domingo, 21 de abril de 2013

travessões


Não suma.
Não fuja.

Não se assuste.
E, então, naquela quase-madrugada fresca e ligeiramente embevecida, naquele momento em que certas coragens etílicas se faziam tão aparentes, nos despedimos.

Depois, o óbvio: nos assustamos com nós mesmos. Fugimos. Sumimos. Desaparecemos.

Sentimentos interditos brotaram, a princípio tímidos, gradativamente intransigentes. Fiquem tortos em seu canto, tem dito a razão. Tortos e inertes. Não nasçam, não cresçam, não se desenvolvam. Desafiem a lei da vida; abortem-se. Os afetos são surdos. Os afetos são irracionais. Petulantes, provocam todo o tempo a ordem estabelecida, reviram ralos e remos, riscam discos e desafinam os cânticos. Estão aí, sobreviventes, beligerantes, em franca travessia e invasão de fronteira. Por que não?

Somos duas mulheres, somos dois homens. A questão é que sempre coincidimos. Quando somos mulheres, o somos as duas. Quando somos homens, o somos os dois. Assim, nunca estamos uma mulher e um homem. Por isso, a impossibilidade. Mas vá dizer aos afetos, vá explicar-lhes como as coisas funcionam no mundo prático, pragmático e viável. Os afetos simplesmente encontraram uma brecha e soltaram-se.

A vontade era ficar apenas a seu lado, em silêncio. Receber um abraço seu. Ouvir, ouvir, falar, falar, tocar. A vontade era provar de novo esse sentimento de saciedade num peito tão insatisfeito.
Não suma.
Não fuja.

Estou muito assustada.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

miradas


Nos quedábamos ahí, más o menos sin rumbo, en búsqueda de cualquier cosa que hiciera sentido en noches cálidas o mañanas frías. Pucha, qué cliché, decíamos, culpa siempre del vino y del amor. Pero no me amas, yo me acordaba, y casi ya no hay vino. Qué importa, vaya, mira al mar, por las arenas de la Barceloneta todavía se encuentran rastros de todos los amantes que vinieron antes de nosotros. Pero ya no me amas, yo intentaba acordarme, y has bebido todo el vino. Qué importa, ¿por que te preocupas tanto?, qué importa si ahora llove, si nuestras espaldas se ponen resbaladizas, tú has cambiado tanto y – ¡híjole! – mira,  de verdad, ya te veo tan escurridiza. Nos quedábamos allá, menos o más sin rumbo, esperando que viniera el sol o las estrellas, lo que hubiera llegado antes. Pucha, de nuevo, vuelves con esas palabras sin nexo, hay tanto lo que no hacer y lo haces todo, te olvidas, no me cierres tus ojos. Las gentes y sus bicicletas volaban cerca de nosotros, ya éramos otros, caray, el tiempo, siempre el tiempo, otro cliché! El tema es que nos habíamos vuelto clichés, me daba cuenta con tristeza. Era una lástima, como no estar cerca de aquel rostro, como alejar de él mi corazón, olvidarme de los besos y de los barquitos de papel. Había mucha vida siempre alrededor, a las nueve de la mañana, a las tres de la misma mañana, a las diez de la noche, a las siete de la tarde – porque allá la noche llega siempre con retraso.

Echo de menos las horas en que nada era muy complicado y nos sentíamos libres, yo me sentía libre, había vino y tanto amor.

Extraño.
Añoro.

Saludos, pero ahora me voy.

domingo, 9 de dezembro de 2012

nonada: donada

Seguia as pegadas do rio. Um rio que quase nem estava, mas generoso me tocava, como amigo que conforta aquele que fica depois que todos vão. Eu não me conformava: queria ir também. O barro sedoso me acariciava os pés, alisando cutículas e quereres diminutos, cuidando dos calos, das unhas grosseiramente aparadas. Garras. Vez ou outra, me largava de joelhos, como se pedisse clemência, ah meus pecados todos, esses dizeres que eu digo e depois não consigo apagar. E logo ganhava um abraço, efêmero, fluido, da água morna.
Araras. O sol ardia, a saudade ardia, a cicatriz recente doía, doía -- doce, abrupta, cor de mel. Os buritis davam ritmo aos minutos, já que o tempo tinha se perdido de mim. Que sons eram aqueles? Cavalos? O rio não tinha pegadas, mas eu continuava seguindo rastros quaisquer: era por ali que eles tinham ido. Minha sombra corria na frente de meus delírios, meus sorrisos nervosos despediam minhas sanidades e ao longe, mas lá bem ao longe, vozes me confundiam, me confundiam com os pássaros, as vozes se confundiam com os pássaros, eram de novo as araras, os cavalos?
Me deixava embarrear com generosidade, esbarreava, embarreava, nada já me barrava, amigo esse rio, que não tinha vergonha de sua fragilidade escancarada. Quase nem rio, tão rio, quase sem água, vazio, mas tão cheio. [Eu o preenchia inteiro.] Os buritis. A cicatriz. As margens arenosas do período de seca acolhiam nossa mútua companhia às margens de dentro, quando estávamos ali. Carcaças. A seca que sorvia a água e desamparava o rio me desamparava também. As boiadas deviam passar longe, bem longe dali.
Era agosto, e as poucas nuvens no céu não suportaram o ardor das queimadas nas entranhas dele: acolheram-no, cordato e gentil, todos cordatos e gentis, todos menos eu. Segui as pegadas do rio no próprio rio, em sua estranha sobrevivência de quem chora sem lágrimas e ama sem amor. Tocava o fundo de mim mesma ao tocar o fundo exposto daquele rio quase seco, experimentando a nossa síntese.
Quando optei pela urbanidade, tinha a enganosa expectativa de ficar ainda mais e mais e mais na margem arenosa sorvendo os sons, as sedes, as súmulas, os sumiços e os nossos sonhos por mais um pouquinho assim de eternidade. Mas não era mais verdade -- e hoje jazo sob o concreto sujo, seco e duro, sem comiserações. Não existem mais rios. Não rio mais.


