terça-feira, 22 de abril de 2008

Ela usava óculos

Ela usava óculos. E eles já foram seus maiores inimigos. Funcionaram como a maior muralha. A barreira certeira. O esconderijo perfeito. Os reveladores, os denunciadores. Suaram muito com ela. Choraram também. Estes, agora, estabeleceram uma relação harmoniosa, serena e um tanto divertida. Folgas durante a semana, décimo terceiro salário, cuidados higiênicos, até elogios. Os anteriores sofreram; uns foram despedaçados, sem querer, com os pés. Outros, de propósito, com as mãos. Ela era ela, com ou sem eles. Mas eles só eram eles com ela.

Ele também usava óculos. Eles eram amigos, parceiros, companheiros, aprendizes. Eles guardavam seu tique, disfarçavam sua timidez-não-tímida, saíam estrategicamente de cena quando fosse tempo de deixá-lo olhar, de deixar com que fosse olhado. Ele era ele de óculos, mas sabia ser-se-a-si sem eles. Eles o queriam incondicionalmente, pois se sentiam sós e sensíveis.

Ela gostava dele de qualquer jeito. Ele não sabia que ela usava óculos.
Eles eram parecidos.
Eles também eram parecidos. Pretos, vermelhos. O dela trazia florzinhas.

Ele de óculos, ela sem óculos, logo de cara a identificação se instalou. Ela olhava sem maiores preocupações, ele olhava com curiosidade. Afetuosos e expansivos. Agrandando-se, ambos, na vida um do outro. Sem saber. Distraídos. Expostos. Nada de rótulos ou definições. Quem eram eles depois de um e do outro? Ela sentia, ele ainda tentava entender. Ela partia, ele queria até acompanhar.

Os óculos. Os dele iam e voltavam. Os dela ainda não foram revelados. Precisava?

Ela gostou do que viu.
Passado um tempo, gostou mais. Deu vontade de lhe dar um beijo. Nele, com ou sem óculos, sem pedir licença a eles. Mas nem sabia se. Como agradecimento.

Sentiu ternura. Quis passear suas flores e suas hastes vermelhas pelo rosto dele. Um milagre. Um achado. Um carinho.
Eles haviam se reconhecido! Pressentiram a existência um do outro. Espelhados, simétricos.
Ela tinha um quê de mistério, ele disse. Mas era ele quem se revelava pela metade.
Pois ele levava óculos.
Ela queria levá-lo em si.

No fim de tarde, depois da chuva, ambos redescobriram um céu luminoso e iluminado além de quaisquer lentes embaçadas.
E eram eles. E estavam ali. Inteiros, brilhantes e presentes.

Testemunhas oculares do bem-querer.

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu acho que ele nunca verá meus óculos, embora eu queira que sim...