmos), não bebem na mesma taça, não dividem o sanduíche, talvez fujam das almas.




Namorabilidade traz disposição para os riscos, risadas e lágrimas. E se instala quando você já se namora. Namorabilidade pressupõe um reconhecimento de si mesmo -- de suas fronteiras, de suas montanhas e vales, de seus rios e tormentos, de suas aves endêmicas e borboletas raras. Namorabilidade tira o pavor de perder o sonho-vôo-solo e lhe presenteia com a possibilidade do conjunto.




Olhe e enxergue. Quem sabe você comece a aprender as pegadas.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Blueberry nights (ou: Hora de atravessar a rua)

O novo Wong Kar-Wai. De encher os olhos, mas sem a densidade que eu esperava. "Pusilânime", disse uma moça no banheiro, ressuscitando um termo empoeirado. Não seria o meu adjetivo... Porém, tive lá meu momento epifânico e só por ele valeu. Cito de cabeça, com a permissão dos equívocos de tanto digerir e regurgitar as frases.

Elisabeth, em certo momento, conta que vai optar pelo jeito mais demorado de cruzar aquela rua. Dito isso, parte em busca de si mesma pelo interior dos Estados Unidos. Jeremy a procura, sem sucesso, mas descobre que o problema maior não são as chaves para trancar ou destrancar uma porta: a questão é se, atrás da porta, há uma pessoa que espera.

Elisabeth também fala que, na noite da partida, chegou a estar com a mão no trinco da porta do bar para se despedir, quem sabe comer a torta, como de hábito. Mas sentiu que, se fizesse isso, estaria sentada na mesma cadeira até aquele momento e seria a mesma pessoa de quase um ano atrás. Ela não queria mais ser aquela mulher, sentia necessidade de ser outra. Por isso, decidiu atravessar a rua. Atravessar demoradamente a rua.

Um amigo chamou a atenção para minha foto da "pombinha turca", que está num post aí abaixo (Solidão de Indivíduo). A pomba parece indecisa em seguir atravessando a rua. Por que uma pomba atravessa a rua? Para ver o que há do outro lado, é a resposta. Por que a gente sai em jornada? Para ver o que há do outro lado. Para ver a nossa vida do lado de fora da vitrine, da janela, da porta, do bar, da rua.

Uma amiga me falou que não tenho obrigação nenhuma de ir até o fim, com objetivo de provar coisas, se não sentir vontade. Estou de acordo, ainda mais porque nem sei qual é o fim -- por isso, voltarei para algum ponto anterior quando e se o coração pedir. Mas o que desejo, neste momento, e isso ficou bem claro, é atravessar a rua e ver o que há do outro lado. Durante o trajeto, partilho, presto atenção nas boas iniciativas. Uma vez do outro lado, aí sim, tomo a decisão: re-atravesso a rua e volto para o lado onde estava ou sigo naquela calçada por um tempo até atravessar uma nova rua, em outra direção?

Essas são questões para as quais não tenho respostas e nem me preocupo.
Olharei para os dois lados com prudência, antes de pôr meu pé fora da calçada.

E, como Jeremy, beijarei o beijo que meu coração pedir. E não me preocuparei com as chaves, porque abrirei as portas que tiver de abrir. E, se for para ser, haverá alguém à minha espera.

Reinações de Mariazinha

( 2007, MF)


Ao Terrível, o homem mais interessante dos últimos tempos
Ao J. Dreamer, constante fonte de inspirações e afetos
À amiga de Bethania e Clarice, companheira nas descobertas epifânicas


Quando explicaram o mundo à Mariazinha, não mencionaram que a intuição muitas vezes se choca com as convenções, com as confusões no mundo interno das pessoas e com certas verdades ressecadas que, de tão antigas, parecem até uma verruga de nascença.



Mariazinha se esqueceu de várias das explicações recebidas, como era de se esperar, e foi aprendendo o mundo na medida em que vivia. Descobriu que a dor do arranhão é diferente da dor de trincar o osso do braço direito e, mais ainda, bem diferente da dor de tirar nota baixa na escola ou passar vergonha. Quando cresceu, porém, Mariazinha se deparou com a dor das impossibilidades, uma dor extremamente mais doída e dolorida. Tendo ignorado a recomendação de só trabalhar com possibilidades e com alternativas catalogadas, foi pega de surpresa.



Sua intuição teimava em levá-la a um certo coração masculino. Porque Mariazinha, embora não se importasse muito com as convenções, era irremediavelmente atraída para dentro dos corações masculinos. Mas ninguém havia falado a ela que o fato de um coração ser masculino, exalar os cheiros masculinos e feminilizá-la ainda mais significava um dono necessariamente disponível ao feminino. Não.



A intuição de Mariazinha passou, então, a chocá-la e a chocar-se com as impossibilidades. E esses choques davam pane em seu sistema emocional. Porque agora ela só enxergava corações masculinos, independentemente do corpo que os abrigasse, das tendências e dos debates; Mariazinha não dava mais bola a blábláblás ou peitos estufados, bíceps mentais ou saldos intelectuais, e era atraída por aquilo que tais corações reluziam. E todos os corações masculinos que a chamavam estavam abertos apenas para outros corações masculinos – em qualquer acepção, qualquer que seja o significado disso. Ou fechados ao feminino dela, Mariazinha.