sábado, 8 de dezembro de 2012

eu e ele, um capítulo nosso

(ya sabes que es para ti)


Antes, *ela* era apenas um personagem em duas fotos bem colocadas na estante dos CDs. “E isso importa?”, ele rebateu, quando interrompi nosso primeiro beijo para apontar o tal porta-retrato, eu, toda acuada no sofá. Encostei meus lábios nos dele e contive sua pressa com minha língua. Aos poucos, encontramos um ritmo nosso, intenso como nós dois, insolente como nós dois, mas respeitoso à austeridade das histórias que nossos corpos carregavam, das histórias do mundo que nos transpassavam. Não, *ela*  pouco importava. Pouco importou até um mês e meio atrás.

Havia devorado meio saco de batatas fritas com a plena consciência de que isso não suavizaria a angústia de sempre e que a única serventia de meu ato rico em gordura saturada seria sublinhar o cansaço. Porque também me sentia uma espécie de gordura saturada: densa, saborosa, ciente de minhas propriedades, mas definitivamente perigosa para corações alheios. Corações alheios! Ele estava agora preparando sua viagem a Genebra a fim de encontrar *ela*, a nobre e digna *ela*, que terminava um curso de observadora internacional de processos eleitorais problemáticos. Em breve, disse ele com orgulho, *ela*  receberá uma missão para seguir a algum canto do mundo. Sem ele, obviamente. A tão bem-preparada *ela*  que aparentemente pouco se importava com a anatomia física e intelectual de seu ele, com sua arrogância de literário, sua habilidade em preparar arrozes variados e bifes à milanesa. O porto seguro desse homem que escrevia e transava com a urgência de quem dispõe de apenas uma hora: uma hora de divã, uma hora de visita conjugal, uma hora de descanso, uma hora de exercícios nas barras, uma hora de viagem até o recanto preferido na praia.

As minúsculas guerras cotidianas que cada ser humano trava diariamente dentro de si, estando o não consciente disso, são tão sangrentas e estúpidas quanto esses atos coletivos de catarse e barbárie. Eu sabia que alguma comoção lhe causava, ao mesmo tempo em que tentava eliminar qualquer possível expectativa que teimasse em brotar dentro de mim. Não estou apaixonado, você me entende? Não estou. Ele me repetiu isso três vezes num dia em que saímos. Outras três vezes três semanas mais tarde. Acho que já sei qual é seu número mágico, ironizei. Numa tarde de inevitável comoção, não quis me olhar e comentou que sonhara com três filhos. Sabia que, aos 50 e poucos anos de idade, era uma visão quase piegas e melancólica da tal família perfeita, mas, se sonhava com isso, fazer o quê? 

Ele voltou a tocar minha mão: "se não eu e *ela*..." Não disse mais nada. Eu não queria ouvir qualquer murmúrio, porque a única coisa em que pensava era em meu desejo imenso de ter um filho com ele. Que juntos pudéssemos escrever nossas obras, cuidar de orquídeas e de oliveiras-anãs, cozinhar especialidades várias e cuidar de um bebê. E que *ela* se apaixonasse por algum alto executivo das Nações Unidas, mudasse de nome, pintasse os cabelos e fosse para bem longe, deixando-me em paz e a sós com meu homem.

Mas hoje era uma quinta-feira como qualquer outra, passava das 14 horas, eu havia devorado a metade que restava das batatas fritas e aquela tarde de sábado de quase um mês atrás tinha virado uma fotografia em algum porta-retrato da memória dele. “E isso importa?”, ele teria perguntado.
 
Lonjuras.

Talvez naquela imagem escondida e largada entre as lembranças reprimidas de nossos corações estejamos ambos de olhos fechados, sonhando com tardes lilases nossas, à beira-mar.

ascolta l'infinito



Dimmi “ascolta” e ti lo faccio, ti faccio ascoltarmi. Dimmi ti amo e ti lo faccio, ti faccio anche amarmi. Dimmi tutto, sia tutti, dimmi quello che vuoi ed anche quello che non posso volere. Ti posso chiedere se vuoi volare, ti posso chiamare per accompagnarmi, ti posso dire che ormai non posso se non sei vicino a me. Allora mi faccio ascoltarti. Adesso mi faccio amarti. Così voliamo, così vogliamo.


domingo, 28 de outubro de 2012

[caí na rua e descobri que estava mais viva do que nunca.]

sábado, 27 de outubro de 2012

#naoexisteamoremSP





O bilhete, por favor. Como não pagou a entrada? Aqui, nesta metrópole, nesta megalocidade, você só entra se comprar seu ingresso. Preencha esta ficha: quem é você – mas não se demore em considerações filosóficas, só basta saber se você aparenta algum pedigree; quanto tem você – não há necessidade de números precisos, mas é conveniente que diga quanto ganha e qual a origem desses rendimentos; que quer você – de novo, não se perda em digressões inúteis, apenas revele quais são seus objetivos na megalocidade. Não reclame dos prédios sem história, agradeça morar perto de pontos de ônibus e do metrô, atravesse a rua nas faixas – cada vez mais, os motoristas têm esperado os pedestres – e não se descuide nas calçadas, é verdade que nem sempre bem cuidadas. Ora, ainda há espaço para os que caminham... faça seu trajeto, sem perder seu rumo. As esquinas podem ser perigosas na solidão.

