terça-feira, 28 de julho de 2009


Voltar para onde tudo começou: Deus.

Essa existência é um longo preparativo... Ufa, às vezes me canso e me sinto pronta, mas sei que não estou.

Entre a eternidade e a imortalidade, sou muito mais a primeira. Não tenho nenhuma pretensão de estender a distância de minhas origens, pelo contrário; quero largar-me nelas e aí estar estar estar no ser, no Ser. Mergulhar definitivamente no Amor.

arroubos

(mfv, 2009)


-- Mas por quê?

-- Não vou repetir de novo. Já quebrei o disco arranhado há tempos. Você não quer me escutar de verdade. Se quisesse... -- bufou.
E então o inóspito: a maçaneta ficou na mão dele, impedindo-o de ir embora.

Ele chutou a mala, ela largou a almofada no chão. Silêncio. Silêncio. Bufo, suspiro. Silêncio carregado de tensão. Aquele olhar, ai, meu Deus. Eles se agarraram, se amaram, gargalharam, choraram, se desculparam, abriram uma garrafa de vinho reserva de 2004, juntaram as roupas dela em outra mala, arrombaram a porta e, em plena segunda-feira, às 16h14, pegaram o carro rumo às serras fluminenses ou à costa baiana ou aos interiores de algum lugar lindo e só deles. E falaram muito, muito, diálogos que há tempos não tinham, inclusive sem palavras.


quinta-feira, 23 de julho de 2009

Parada naquela estação

(MT, 2009)


Era um dia incrivelmente bonito: ensolarado, com algumas poucas nuvens inventando sombras e frescores e uma mescla de perfumes difusos anunciando tarde cheia de promessas. Um dia que se revelava enternecido. Um dia para uma reconciliação, um sorriso, um laço – e não para uma partida.

Mas foi quando você decidiu ir. Respirou fundo ao se espreguiçar. Na verdade, você não tinha dormido. Virara tanto na cama quanto suspirara embaixo dos lençóis, tentando dialogar com os espaços de tempo entre os segundos, para que o relógio não avançasse, e com os espaços entre nós, na tentativa de corrigir abismos. Também eu não dormira. Me forçara a sonhar acordada, imaginando uma compilação de novos verbetes que nos ajudasse a lidar com os diálogos já sem rumo. Respirou fundo. Entendi. Voltou seus olhos úmidos para os meus, já secos e inchados, tocou meu rosto. Não nos doíamos pela possibilidade de um de nós amar um outro, uma outra. Doíamos porque já não nos amávamos, porque sabíamos disso e porque, embora parecesse certo tentar remontar o quebra-cabeça de nossas emoções e querências, não tentávamos. Sua mão tocou meu rosto, meu colo, meus seios, minhas pernas, minhas costas, meus cabelos, seus lábios roçavam os meus, gozamos juntos com os olhos fixos nos olhos do outro. Impávidos. Você, então, se levantou. Vestiu-se. Lentamente juntou seus ternos, suas camisas, suas calças. Dobrava com cuidado, como nunca fizera. Eu soluçava – você buscou um copo d’água, sentou ao meu lado, segurou minha mão. Chorou. Recorríamos os mesmos recantos do quarto com nossas lembranças: a escrivaninha, a poltrona, o armário, o quadro, a luminária, nossos chinelos. Recolhi suas meias na gaveta, suas cuecas e, com delicadeza, coloquei na mala. Respirou fundo de novo. Respirei fundo em dueto. Não dissemos nada. O silêncio carregava tantas juras quanto cobranças e ambos estávamos cansados. Quando você saiu do quarto, do apartamento, fechei as janelas novamente. Puxei as cobertas, me escondi nos espaços já preenchidos no lençol, nas dobras que guardavam seu cheiro. Fechei os olhos com força, voltei a soluçar, rebobinei a manhã, a madrugada, a noite, a vida inteira. Ouvi o apito do trem, corri para a estação. Balançando os pezinhos no ar, me mantive aguardando a chegada do trem – e do outro, e do seguinte, e do que vinha depois, e do que vinha no outro dia, na outra semana, no outro mês. Você nunca veio com o trem. Você nunca voltou com o trem.

Fecho os olhos com força todas as vezes que a janela denuncia um dia ensolarado, com algumas poucas nuvens, tardes que querem trazer promessas. Sempre prolongo o sonho, inventando todas as vezes a mesma partida. Você respirou fundo. Eu pus suas meias na mala. Nos olhávamos fixamente enquanto gozávamos. Porque você nunca partiu – você desapareceu. E isso abriu um buraco tão imenso em meu gostar que sucumbi à queda. Eu preciso desta estação porque você nunca foi embora. Você, simplesmente, dissolveu-se numa tarde morna qualquer, como se jamais houvesse existido. Como se eu o tivesse inventado. Como se não tivesse havido um casal eu e você, você e eu – prolixo, imperfeito, sanguíneo.