E tudo doía porque tudo lhe parecia inexplicável e inexato. Uma sucessão de impossibilidades, a impossibilidade-mor ainda tão dilacerante.



Pois, então, Mariazinha iniciou-se sozinha no solitário aprendizado do não-pedir, sobre o qual escritores, poetas, músicos, palhaços e peregrinos já a haviam alertado. E notou que seu próprio coração tinha uma disponibilidade itinerante, posto que ainda indeciso e jovem, posto que sedento e aventureiro.



Então, os manuais estavam certos?



Contudo, ao não pedir, ela também se distraía. Distraindo-se, ela compartilhava. Compartilhando, ela criava teias de possibilidades. Sendo possível, ela se alimentava. Alimentando-se, crescia. Crescendo, era mais e mais humana. Humanizando-se, disponibilizava-se. Disponibilizando-se, encontrava outras disponibilidades. Apurou seu olhar, seu sentir, seu intuir. A intuição, afinal, estava certa. Mas seus quereres de Mariazinha não tinham ainda entendido com plenitude a mensagem. E descobriu, então, que os caminhos eram vários, as impossibilidades apenas protegiam os encontros de queimaduras óbvias, e que há sempre corações à espera de outros corações, independentemente do gênero e das fronteiras, além de tudo.


Virou Maria. E é ela que por ali vai.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

PROSTRAÇÃO



Um homem de qualquer canto
do mundo
de lugar nenhum

lançou ao mar ao céu ao vento ao âmago
uma garrafa embriagada de
indagações.

Angústias que o ocaso se encarregou de
dissipar.
Ecos sem gritos ou sonhos sem tons
Uma nuvem rasga o horizonte,
lá longe.
apenas sementes de raízes
a brotar aos borbotões
sob a delicada membrana
de acordos de paz.

Erupção.

sábado, 12 de abril de 2008

digerindo a notícia, ainda sobre Pippa

Depoimento de meu amigo turco Sercan, em cuja casa Pippa esteve hospedada antes de partir (e de ser morta):

"Ao criar a paz, você enfrenta dificuldades. O mais importante é satyagraha, ou seja, insistir na verdade. Gandhi foi morto também quando trabalhava pela paz. Os riscos estão em todo o lugar. Temos de olhar positivamente para o futuro e com bons sentimentos. Se nós desistirmos e somente nos sentirmos tristes, quem mudará o mundo então?"


Palavras reconfortantes de minha amiga Márcia:

"Notícias como esta nos lembram de que o mal existe. Que está disponível para todos. Ele está aí, tão perto de nós, é parte infelizmente predominante do mundo em que vivemos. Por isso, a alegria de encontrar pessoas iluminadas. Porque são poucas. De tanto convivermos com elas, esquecemos às vezes do mal que predomina. Será que Pippa estava errada em seguir sua jornada? Será que a intuição dela não a alertou para o mal que se escondia naquela carona? Será que o fim violento é punição por ela ter sonhado, como muitos dirão (inclusive aquela voz alta dentro de nós)? Acho que não. Acho que não é só porque trilhamos o Caminho que estamos protegidos do mal. Não. Ele existe, simplesmente existe e não há o que possamos fazer se fizer parte do nosso Caminho cruzar com ele. O Deus que está em mim não adota a meritocracia segundo a qual aqueles que O ouvem gozarão de protecão divina integral e os que não O ouvemserão punidos. Não. (...) Acho que Deus simplesmente traça caminhos segundo a misteriosa lógica dele e pode ser que o encontro com o mal faça parte. Simples assim. Saber disso e ainda assim seguir o que nossa alma manda é, realmente, entregar a vida a Deus. Seguir o Caminho sem qualquer garantia de nada. Nem contra o mal. Essa é a verdadeira entrega."

Continuemos a jornada, portanto.
O sonho não pode morrer.

De novo Ferreira Gullar: "Porque nosso canto não pode ser uma traição à vida e só é justo cantar quando nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz."

uma lágrima para a artista italiana Pippa Bacca

A italiana Pippa, assim como sua amiga Silvia Moro, era uma artista corajosa e idealista. Ambas saíram de Milão, em 8 de março, com um objetivo: cruzar os Bálcãs e o Mediterrâneo, vestidas de noiva, pedindo carona até chegar a Israel. A idéia era partilhar o cotidiano com as gentes no decorrer da trajetória e, por meio do específico traje, criar uma arte interativa e pacífica. Na volta, fariam uma exposição dos vestidos usados ao longo do caminho, com suas marcas, suas manchas.


Pippa foi encontrada morta hoje, nos arredores de uma cidade não muito longe de Istambul, Turquia. Estava nua. Tinha sido violentada. Seu corpo estava enterrado. Aparentemente o assassino lhe havia oferecido carona.
O mundo não está preparado para iniciativas inocentes como essa, de pura confiança no ser humano.


À Pippa e a todos aqueles que pagam, com suas vidas, a fé depositada nesse mundo de merda, minha lágrima de solidariedade. O sonho deles, o nosso sonho, o sonho de todos não pode sucumbir à maldade.