Nos fins de semana pela manhã, em certos momentos de silêncio, você consegue ouvir os pássaros. Ouve britadeiras, é certo, caminhões recolhendo caçambas, buzinas, motos rasgando o asfalto, mas ouve pássaros. E não só pardais. Ouve bem-te-vis. Ouve sabiás. Ouviria beija-flores se eles cantassem em vez de beijar as flores. Flores! Beijos! Sim, existe amor em SP. Há flores e beijos, nem sempre explícitos, nem sempre lícitos, mas aqui e ali estão eles. Não perca seu bilhete. Não esqueça sua identificação. Compre o que quiser, mas cuidado com a sedução das vitrines. Mãos pedintes estarão por todas as partes. Mãos estendidas, corpos estendidos, vidas rendidas, outras não. Sim, há lixo. Sim, há sujeira. Sim, a água que escorre quando chove só carrega um quinto dos amores e mais de 100% dos dissabores. As existências se amassam em trens, vans e ônibus lotados, as existências ficam cinzentas, tudo vira cinza nessa megalocidade megalômana e maníaca. Mas você tem seu bilhete: você tem seu espaço, ainda que amassado.

Finja que a história corre pelos encanamentos torpes dos edifícios velhos – não antigos – e imagine outras eras, outras épocas escondidas nas frestas e nos vãos. Épocas bandidas. Porque a história se escreve à revelia. Por aqui, passaram índios, negros, colonizadores, bandeirantes, imigrantes pobres e ricos, migrantes pobres e ricos, passam ainda tantos, congestionamentos, engarrafamentos, passa a memória e passa também a desmemória. Passarinho, passaredo, passados, passeios, passivos, paçocas e passagens. A megalocidade regurgita frituras e fumaças. Aproveite as padarias, pão fresco, sonho fresco, todos os dias, desde às 5 da manhã. Se sua vida tem 24 horas,  a megalocidade lhe oferece oportunidades para todas as vontades, com descontos ou promoções.

Suas pegadas não ficarão registradas nas estradas invisíveis dessa metrópole. Os pombos ciscam as migalhas e somem com as pistas, você anda por aqui e ninguém registra seus passos. Ninguém sabe, ninguém nunca saberá. Anônima você, anônimo ele, mas posso apresentar um ao outro, ele mede sua bunda, você repara no pomo de adão dele, ele prefere a mulher que se insinua ali adiante, você o acha arrogante, ele tem um carro imenso, você não tem nada, nem seios decentes, nem lábios atraentes, ele inventa uma desculpa e some, você sorri e sai, você tem seu bilhete, direito para estar você tem, o tempo expira, é certo, tudo expira, nada espera, o prazo de validade humano expira, você espirra, porque o ar sempre será extremamente contaminado.

Não, não desista, resista, o sertanejo urbano é antes de tudo um forte, você tem sorte, não escape, fique, não vá, é em vão ir. Finja que enxerga horizonte, finja que ouve o bailar das folhas nos galhos das árvores espalhadas pela megalocidade, finja que se inspira com a solidariedade que acontece aos borbotões, mas às escondidas. A solidariedade some no cinza, o cinza engole as maçãs, os moços ajeitam os trajes, os trajetos estão entupidos, os tubos estão cheios de ratos, as resinas não suportam o frio, aqui faz frio mesmo quando faz calor.

Me abraça, você diz. Às 11 e pouco da noite, em pé num barzinho qualquer, noite de céu sem estrelas, noite sem vento ou suspiros, você suplica: me abraça. Mas seu bilhete não lhe dá direito a afetos.

E você, então, sucumbe.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

apóstolo



Uma década de vida, mais de mil quilômetros de distância e todo um alfabeto distinto nos separavam. Mas, ainda assim, guardava a memória daqueles olhos azuis amendoados, amendoados de um jeito que só os registros eslavos com heranças asiáticas podiam ser. Não existiam muitos desses olhos no lado ocidental do mundo; de algum modo, eles conservavam as andanças contínuas da humanidade em tempos imemoriais. E era isso que me fascinava.

Eu o contemplava com ternura, imaginando carícias minhas naquele cabelo tão loiro, naquela pele tão branca e tão tenra, naquele peito ainda imberbe diante do amor avassalador. Carregava em si as promessas de um homem que talvez pudesse me completar, mas era ainda um rapazote, sistemático e protegido em seus conceitos de mundo, com as solas ainda preservadas e um arsenal reluzente de possibilidades. Por isso, eu não ousava ultrapassar a linha invisível de nossa amizade. Talvez fosse melhor preservar a doçura daqueles olhos, esforçando-me numa espécie de contenção pouco usual para mim, a arriscar perdê-los por volúpia. Ele me olhava como menina, ainda que minha porção mulher-fêmea escapasse de quando em quando. Nesses momentos, ele se espantava, engasgava, apertava os olhos azuis amendoados como se buscasse um ponto longínquo num horizonte palpável. A Lilith que habita em mim suspirava resignada, e eu retomava minha rota platônica por seu corpo, por seu coração, por seus pelos quase invisíveis.

Jogávamos sinuca um dia. Numa das pontas da mesa, quase dobrada ao meio, eu analisava as prováveis trajetórias de uma bola de cor violeta. Na outra ponta, ele agachado olhava ora para mim, ora para meu decote, às vezes para a bola de cor violeta. Sorria, oferecendo-me inconsciente e inconsequentemente aquelas amêndoas azuis. Eu lhe ofertava minhas colméias plenas de mel. Estivemos enganchados nessa troca por não sei quanto tempo. Não consegui conter as lágrimas: era um choro suave e emocionado, como se houvesse conquistado uma bênção ingênua para a porção de minha alma ansiosa por perdões.