Fiquei péssima com a notíca. Péssima. Sensibilizadíssima. Mais triste e mais desconsolada do que quando vi o filme "Filhos da Esperança" e me dei conta de a merda brota aos borbotões nas cabeças e nos corações dos indivíduos. Porque Pippa não era personagem de filme; Pippa existia e sonhava -- como eu existo e sonho, você também, nós, eles.
http://bridesontour.fotoup.net/

sexta-feira, 11 de abril de 2008

* * * Transfiguração * * *

Nem vazio,
nem deserto:
silêncio.



Um grande sertão.
Veredas de águas claras
encorajando
tantos corações esgazeados.
Ah, e como é bom.



O sepulcro vazio
escancara a vitória
abundante
que se quer próxima e íngreme
sem pódios
sem festejos fugazes
sem vazios.

com o silêncio.
Testemunhante.



Na quiescência plena da vida,
o moleque contempla
absorto
o nascimento da imensidão.
Reluz.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Mulher-em-trânsito

"Que seja infinito enquanto dure."
Vinícius de Moraes


Vagas em garagens ou em estacionamentos até existem, mais ou menos disputadas, umas com goteiras, outras apertadas. Mas a condição é implacável: impossível estacionar por menos de duas horas. Dois meses. Dois anos. Duas décadas. Dois séculos.

Não há vagas para uma mulher-em-trânsito. Não há transe sem essa mulher. Não há transa com essa mulher – e não porque ela não queira. Não topam transitar ao seu lado, ou nela, ou em conjunto. Porque não há tempo, dizem. Não há tempo.

A maior contradição: a possibilidade do compromisso de duas horas, dois meses, duas décadas, dois séculos é argumento plausível e usado sem qualquer pudor para as corridas de velocidade. Mas a não-existência da possibilidade é fator ainda maior de pavor.


Muitos já imaginam o fim para justificar o não-começo. E não começam. E, então, aí não começam.


Enquanto a posse for mais importante que o sentimento, a mulher-em-trânsito sempre transitará sem vontade de pousar. Sozinha. Aturdida. Odiada.

DOIS PONTOS

(2005, MF)

“― Eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafada porque ele estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte: ”
Clarice Lispector,
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres

E lá estava ele, contemplando os dois pontos.


Coordenava um grupo de estudos que se debruçava, vez ou outra, sobre os sinais de pontuação. Já haviam falado sobre o travessão, a vírgula e a interrogação (esta rendeu uma discussão interminável, reuniões e mais reuniões, discordâncias homéricas, filosóficas até. Preferiram todos, de comum acordo, depois de muitos parênteses e colchetes, passá-la para o fim das reflexões). Mas o fascínio dele pelos dois pontos tinha menos a ver com o tal grupo de estudos do que com seu próprio estado de espírito. Sim, hoje ele era um homem de dois pontos. Da pausa antes de falar, mesmo que os pensamentos e as frases brotassem aos borbotões em sua mente quente e irrequieta. Da necessidade de frisar os apostos que usava. Da vontade de destacar as explicações que vinham a seguir. Da experiência em conter seus arroubos. Calma, muita calma nessa hora. Serenidade a duras penas conquistada.


Mas ele já tinha sido um homem de exclamações, muitas, três de uma vez, quando mais jovem, bebendo conhaque sob a lua que o deixava comovido como um poeta sentimental e discutindo política, o PT no poder, a vitória das massas, a ascensão do proletariado, democracia exercida até a última gota, o mundo mais justo, a gente mais feliz. Era um idealista. Um idealista que se esquecia das vírgulas, ignorava todas as pausas e destilava considerações e mais considerações em voz cada vez mais exaltada. A revolução, a revolução!!!!!! Um amigo daqueles velhos tempos dizia que ele era movido a álcool – antevendo, quem sabe, uma saída para a economia nacional (note os dois pontos): o investimento em etanol e uma provável parceria com os Estados Unidos, suprapotência, inimigo histórico. Ah, esses ianques!!!!!!


Depois do conhaque e da rebeldia política, veio o cinema, paixão antiga, filmes intermináveis na Mostra Internacional de São Paulo, aquela turma que sempre se reencontrava, as discussões regadas a cerveja (e a uma ou outra dose de conhaque para ele e os demais iniciados). Os pontos de exclamação deram lugar aos pontos finais. Inevitável. Opiniões incontestáveis sobre os longas-metragens vindos do Oriente. Ponto. Kiarostami é um gênio e ponto. Tem influência do Bresson, sim. Ponto. Godard é outro gênio. Ponto. Wim Wenders tem seus méritos – adoro Asas do Desejo e ponto. Gosto do Tarkovski em Nostalgia, prefiro até, ponto. Acho isso e aquilo. Ponto. A turma toda discutia tudo – mas sempre os fins de sentença eram em ponto. Ao menos, naquela época, as exclamações eram consideradas over (“o cara é um exagerado, até parece que todos os cineastas do momento viraram mestres, nada a ver”) e as reticências, “coisas de gente que só vai ao cinema uma vez por mês”. Foi com a turma dos pontos finais, seus novos companheiros, que ele externou publicamente sua paixão e criou um site dedicado aos filmes, já que os amigos das exclamações haviam dispersado, uns inclusive sucumbido à falácia da centro-esquerda ou da alienação da máquina capitalista. Ah!!!!!! Ah.


Naturalmente, virou professor. Não bastavam os ideais e as imagens. Era preciso ir além, além do lugar-comum das exclamações e dos pontos finais, das vírgulas ignoradas, das aspas mal-amadas e dos impropérios dos parênteses. Do não-dito gritado, escancarado. Virou um professor machadiano, um Quincas Borba dos tempos contemporâneos, dedicado ao léxico e à sintaxe, às leituras e às escrituras, ao Humanitismo e à humanidade das palavras, das frases e das pessoas, tudo com uma releitura pós-moderna. Se Memórias Póstumas de Brás Cubas lhe abriu as portas para os sinais de pontuação (o que é aquele capítulo “Velho Diálogo de Adão e Eva” senão um exercício artístico de síntese por meio de exclamações, interrogações e reticências potencializadas?), Dom Casmurro lhe apresentara Capitu. Ou melhor, lhe explicara Capitu. Justamente a ele, um romântico confesso mas disfarçado, mantido sob controle em nome da maturidade da “metade da vida” (Jung dizia que, em média, o ser humano atingia a metade da vida aos 35 anos). Ele, um homem que, entre as quatro paredes, diante de uma mulher, falava em suspiros e itálicos, perdoava as aspas e as travessões, ignorava os pontos finais e se enchia de reticências. Ha-ha! Ele usava reticências! Isso era inconfesso, que fique entre nós, não espalhe. Pois é, ele reeditava sempre o velho diálogo de Adão e Eva, caprichando nas reticências...


Professor de melancolia? Que nada. Professor da simplicidade. Das coisas simples da vida. Queria ser um escritor como o protagonista de 2046, filme arrebatador, que lhe tirou do sério, que lhe deixou atordoado por dias e dias a fio. Esse romantismo ainda me mata, vai acabar com meu fígado, pensou. Por isso, precisava escrever. Histórias de amor com a poesia dos grandes, a sutileza dos conquistadores e as tintas dos mestres. Simples, simples assim. Se pudesse, como professor, ensinaria aos alunos a simplicidade de uma história como a de Jules e Jim. E como a de Bentinho e Escobar. Com a presença aturdida, mas necessária, sempre necessária, das respectivas Catherine e Capitu. Meus alunos, não temos o controle sobre nada nessa vida. É falsa essa ilusão de controle, de que existe um destino e que nossos passos estão já previstos, de que nós mesmos podemos prever nossos passos e traçar nossos caminhos. O acaso, meus alunos, é o segredo, a grande graça da vida está no acaso. Em deixar as coisas acontecerem naturalmente. Como ocorrera com ele: agora era professor, antes nem imaginava. E contemplava os dois pontos. Impressionante esse acaso. Ele, antigamente, queria tudo no registro da paixão e da urgência. Repercussões imediatas de atos refletidos. Encantava-se com uma garota e já a via como sua mulher, a colocava dentro de sua casa, imaginava filhos, cachorros, finais de semana divertidos numa charmosa casa construída no terreninho lá em Mairiporã. Lula no poder e todos os problemas nacionais resolvidos, com as soluções mais duradouras e exemplares – incluindo aqui o desempenho da seleção brasileira, a valorização do real, uma realidade melhor para todas as gentes, o vigor do cinema nacional. Um mundo em que os filmes de Wong Kar-Wai, Hou Hsiao-Hsien e Arnaud Desplechin fizessem frente aos blockbusters esmagadores e vazios e conquistassem definitivamente o público, o grande público, seus alunos e seus pais, suas futuras namoradas, sua Capitu. Aqui, agora, já. Exclamações! Pontos finais.


Mas não era mais assim. Por isso, apaixonara-se pelos dois pontos, pela singeleza da pausa e da possibilidade de reflexão. De não temer o passo seguinte, mas dar a ele seu tempo de elaboração e concretização. Como se fosse um suspiro mais solene. Dois pontos, dois passos. Ninguém avança se pisar só com o pé esquerdo ou só com o pé direito. Um pé para frente, depois o outro. Os dois pontos representavam isso: a aprendizagem do caminhar, do ouvir o outro e do falar. Versáteis, os dois pontos davam ênfase, serviam de introdução, sugeriam uma explicação, continham ânimos exaltados mas não eram definitivos. Quer sinal mais orgânico? Pense bem: o cérebro e o coração formam dois pontos. O coração e o sexo. O cérebro e o sexo. A cabeça e os pés. O Céu e a Terra. Tudo são dois pontos. Abstraia mais ainda. O medo do goleiro diante do pênalti (ele era goleiro nos rachas entre os cinéfilos): dois pontos. Seus olhos nos meus olhos: dois pontos. Ele em São Paulo, ela em Tóquio: dois pontos. Os dois pontos abriam espaço ao acaso. O que vem depois deles? Ele não sabe, você também não, nem eu.