Ele disse algo em russo, quase captei seu cirílico. Não sei qual foi a trajetória daquela bola cor de violeta. Apenas me lembro do abraço longo e terno, em silêncio, que recebi com uma gratidão infinita. Houve um beijo rápido, quente, mas é da maciez daqueles finos fios loiros, tão bem guardada no meu tato, e da pressão tão respeitosa daqueles dedos em minha cintura que me lembro mais. Sempre me sinto purificada quando penso nele.

Uma epifania, com nome de apóstolo, em sua versão mais russa e mais provocativa. Quase um sacerdote dos novos tempos.

domingo, 22 de julho de 2012

deixa


Deixei a chave do lado de fora da porta. E ele entrou. Deixei minhas armadilhas ao lado da cama, e ali ele logo se deitou. Deixei meu coração sem defesa por um instante – e ele o arrebatou.

Aqui estou, tarde longa de domingo distraído, quase sem vento, quase sem solidão, à espera de uma sensação qualquer que possa ordenar a multidão de vontadezinhas e pensamentozinhos e fantasiazinhas e pedacinhos tortos de mim mesma espalhados nessa bagunça sem-fim. O telefone não vai tocar, o e-mail não vai chegar. Nem virão a carta, o verso, a foto, o postal. Me escapam a inspiração e o apetite; mas não há fome nem dor, apenas um leve calor de carne que existe, de sangue que corre, de desejo que acende, de mulher que ama. Falta ele, e ele faz falta.

As horas se arrastam para fazer companhia à minha espera. Drummond repousa na mesa de cabeceira, repetindo: reserve-se toda para as bodas que ninguém sabe quando virão, se é que virão. Aperto os lábios abortando um quase-soluço, tropeço na saudade e sujo as paredes com certas canções lacrimosas. Ele faz falta.

Deixei um mapa especialmente feito para ele, mas ele não voltou.

terça-feira, 26 de junho de 2012

o minuto seguinte

alma ou algema,
a dúvida naquela fração eterna de segundo.

[o corpo -- já entregue e ofegante --
jaz alheio
sob o som de digressões sensoriais]

alma ou algema,
ode a essa liberdade tão ousada e petulante,
alma ou algema,
teorias sobre o contrato, compromisso beligerante,
alma ou algema,
como um? se somos dois?

alma à toa,
algema toma,
entre o possível e a posse.

[o corpo se levanta, se veste e sai.
um corpo
-- a mão na porta, os pés no chão, pulsos e cansaços]

[volta se alma]
[algema e nunca mais se voltará]

segunda-feira, 25 de junho de 2012

vapor


és água e à água voltarás
fluido fluxo de opacidade transparente
entre sins e quase-nãos [nunca definitivos]
és água e passas, passas,
sempre mudas, às vezes gotas, em outras imensidão,
mas voltarás, eu que sei [sem saber]
entre os poucos nãos e os muitos enfins
para que eu te beba
baby  

segunda-feira, 14 de maio de 2012

admirável mundo novo


Fazia contas e fazia de conta. Soltava baforadas reflexivas sem pensar em nada. Mas pensava-se, pensava-se o tempo inteiro, imerso em fugacidades (quando-é-que-eu-vou-fugir-desta-cidade?). As estatísticas desconfirmavam a invisibilidade imaginada: ei, você. Uma vez, duas vezes, até três. Ah, sim?, pois não, ou pois é, ora pois... sempre se confundia depois. Números e porcentagens, amostras e cálculos, quais as teorias probabilísticas mais prováveis para explicar o que era inexplicável? Fazia de conta, mais que fazia contas, às vezes pedia socorro a um cigarro de palha, usava botinas de couro e achava possível chutar certas dúvidas e alguns medos para longe das impassíveis soluções (sim, elas não riem, dizia, quase como uma piada, mas sempre com uma pitada de nostalgia).

Certa madrugada, num daqueles momentos repletos de sem-quereres, descobriu, entre os algoritmos marotos, instantes de poesia. E revelou mais do que sabia, e arriscou mais do que entenderia, e desafiou a rigidez das decisões empíricas. Impossível prever o futuro, suspirou, e assim, meio ao acaso, de um jeito totalmente aleatório, aprendeu a inventar versos a partir das incertezas, de todas elas, em tardes imberbes ou em noites terrivelmente sedutoras. Admirável mundo novo, esse o dos astronautas e poetas. E, sem fazer muito, deu-se conta. Pois então.

encharcada

Chovia, chovia muito, chovia fora, chovia dentro, muito. Meu corpo alagava-se, alagava-se contorcido e ofegante. A melancolia acossava-me, numa violência espasmódica. Só não era maior que a opulência do desejo. O desejo. Chovia, chovia, chovia. Ouvia a água pipocar nas janelas do quarto, da sala, da alma. Entra, entra, entra. Vem, vem. Encharcada, eu tentava secar-me nos lençóis, no carpete áspero, em roupas espalhadas pelo chão – inútil defesa, ingênua ilusão, apenas pó e cinzas, cinzas de um passado futuro manchando a pele úmida, rosada e túrgida.

Para, chuva, para. Não parava: eu continuava alagando-me i-men-sa-men-te. A respiração escapava-me, goteja, goteja, já        já          já
gota
 a
gota
Chuva, vem, chove
Chove, chove, chove muito, vai, mais, me chove
e os lençóis, ah, o car pe te ás pe ro, as rou rou roucas roupas espasmos espalhadas pelo eu chão ah ah violentamente sufocante
Melancolia, por favor, me deixa um pouco a sós com meu desejo, nosso desejo,
me deixa, me chove
me
...
...


Trovão – a luz seca e cruel rasga doloridamente o céu úmido e atônito –
Gritamos todos: o céu e eu!!!

A chuva: chovia e continuava chovendo, chovia chuvisco chovia tempestade, chovia fora, chovia dentro, cada vez mais dentro, suspiro, desmaio, entrega:
“porque não”
“por que não?”