Naquela tarde de sexta-feira, o sol tentava avançar no céu nublado. Dali a pouco, ele iria encontrar os amigos para um filme, um chope e uma balada. Mas havia se prometido, já fazia algumas semanas, revisitar suas ficções, voltar a escrever, colocar no papel todas as histórias incríveis que lhe vinham à mente no longo caminho de casa até a faculdade onde lecionava, da faculdade para casa, do cinema para casa, da casa para o cinema, da faculdade para o cinema (às vezes, isso acontecia). Esquentou pela terceira vez a xícara de café – era a quarta que tomava naquela tarde, um sono, o sono da semana inteira lhe fazendo companhia. Havia mais de duas horas estava diante da tela do computador. Tocara no teclado apenas uma vez. No documento aberto do Word, lá estavam eles, reluzentes: os dois pontos. Pois então, havia mais de duas horas ele estava lá, fazendo companhia aos dois pontos. Contemplando-os, admirando-os. Diria até que os meditava, sorvendo-os. Aprendendo com eles uma sabedoria escondida e sutil:

segunda-feira, 7 de abril de 2008

É chegada a hora

(2007, MF)


Trilha sonora: Time after Time, Cindy Lauper



O assunto é finito
E as palavras vão e vêm
Já não há o que dizer
E o tom, há tempos,
Parece ser de desdém
(mas ninguém checou)



O silêncio tem algum sentido
Reminiscências remoídas,
Alguma dor distante,
Certos pensamentos
Mas depois de uns minutos
Não tem sentido algum



Nem os talheres ousam
Desafiar o vácuo
O vazio, a incompreensão
A falta do dito novo dito



A única palavra que ainda
Cabe nesse silêncio interdito
É adeus.

Nos olhos meus

"Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei.
Não sei se fico ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo."
Cecília Meirelles




E ele olhou bem nos olhos meus. Naquele dia nada ajudava muito. A espinha obscena no queixo. O cabelo, horrível, repartido ao meio e preso em dois coquinhos na nuca. Elegância zero, alguns quilos a mais, lábios ressecados, café com leite da padaria perfumando o hálito. Pés sujos de andar no chão, escondidos nos chinelinhos também encardidos. As unhas da mão esquerda mais compridas que as da direita. Estava um rascunho de mim mesma naquele dia. Os olhos, porém, destoavam. Pareciam mais vivos do que nunca, se faziam presentes, davam inúmeras voltas ao redor do mundo e retornavam para aquele mesmo lugar: os olhos dele.


E ele olhou bem nos olhos meus.


Pega de surpresa, assim, recuei. Aceitei o olhar, relutante, desviando-o para lá e para cá. Para o balcão, para a amiga que estava parada no balcão, para detrás do balcão.
E ele fez perguntas que respondi sorrindo.
E eu me esfarelava de vergonha – daqueles olhos invadindo docemente os meus, de meu ar-rascunho, dos meus chinelinhos encardidos, dos meus olhos despudoradamente encantados com os olhos seus. Meus olhos me desnudavam – e eu queria negá-los. Por pura timidez.


E aí ele desviou os olhos dos olhos meus. E seu olhar era de adeus. O momento passou, outros e outras passaram na frente, e, quando me dei conta, já era tarde e inexplicável.


Tentei consertar com palavras escritas, com notas desafinadas ou tentativas infrutíferas de harmonia e afinação. Em vão. Ele já não olha mais para mim. Quando olha, não enxerga mais os olhos meus. Vê a espinha, o cabelo, os quilos a mais, os lábios ressecados, os pés sujos. Vê o rascunho. Vê mais um monte de coisas sem importância. Ele olha e não me vê. Também eu fujo dos olhos dele. Antes de olhar, já penso uma infinidade de coisas e aí a vista fica turva, o olhar se perde e não vejo mais nada.


Às vezes, fico vesga quando tento impressioná-lo. Inutilmente.


Os olhos meus.
Os olhos seus.


E se mantenho os olhos fechados, ainda o vejo olhando fundo nos olhos meus, tentando revirar aquela areia fina e pura, cheia de conchinhas e fragmentos de algas, de almas, que suspira embaixo d’água. E soluço, coração apertado, de vontades.

domingo, 6 de abril de 2008

>> >> >> Garrafas >> >> ao mar >> >> >>

(MF, 2007)


E, então, naquele dia, mais precisamente naquela manhã, ela lançou uma garrafa ao mar. O que não sabia ela era que, também precisamente naquela manhã, ele pensava nela e igualmente pensava em lançar-lhe uma garrafa ao mar. Mas achou a idéia exagerada, talvez exacerbada, ou irrefletida. E lançou-se apenas ao mar, a si mesmo, sem a garrafa.



Muito tempo passou. O lampejo daquela manhã tornou-se um vaga-lume que brilhava de vez em quando na bagunça de roupas e cacarecos espalhados dela.




Muito tempo.
Ele, lançado ao mar, com braçadas alcançou outro continente, outra gente, outras.
Ela seguiu escrevendo cartas de amor, verdadeiras ou fictícias, com ou sem destinatários, e continuou enchendo garrafas. Vidrada no mar.




Tempo.
O que é o tempo diante da própria infinidade de infinitudes que compõem a eternidade, a saudade e os sonhos?




Naquela manhã, houve um momento de conexão entre aquelas almas. Uma ligação em pulso ritmado e lembrança em compasso, o telefone tocou três vezes dentro de cada um deles e, quando atenderam, pensaram no outro. Sem qualquer explicação racional. Ela jogou a garrafa. Ele, a si mesmo.