Alagada, chuva fora, chuva dentro, sufocada, desmaiada, melancolicamente entregue, cinzas e pó, a pele nua manchada suada rosada, tenho frio, soluço, soluço, o desejo carrasco, esse desdém na solidão mais feminina da face da terra. Naquela noite, era eu e a pura chuva crua, era a solidão mais feminina da face da terra, carpete áspero e olhos fechados, as memórias dos fechos refeitos e poças, muitas poças, de fluidos desperdiçados. Se houvesse ele ali, um diálogo quiçá pudera ter sido possível. Choveriam delícias, choveriam delicadezas e, no instante máximo de desatino, choveriam
uma mulher
e um homem.

sexta-feira, 30 de março de 2012

branco, escuro

(trilha sonora: http://www.youtube.com/watch?v=HhOC5D_fPto)

E no princípio era a imensidão.
De um lado, o mar dúbio. De outro, o mundo branco.


Pedaço.
Branco.
Continente.
Gelo.



O pedaço de gelo se desprega do continente branco.



O bloco compacto e plano se desprega da extensa, ampla e irregular camada de gelo. Uma decisão que pode ter durado segundos ou séculos. As pequenas rachaduras que se expandem em direção à superfície. Um ruído imperceptível. O tempo estava inerte. Não havia noite nem aurora boreal. Apenas aquele pedaço de gelo despedindo-se da inteireza branca.


(O universo era surdo ou o universo era mudo.)
O bloco. Água escura e densa, mas calma. O continente.
O bloco em movimento. Água escura e densa, mas em balanço. O continente parado, estático.
O bloco rumo à aventura. Água escura e densa, o impulso. O continente em seu lugar de sempre.
Alguns milênios na reorganização da terra, das histórias, aquele pedaço ainda era só uma frágil lâmina quando começou a se formar no seio daquela longa e contínua camada de gelo. A rachadura. A distensão. O bloco. A água densa e escura. O continente. Um decisão. Compacto e plano. Extensa, ampla e irregular. Camada. Pedaço. Fração de espaço. Todo o tempo.

Gelo. Branco. Água escura.

(O cheiro de café ainda contamina a xícara de dias sobre a mesa branca. Uma folha de papel voa para o chão. Uma folha branca.)


O bloco. O continente. Em algum lugar do globo acontece essa história: despedida. E aquele pedaço de gelo despregado da camada imensa branca. A decisão é minha: o salto. O bloco, meu barco pequeno e miúdo se ancora no bloco, as águas escuras

– escuro é o fundo da xícara há dias
– escuro é o tapete em que cai essa folha branca

milênios e milênios e agora
agora é aquele bloco solto à deriva do mundo
branco
-- oh, algo se divisa longinquamente --

solto nas águas
escuras
e eu

-- oh, as emoções das conquistas mais angustiantes --
um pequeno navio e sua âncora
no pedaço de gelo


um pedaço de gelo despregado da granda massa imensa massa branca
e no minuto 7.38 da música:
(faltam substantivos para riscos ainda não catalogados)

quarta-feira, 21 de março de 2012

lex complex

Estive catatônica um dia inteiro, um mês inteiro, todo um ano, quase uma década. Não sei quanto. Não me movia em direção a nenhum vento, a nenhum momento que explodisse diante de mim. Quem é você, me perguntava, cabeça no travesseiro, pés para fora do colchão, lágrimas cuidadosamente guardadas no peito apertado, trançado, traiçoeiro. Choviam dúvidas naquela época. Choviam preguiças: disto, daquilo, desta pessoa, daquela. Havia uns certos olhos verdes persecutórios na memória, a inflexão adolescente na voz que tentava ser adulta, a rudeza melancólica dos incautos, mas essas lembranças, antes de serem rimas, eram sentenças de agonia. Havia também outras recordações, de outra matriz, pernas longas e musculosamente finas, e aquela cicatriz ali. As entradas na cabeça, baías nos cabelos, outra voz com inflexão adolescente, voz que saía do nariz. Eram o quê esses?

Catatônica.
Catastrófica.
Catártica.
Tônica, strófica, ártica. Seria tudo mais simples se simplesmente fechasse a porta e arrancasse a campainha. Placa: cachorro morde tudo, especialmente vozes adultas com inflexão adolescente. Tônica. Placa: não reciclamos masculinidades rotas. Strófica. Placa: dispensamos sentimentos ressecados. Ártica. Por favor, meu bem,


Estive catatônica por toda uma temporada de caça aos bravos, aos fortes, aos viris e aos superlativos. Aos vencedores, as batatas, às perdedoras, pecados não consumados. Não me movia em direção a nenhuma onda sonora, nem abraço ao redor da cintura com direito a beijo no canto da boca. Bah. Beija. Bah. Beija. Brejo.


Vamos todos parar no brejo.
Aquela frase terminou no meio, sim.


Cata. Pega. Chama. Acorda. Tônica. Tranquei-me quando alguém foi buscar um dicionário, uma enciclopédia, uma entrada de verbetes, de desculpas, de explicações, de pontos sem “is” e sumiu. Vou ali comprar cigarros, pegar o dicionário de você. Hã-hã. Fiquei-me complicada, meu bem? Too much information for a desperate soul, darling? Oh, cariño!

Cata. Chama. Cata. Tônica. Despertei-me assim: uma voz adulta com vocabulário adulto e inflexão adulta, fazendo-me perguntas adultas e sem mencionar propostas. As mãos já estavam lá, o que dizer de...