O que são as fronteiras se os rios transformam-se em nuvens, as nuvens tornam-se chuvas e as chuvas alimentam os rios que correm ao mar?




E, então, a garrafa chegou até ele, e ele quis saber dela, responder-lhe, dizer-lhe coisas, e ele não sabia mais se a acharia ou não. Naquela data, mais precisamente – e embora pareça uma contradição – naquela noite em que ele lançou sua garrafa ao céu, ela achou o vaga-lume. Pensou nele. Na garrafa. No quanto tempo. Vislumbrou o rio, a nuvem, a chuva e o mar.



Coincidência?
Ele recolhe retalhos de sua colcha de passados para compreender a própria origem.
Ela recolhe os cacarecos para abrir-se caminho e, no impulso, alçar vôo para compor seu futuro.
Encontrar-se-ão? Ele a ele, ela a ela, ele a ela, ela a ele?


Que bonito, inesperadamente, achar a garrafa. Abri-la. Descobrir-se ali.
Quando o céu está límpido. O pensamento está limpo. E a alma, serena.


Ri-o-da-qui, cho-ve-de-lá.


O presente está naquelas garrafas que hoje bóiam no mar.

sábado, 5 de abril de 2008

~ Carta de Amor ~

"Todas as cartas de amor são ridículas."
Álvaro de Campos


Ao Homem, com prazer



Um dia importante, num ano importante, dentro do meu coração.


Você querido,


Conhece “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, de Clarice Lispector? Eu não conhecia até fins de novembro do ano retrasado. Mas ele me pediu e eu, sem saber, o buscava. Estava há uns meses sem uma leitura arrebatadora, algumas semanas sem um filme arrebatador. Li com sofreguidão, mas não rapidamente. Falava de mim, para mim. O texto me perturbava, ecoava dentro aqui dentro. Lembro-me de que, no início, suava de tanto turbilhão. De tempos em tempos, fechava o livro. Parecia que uma corrente elétrica tomava conta de mim. Erótico ao extremo. Lírico também. Pulsante. E me descobri Lóri, totalmente Lóri, uma Lóri entregue aos próprios suores e desejos, em seus passos às vezes cautelosos e suaves, em outras vezes firmes e pesados, rumo à descoberta do Outro, do prazer e do amor.


Meu olhar mudou. Meus olhos mudaram. E comecei a descobrir um Ulisses aqui, outro Ulisses ali. Não muitos, mas eles existiam! Descobri Ulisses também no meu passado; era eu quem não o enxergava. E ele passou...


Veio “Dias Selvagens”, do Wong Kar-Wai, mas eu ainda prefiro o título original que diz: dias de ser selvagem. Era isso: eu, Lóri, estava em meus dias de ser selvagem. Por que não? Por que tanto medo da entrega? Ora, para não perder essa liberdade de movimento que tanto valorizo. Mas entrega e liberdade eram antônimos?


A vida continua pulsante e os dias, selvagens. As correntes elétricas continuam me dando choques de tempos em tempos (você “presenciou” o processo). Agora, um universo de possibilidades se abre diante de mim. Preciso tocar o mundo, senti-lo até o talo, estar com gente, gentes diferentes. Então, por mais que tenha sonhos “fixos”, ainda há esse grande movimento que clama por minha presença. O mundo, a humanidade, que preciso apalpar, em que preciso pôr minhas próprias mãos. Senão, acho que jamais vou sossegar. Sou demasiado inquieta, preciso de um longo caminho para achar o que está aqui do lado. Desde criança, adoro essas provas de caça ao tesouro...


... escrevo tudo isso para dizer que está cada vez mais difícil passar, apenas. Tenho tido cada vez mais vontade de ficar. Mesmo que meu “ficar” tenha, neste momento de minha vida, o sentido de “aqui e agora”. Ou, como falam por aí, “hoje é hoje, amanhã ninguém sabe o que será”. Quero dizer: não tenho nada de seguro para oferecer, nenhuma linha narrativa seguramente longa nem promessas de fidelidade ou compromisso. Mas tenho eu mesma para entregar e um monte de janelas abertas. Para o ar circular. Para o Ulisses entrar. E um lar, “infinito enquanto dure”, para proporcionar.


E vontade de receber. De intimidade. De construir uma casinha, mesmo que pequenita, mas que possa ser lembrada por toda a vida.


Estou com saudade, tenho vontade de repeteco e meu coração anda cheio de ternura por você. Sobrevivo bem assim? Sim, sobrevivo. Mas é sempre melhor partilhar – se possível, é claro.


Então, é isso. As janelas estão abertas.
Beijo grande, tão enorme de carinho que pode virar longa-metragem. Gênero: romance.


Eu,
a Mulher (nome duplo, olhos grandes e sobrancelhas, asas e coração maior que o mundo)

Solidão de indivíduo




"Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)"


Carlos Drummond de Andrade, em meu "hino" MUNDO GRANDE

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Reconquista

Sorri o sorriso mais original que eu podia
No meio daquela massa de comentários
Que tanto fazia
Estarem lá ou aqui
Tapei o bocejo com o guardanapo
E guardei o beijo para a sobremesa
Sem ter a certeza
De que, na minha frente, haveria alguém



Voltei do périplo e
O armário continuava igual

domingo, 30 de março de 2008

ÚLTIMO, PRIMEIRO


“Amar os outros é a única salvação pessoal que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.” Clarice Lispector




Viver cada dia como se fosse o último. Porque sempre pode ser o último. Porém, viver cada dia também como se fosse o primeiro, com aquele frescor dos primeiros dias, os olhos completamente recém-nascidos, os ouvidos aprendendo a identificar os sons – entre a música diária e os ruídos, um longo e eloqüente silêncio –, o sabor de frutas recentemente descobertas, a pele clamando por ser tocada, porque novos dias são sempre dias novos. Clichê? Se desapertasse a tecla mute de seus pensamentos, se eles se espalhassem em voz alta, iriam acusá-la de proferir clichês? Ora, então acusam a natureza de produzir lugares-comuns. Porque eu não invento nada, eu apenas contemplo, às vezes constato, quase somente sinto. Sempre. A morte seria um clichê? O arco-íris, outro? E o pêssego? Ora, ora. Como hoje é meu último dia, disse a si mesma, rindo, num sussurro extremamente sedutor, farei dele uma sucessão de clichês. Como também será meu primeiro dia, não me importarei em ser autêntica com todos os meus poros. Riu mais alto. E repetiu: com todos os meus poros! Quantos são? Divertiu-se imaginando a quantidade de poros que um ser humano adulto teria. Ordem dos milhares ou dos milhões? E se fossem seis bilhões, como os habitantes do planeta? Alguém já contou? A nova risada fez eco e ainda escapou pelo vão da janela que acabara de abrir. Como costumeiramente ela se encontrava um tom, talvez dois ou três, acima do desejável para os padrões habituais de contentamento e não tinha nada de cinzentisse (esse jeito cinza de ser, hoje tão comum), além de ser acusada de proferir clichês, provavelmente também seria tachada de excessiva. Mas ela nem ligaria, caso se desse conta disso. Em vez de se preocupar com o que falariam de seu último dia – ou primeiro, dependendo do ponto de vista – olhou as horas.



Quarta-feira. Nada grandioso a ser feito, mas enquanto repassava mentalmente as pequenas tarefas que propôs a si mesma, todas lhe soaram tão importantes. Sabe aqueles dias que prometem ser epifânicos por nada? O sol bonito lá fora, ela com um excelente humor, o café com leite adoçado no ponto certo, o cabelo que secou jeitoso, nenhuma espinha no rosto... Uma ausência total de expectativas. Ah, delícia. Leveza! Clichê? Hahahahaha. Não falei? Hahahahaha. Decreto que meu último dia será repleto de pequenas epifanias. E vestiu a saia rodada repleta de flores. Eu vejo flores em você, cantava numa afinação muito peculiar, enquanto escovava os dentes. Vejo flores em mim, vejo flores naquele que me é fonte de suspiros, vejo na amiga da alma, vejo no companheiro de filmes e livros, vejo na parceira de vida invisível, vejo – que sensação engraçada – numa outra de mim, que me transcende e cujo reflexo no espelho pude captar em segundos. Ei! Nossa, que susto. Vi duas de mim agora. Essa brincadeira me assustou. Cuspiu a pasta. Olhos arregalados, meio duvidosos. Ela tinha visto uma outra dela que sorria, sem escova na boca, sem pasta no dente. Quem era você? Alma?



Não resistiu. Antes de sair de casa, ligou o toca-CDs. Saia rodada pede dança com pé no chão. Iria usar sandálias, caramba, pés de solas pretas, mas quem tem medo de careta? Capitu, na voz de Ná Ozzetti. Três Letrinhas, Marisa Monte. Esquadros, Adriana Calcanhoto. Plainsong, The Cure. E, por fim, olhou as horas de novo, ai, tenho uma sobrinha de uns dez minutinhos ainda, Heaven Knows I’m Miserable Now, The Smiths. Riu de novo. Engraçado, os céus sabem de tudo! Às vezes, a gente tenta enganar a humanidade inteira com sorrisos amarelos, desculpas esfarrapadas, gestos dissimulados, atitudes muito sociais mas tão impessoais. Mas os céus sabem quão infelizes estamos quando assim agimos. Somos muito cagões de vez em quando. Ou quase sempre. Ora, ora. E a vida tão curta, tão curta, tão curta! Opa, já está na hora.