Tônica.
Tônica: deste modo tenho estado, então. E já há algum tempo. (Atônita!)

sábado, 10 de março de 2012

solidão de menino



Pedrinho brincava com conchinhas, enquanto Ana mascava raivosamente um chiclete. O mar era ora suave e gentil (para ele), ora bruto e ruidoso (para ela).
Por que a mamãe não vai voltar?, muco e areia se misturavam no rostinho rosado, olhos grandes e escuros, o cabelo curto em desalinho, os chinelinhos molhados esquecidos lá atrás.
Porque ele não quer.
Que ele, o papai?
O papai também não vai voltar.
Mordeu a língua e sangrou. Cuspiu a goma manchada e respingou lágrimas na camiseta amarela de menina grande, com corpo em mutação. A existência queria fazê-la crescer à força, ela resistia, furiosa e indócil.
O castelinho de conchinhas subia, subia. Fazia fresco naquele meio de tarde, meio de semana, meio de vida, meio do nada: interrupção, elo perdido, página em branco no meio das folhas de um livro de letras miúdas, incompreensíveis. Dois perdidos numa tarde suja.
A mamãe foi para o mesmo lugar onde está o papai?
Não.
Ninguém escolhe a hora de crescer: a gente simplesmente cresce. Chega o dia em que, subitamente, a inocência se esvai. Assim, sem mais. Ontem, o mar era infinito e a areia, macia. Os minutos passavam indiferentes, e os problemas se resumiam ao gosto da sopa ou a hora de dormir. Hoje, o mar termina ali, a areia incomoda os pés e os olhos, tudo urge e os ombros doem de tanta responsabilidade.
Mas onde está a mamãe?
Com Deus.
Agora havia um segundo castelinho de conchinhas e uma frágil ponte de palitos de sorvete unindo os dois edifícios. O mar parecia avançar, a tarde parecia avançar, o tempo parecia ter abocanhado um bocado de vida. Da vida de ambos.
Quem é Deus?
Deus é o criador do universo, o senhor de todas as coisas, o chefe dos seres vivos e não vivos, quem apaga e acende a luz do mundo.
Ele é mau?
Sei lá, Pedrinho.
Acho que ele é mau, porque não deixa a mamãe voltar.
O garotinho, naquele instante, envelheceu um milênio. Olhou absorto para os desenhos que as ondas formaram na beirada da areia. Apertou os olhos para definir melhor os contornos das águas.
É. Ela não vai voltar.
Outro chiclete na boca, os dentes quase trincando de desespero, lágrimas inundando a camiseta amarela de menina grande, consciente de que já é grande. Era imensa. Maior que aquele oceano ali na frente. Pedrinho destruiu o segundo castelo de conchinhas. Quebrou os palitos de sorvete ao meio. Franzia a testa.
O papai está onde?
Papai. Palavra brega para ouvidos adolescentes. O cheiro de gelatina que vinha da cozinha. E agora, Aninha? De que sabor é? Aninha, que cabia no abraço daquele homem sorridente e descabelado, com camisas quadriculadas e bermudas de listas. Morango? Ai, papai, não sei. Acho que é de gelatina amarela. Qual fruta, Aninha? Maracujá! Um abraço. Pipoca com pimenta. Chega de pimenta, Aninha. Mas o papai pôs pimenta também, eu quero igual! Canta de novo, papai, canta de novo! Paquepaquepaquetá, pucopucopucolá!
Na puta que o pariu.
Que é puta?
Para de fazer pergunta.
Ela cuspiu o chiclete, ele chutou o castelo de conchinhas remanescente. Um silêncio solene de mais de um minuto. Nem piu, nem paz. E, então, o mar estalou: chuá. E ambos choraram alto. Ela furiosamente, ele convulsivamente. Tarde vermelha, estômago revirado, lembranças aos borbotões. Ah, solidão. A solidão experimentada às seis da tarde, aos cinco anos de idade, aos treze anos de idade, à beira-mar. Na ponta do precipício: isso, para vocês, é viver.
Por que ele foi embora?
Porque ele é um idiota.
Mas ele está com Deus também?
Não. Ele está na merda.
Fala a verdade! Onde está o papai?
Ele foi embora, Pedrinho. Ele não quis saber da gente. Nem de mim, de você, nem da mamãe. Esquece ele, caramba.
Os bracinhos ao longo do corpo, os pezinhos descalços e úmidos, o peito úmido, os olhos grandes e escuros e vermelhos e transbordantes, o desespero nuns quantos metros de altura, desolação, a boquinha aberta cheia de gritos doídos. As pernas ainda indecisas se de criança ou de adulta, a camiseta amarela de menina grande que não conseguia esconder os seios nascentes, o short molhado de mar e de sangue, um sangue intrometido que não tinha que estar ali naquele momento, naquele dia, naquela pessoa, naquele pedaço de universo.
Você está machucada.
Anos-luz. Algum professor tinha falado em anos-luz. A sabedoria em anos-luz.
Pois é. Estou machucada, sim.

Pedrinho foi até Ana e lhe estendeu os bracinhos. A irmã o acolheu num abraço terno e soluçante. Assim ficaram, até despontar a primeira estrela no céu.
Seu machucado dói?
Um pouquinho.

Tá ficando escuro.
A gente ficou sozinho, então?
Ficamos. Mas eu estarei sempre com você e você estará sempre comigo.
Eu sei, mas Deus não vai deixar a mamãe voltar.
Não.

Como é o nome disso?
Disso o quê?
Que a gente sente.

Agora, se fosse possível, queria aumentar o barulho do mar. Escuridão, abismo, sótão, nadez? As conchinhas dos castelos destruídos fazem crec, crec. Anoitece.

Solidão, Pedrinho. Isso se chama solidão.

quarta-feira, 7 de março de 2012

você e ela



Quando ela entrou no cinema, um ar entre distraído e melancólico, você foi logo pensando: essa é só para comer. Olhou a regata justa, avaliou os seios interessantes, a cintura que denunciava alguma gordurinha localizada, observou a saia que escondia o quadril nem grande nem estreito. Não gostei dessas pernas, você foi taxativo. Não gostei desse cabelo, você acrescentou. Ela estava na fila para comprar a entrada, mas você já concluía que seria impossível para ela gostar de algum daqueles filmes em cartaz. Muito arrogante para o filme italiano, provavelmente ignorante para o francês; despistada demais para o indie estadunidense, ingênua para o chinês. E certamente orgulhosa para o brasileiro, com sua protagonista linda, que a mataria de inveja. Tudo isso você pensou, ali, sentado no café, à espera da abertura da sala. Quando ela se aproximou da vitrine dos livros, igualmente à espera, você logo vaticinou: vai buscar um Paulo Coelho, vai dar com os burros n’água. Ou vai fazer o tipo que lê, folheando um Paul Auster ou um Stéphane Hessel. Saiu dali com um livro de Wislawa Szymborska e um molesquine, e você logo imaginou: presente para algum idiota que ela queira seduzir.

Ela se dirigiu para a mesma sala que você – a do filme francês – e você estranhou o fato de ela não ter comprado um saco de pipoca e uma latinha de refrigerante. Deve ser do tipo que faz ruído quando impera o silêncio, era o que você tinha intuído, mas deixará o celular ligado para que o alarme de nova mensagem soe no meio do longa-metragem. Nada soou. Você achou que ela fosse escolher uma das fileiras do alto e, insolente, estender os pés sobre a poltrona da frente, mas ela sentou muito alinhada, próxima à tela e mais à esquerda. Talvez ela saia no meio do filme – ou para ir ao banheiro, ou porque não está entendendo nada –, você disse a si mesmo, porém isso não aconteceu. Ela ficou ali, até o último crédito, enxugando alguma lágrima perdida (como você) e escutando a canção até o fim (como você), talvez se lembrando de alguma história recente, de desencontro ou ruptura, ou de outros filmes franceses vistos ao lado de um antigo amor (como você).

Quando ela se sentou no café, você se indignou: ela deve ser uma adicta à cafeína. E, embora não tivesse vontade de beber nada, sentou-se também, quase escondido na mesinha do canto. Esperou que ela bebesse coca-cola, ou um capuccino, ou espresso com chantilly, que comesse um petit gateau ou algo muito doce, a fim de comprovar sua teoria de que era uma mulher bastante previsível, mas ela pediu apenas um suco de maracujá. (E você, uma água com gás.) Não gostei desses lábios, você voltou ao ataque, muito observador. Nem de seu pescoço. Você fantasiou como seria fazer amor com essa mulher e sentiu-se mareado: deve ser frígida, ou mal-cheirosa, ou disforme, concluiu. Ficou intrigado com o olhar perdido e triste dela e com o fato de ela folhear assim, despretensiosamente, o livro de Szymborska. Não deve estar entendendo nada dos versos, considerou você, nem da vida. Você a achava cada vez mais feia e mais asquerosa, porém entre pernas algo intumescia. Você a imaginava abominável e cruel, contudo seu coração acelerava cada vez mais. Essa mulher deve detestar abraços, você soluçou.

Quando ela se levantou para pagar, você estava seguro: pedante, ela vai usar o cartão de crédito. Mas ela estendeu uma cédula de pequeno valor, e você engoliu seco o argumento seguinte, ainda em elaboração. Ela deve ter uma voz estridente, um sotaque enjoativo, os dentes amarelos e mau hálito, você tinha certeza. E, para comprovar sua indomável opinião, aproximou-se. Ela fingirá não me conhecer, ela se ofenderá com a minha abordagem, ela vai virar as costas e sair correndo, tudo isso – e em fração de segundos – você pensou. Mas ela pareceu surpreender-se com sua presença ali, de carne e osso, na frente dela, e, com um sorriso tímido e uma voz adorável, os olhos baixos, as mãos suadas, perguntou como você estava. Você não sabia o que dizer. Você não disse nada. A garganta estava seca, você todo tremia, a respiração ofegante. Você pediu um abraço, ela assustada abriu os braços, você suportou apenas uns quantos segundos até desvencilhar-se e sair correndo.

Foi a segunda vez em que você saiu correndo diante daquela mulher.

A anterior, você queria borrar de suas lembranças, mas não conseguia. Foi no dia seguinte a uma noite mágica, depois de ter saído com ela, conversado com ela, se descoberto encantado por ela e dormido com ela. Envergonhado de si mesmo, inseguro quanto ao que ela poderia achar de um cara como você, você saiu correndo. Desapareceu. Não ligou, não escreveu, não deu notícias. Tentava, escondido e calado, saber mais dela por meio das redes sociais – mas a amizade virtual entre ambos foi desfeita algumas semanas mais tarde. Você sabia que ela gostava daquele cinema; dos diretores daqueles filmes – fora ela quem lhe apresentara o cineasta francês, por exemplo; você sabia que ela gostava muito de você. E, ainda assim, você saiu correndo pela segunda vez.

terça-feira, 6 de março de 2012

Huellas



Terminarás odiándome, me dijo.
Yo miraba la ventana de la cocina, intentado mensurar los aportes de la lluvia al jardín. La tostada en mis manos ya estaba por crear tela cuando la decidí comer. Y comenté en voz alta, así casualmente, como se hablara a las migajas sordas sobre la mesa, a mi café ya frío, a hormigas invisibles: tu mermelada de fresa está riquísima.
Él tenía esa costumbre – coger frutillas silvestres para preparar mermeladas. Estaban ahí en la mesa, acompañando huevos revueltos o queso fresco. A veces las hacía de naranja con jengibre, en otros momentos de plátano, a menudo de fresas. Mi sueño, me comentó cierta vez, mi sueño es construir una casita en el pueblo de mis abuelos, meter ahí mis discos, mis libros, una mesita donde pueda escribir. Quizás tener un perrito juguetón, unas ventanas inmensas de donde se vea la montaña. Y por lo menos tres veces a la semana coger frutas para mermeladas. Yo, despistada, pronto imaginé una bodega rústica llena de potes coloridos de sabores diversos. Creo haber añadido la posibilidad de un huerto o de un jardincito con flores. Él no me miró; mantuvo sus ojos clavados en el horizonte. Había algo de dolor en aquel silencio.