Tudo se torna tão mais interessante quando você se abre para a vida. Clichê de novo? Ela achou que era um sinal: no trajeto entre a estação de metrô Brigadeiro até a Consolação, contou treze pessoas vestindo alguma coisa na cor laranja – bermuda, blusa, camiseta, saia, gravata. Algumas flores em sua saia rodada eram cor de laranja também. Pois então, catorze pessoas com algo laranja numa quarta-feira? Isso era uma epifania, sem dúvida. Há mais gente feliz no mundo hoje, oba! Como era bom não se sentir sozinha ou solitária em suas divagações. Havia noites, mais que dias, o escuro propiciava esses pensamentos, havia noites, e, em geral, não eram de lua cheia, porque aprendera a ficar contemplativa também graças à lua cheia, noites em que ela se sentia a mulher mais solitária de todo universo. Como a única habitante de Plutão – e seu Plutão sendo destituído da categoria de planeta, então ela ficava completamente descolada no universo, inadequada, perdida, solitária. A mulher mais solitária de toda essa imensidão. Não era pouca coisa, esse sentimento não era pouca coisa. Daí o sorriso largo que ela abriu antes que a porta do vagão se abrisse ao constatar a presença de toda aquela cor laranja na quarta-feira ensolarada. O rapaz de vermelho achou que aquele sorriso era para ele. Sorriu de volta. O senhor distraído e engravatado pegou um rastro de sorriso e igualmente pensou-se o destinatário. Sorriu de volta. Se ela olhasse o reflexo do vidro notaria que mais gente se encantara com o sorriso, inclusive ela mesma. A outra dela, de novo surgida repentinamente no átimo entre o olhar e a abertura da porta. Aquela. E retribuindo o sorriso. Alma?



Fez o que precisava fazer pela manhã. Não vale aqui descrever todos os passos de seu último – ou primeiro – dia. Preencha você, caro leitor, com sua imaginação. Como se fosse você. Uns iriam trabalhar; outros, estudar. Alguns iriam a uma consulta médica, outros a uma entrevista de emprego, a uma aula de cerâmica (privilegiados esses), às compras (se com dinheiro no bolso e em férias), a uma sessão de cinema (sortudos jornalistas), ao banco ou resolver uma burocracia qualquer. Assim, ela fez o que tinha que fazer. A saia rodada e florida chamava a atenção. Ou era o sorriso? Havia algo nela que atraía os olhares. Mesmo quando atravessou a rua ao lado de uma loira alta, cabelos muito sedosos, quadris muito largos, óculos escuros muito grandes, ela miúda ao lado da loira, os homens que vinham no sentido contrário detinham o olhar nela, do sorriso à saia florida, reparavam nos olhos, no jeito de andar, um até falou: bonita e primaveril. Era outono, mas ela ficou igualmente lisonjeada. Parou na lanchonete mais próxima e pediu um suco de laranja. Um brinde!



Almoçou, seguiu com a lista de tarefas, de cá para lá, entra e sai, o sol continuava firme e forte, mais gente vestindo laranja, cruzara com uma senhora que usava uma flor bordô presa no cabelo bem preto, ah, que dia cheio de epifanias. Tudo dando certo, só pessoas bacanas cruzando meu caminho, conhecidas e desconhecidas, um privilégio. E só bons pensamentos. Engraçado, sua mente parecia funcionar mais rapidamente que o habitual e seu coração estava tão mais sensível, captava tudo, sentia tudo. Só bons sentimentos. A vida estava tão doce em seu último ou primeiro dia, já nem mais sabia. Parou na padaria. Ficou indecisa entre os suspiros e o sonho, mas optou por dois beijinhos. Um para cada bochecha, brincou com o moço. E sorriu. Ele ficou prosa. Mas ela não podia conversar: tinha mais umas coisinhas para resolver.


E assim foi até umas cinco horas da tarde, talvez um pouco mais, sabe aquela hora do lusco-fusco, da luz com fúcsia, os prédios espelhados refletiam o cor de rosa e o lilás do céu, ainda havia resquícios luminosos do sol, o dia ainda reluzia sem necessidade de lâmpadas. Resolveu voltar a pé para casa, estava cedo, tinha disposição para muito mais, o ar estava uma delícia de respirar, a saia florida ainda rodava, os pés de sola preta nem doíam, nenhuma careta, as pessoas parecem tão mais bonitas hoje. A beleza está nos olhos de quem vê? Ou de quem é visto? Esse deve ser meu clichê de número... Riu alto. Será que em nosso último dia nosso olhar muda tanto quanto em nosso primeiro dia? Não achou resposta. Passou por uma floricultura, seu olhar foi diretamente ao encontro das gérberas, que estavam com uma aparência tão fresca que ela não resistiu. Comprou cinco, todas cor de rosa. E porque sorria, e porque vestia uma saia rosada e por toda a simpatia e a doçura que exalava, o moço caprichou nas folhagens e naquelas florzinhas miúdas, fofíssimas, que pouco se incomodam em ser eternas coadjuvantes das exuberantes flores-star. Que belo buquê, que belo buquê. Agradeceu saltitante, o rapaz sorria envergonhado e feliz.


Ela era a mulher da saia rodada e florida, do sorriso no rosto, do belo buquê de gérberas cor de rosa nas mãos em pleno lusco-fusco. Impossível passar despercebida. O mendigo sorriu. O homem de gel e óculos sorriu. A menina e a babá sorriram. A multidão que atravessou a avenida e cruzou com ela também sorriu. Um lusco-fusco de sorriso para a moça e para as gérberas. Que, diga-se de passagem, refletiam o céu. Outra epifania.


Quando estava a poucas quadras de sua casa, foi invadida por uma imensa ternura por si mesma, pela vida, por toda a humanidade, pelas gérberas, pelas coisas. Num piscar de olhos, enxergou novamente a outra dela, aquela outra leve e sorridente, que a olhava reconhecendo-a como ser humano, mulher, fêmea, gente. Num piscar de olhos.