Terminarás odiándome, me dijo.
Yo organizaba los libros en el estante, intentado cambiar la distribución de espacios y así darle a la pequeña biblioteca una cara nueva. El postal ya medio amarillo se quedaba ahí, sobre la alfombra verde, ignorando por completo mis movimientos mientras yo buscaba fuerzas para tirarlo a la basura. El atardecer en Tossa ya se vía descolorido, las letras ya habían perdido energía y el sentido: gracias por compartir tus nubes y tus brisas.
Él me comentaba de sus caminadas en la playa, temprano en la mañana, la parada para algunos ejercicios en las barras, los gatos que surgían de todas las partes cuando aquel señor viejito pasaba por allá con sus trozos de pan duro y seco. Tenía su escondrijo ahí, un banquito estratégicamente puesto atrás de unas piedras, ya sobre la arena, muy cerca del mar. Un día se inventó un barco imaginario que lo llevaría del Mediterráneo al Caribe, ultrapasando distancias y fronteras, reglas y prohibiciones. Yo, animada, pronto me apunté para hacerle compañía. Creo haber sugerido la posibilidad de bajarnos al Atlántico, viajar con los delfines y encontrar una isla desconocida disponible para nosotros. Él tampoco me miró, quizás ni haya escuchado; sus ojos, como siempre, los mantuvo clavados en el horizonte. Había algo de ruptura en aquel silencio.

Vine a comprender su enigmático aviso algunas semanas después, cuando partió sin avisar o despedirse. Cargó toda su ropa, todos los libros, algunos muebles y aderezos de la casa. Su mejor amigo me comentó que el plan era jamás volver. Capítulo cerrado es capítulo cerrado para él, dijo. Fue a vivir una historia de esas que decía odiar, con el clásico final: “y vivieron felices para siempre”. Pasé unos días confundida, sin comprender a veces por que llovía, ventaba o por que motivo las berenjenas se quedaban demasiado cocidas. Tampoco entendía por que la gente alrededor hacía tanto ruido, por que el reloj tardaba tanto a cambiar de horas o por que mi corazón súbitamente se callaba. Pero no terminé odiándole.

Aún hoy dibujo el personaje “él” que en mí se quedó en hojas ya amarillas del tiempo o en tostadas saladas, en ciudades sin mar. No terminé odiándole, al revés.
Había algo de ruptura en mi propio silencio.

Necesito decirte: adiós.

segunda-feira, 5 de março de 2012

alto


Y, porque quiso soñar, voló lo más alto que pudo. Y, porque voló alto, no pudo más volver. En aquella mañana, muy temprano, logró alcanzar la ventanilla más alta de la torre medieval; su naturaleza de pájaro ocultaba su esencia casi humana: sí – confiaba – había algo allá a su espera; sí – el pequeño corazoncito pulsaba – había algo allá que buscaba. No se sabe cuanto tiempo tardó hasta que se diera cuenta de la trampa: la ventanilla se estrechaba hacia adentro, impidiendo la salida. Tampoco se sabe si el hermoso pájaro se desesperó. Si cantó la música más dulce que conocía, si murió de sed, de hambre o de saudade. Si en algún momento tuvo la certeza de que por fin volaría hacia la eternidad. A veces, alguien visita la habitación secreta de la torre; observa el piano roto y cubierto por una capa de polvo, las dos o tres sillas cojas de una o dos piernas, trozos de un papel amarillo casi deshecho y ya pegado al suelo. Allá, al costado, dónde llegan los rayos del sol, están los restos del pájaro – pero él ya no está, seguramente no. Y, porque quiso soñar, voló lo más alto que pudo. Y, porque voló alto, no pudo más volver. Y, porque no pudo más volver, ha empezado a soñar.

domingo, 4 de março de 2012

di (gress-gest) ões


Viajo porque te amo, volto porque preciso. Não sei se te amo. Tu não estiveste sempre onde dizias estar. Mas viajei. Viajei e te encontrei, encontrei quem dizias que eras, mas não sei se de fato te reconhecias em quem ali estavas. Voltei por precisão. Não sei se precisava voltar. Me sentia frágil por ti. Te sentia frágil por mim. Nem sempre gosto do retorno: quando viajo, quando volto. Nem sempre gosto do amor: por ti ou por mim. Te amo porque viajo, preciso de ti porque volto. Quando estou fora, te vejo mais próximo. Quando chego de volta, te quero porque estás distante. Mas não sei quem és quando não estás em quem dizes ser. Tampouco reconheço o lugar ao qual retorno, sempre muda, tudo muda, especialmente eu. Mas tu também. Viajo porque preciso, volto porque te amo: que difícil confissão, mas confesso. Uso todas as letras, abuso das palavras, te digo a ti e te repito. Os porquês são complicados e confusos; não preciso, quero. Não sei se viajo, me movo. Te amo assim, mas talvez só pudesse gostar de ti. Preciso porque te amo, volto porque viajo. Deste modo é mais claro e mais fácil, só não sei se mais verdadeiro. Voltei a te amar, preciso viajar. Preciso te amar, voltei a viajar. Descompassos. Já sabes: existes tu, existo eu. Quem sabe, então. Até que enfim.