Até hoje fico parada naquela estação, imaginando trens. Um trem que traga você – para que, finalmente, possa partir.

domingo, 19 de julho de 2009

Dora

(mfv,2009)


O dito se referia ao espelho, mas Dora suspirou ao recolher os cacos do cristal estatelado, estatelado como suas últimas esperanças. Sete anos de alguma coisa – azar, sorte, felicidade, tristeza, angústia, stress – era muito tempo. Preferia pensar em sete minutos, tempo não tão rápido como os segundos nem tão longo como as décadas. Os cacos, o cristal, o chão, a janela, o telefone, o lixo, a privada, o armário, a escrivaninha, os cacos de novo. Era quase manhã, mas ainda estava escuro dentro de Dora. A Dora, a Dora de agora, a Dora que adora hora, a Dora que demora, a Dora que ignora, a Dora que chora, chora muito a Dora, a Dora senhora de seus cravos – as flores – e de suas sardas – discretas –, a Dora que levou um fora. E a taça, presente inclemente, estraçalhada como suas últimas esperanças, pois sim. O dito se refere ao espelho, Dora. E ele, neste momento, te olha. Sim. A palavra é esta: embora.


sábado, 18 de julho de 2009

Esse é meu mundo ou é o mundo de então?

Respiro longo e empurro para fora
Pequenas melancolias, grandes delicadezas
Em prolongadas aspirações
Labirínticas inquietudes sabor jornal
Enquanto tudo roda roda roda
Passa passa passa
Corre corre corre
Diante de mim mesma estupefata:

! ! !

Queria um único dia
Único
Fingir que sou vegetal invertebrada dessapientizada
À mercê da fotossíntese e dos ciclos de auroras
Quase imóvel
( )
Apenas sorvendo as sombras, os reflexos e os pigmentos
Das cenas vivas
>>>

Es pa s mo s
“ ”
Eis-me

.

Esse é meu mundo. É o mundo de então.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

romantílica que só

(MFV, 2009)


Eu não acredito mais em histórias de amor, disse ela, bêbada, ainda que continue a escrevê-las sempre, com batom quando for preciso, com saliva se for dispensável. Fragmentos de sua pessoa caíam aos borbotões pela rua ainda úmida de ilusões e adeus. Alguns restos de lixo perturbavam as esquinas nem tão escuras quanto muitos gostariam. Botas de cano longo e salto fino misturavam-se a gatunos à espreita. Eram infelizes, todos, menos ela, ela bêbada, ela lúcida, ela desamada desanimada inanimada unânime na decisão de desacreditar das histórias de amor, especialmente as românticas.

Como se histórias de amor pudessem ser algo além de românticas, interrompeu ela, discordando inocentemente, incoerentemente, porque também acreditava que as histórias de amor pudessem ser qualquer coisa, pudessem ser histórias de amor heróicas, infames, de terror, dramáticas.

Tá. Odeio especialmente as românticas.

A noite não se calava, o silêncio era abrupto e o vento, rancoroso. Os olhos borrados, os lábios ainda tão bem pintados, os cabelos se lançavam ao balançar de seus passos incertos, incorretos. Havia um vácuo de fêmea, uma incrível crise de sentimentalidades, pulsava, é certo, pulsava vaginalmente, seu coração estalava, e ela ainda se fazia crer que tremia de frio.

Qual o quê!
Qual o quê, ela depois diria, tomando um chocolate quente meio amargo, meio dolorido, deveras penoso para a mulher que era. Digna, digna, muito digna, bonita a seu modo, indiferente sem querer, estampada nos postes, nas paredes, nos letreiros, nas cartas já desfeitas, nas linhas tortas. Amava tanto, mas o problema é que ainda acreditava que qualquer dia desses ainda toparia com um cara que iria amá-la também, e mais: que iria querer passar mais de um dia, uma semana, um mês, um ano a seu lado.

Decididamente, engasgou ela, com a língua queimada pelo chocolate, não existe amor romântico. E cuspiu um restinho de fantasia, teimosa, entre os dentes.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

e(u)fe(me)rida(s)des

(MFV, 2009)


Já nem éramos mais
E restávamos, ainda inteiros,
Das intempéries ora íntimas, ora forasteiras
De toda uma avalanche de objeções e securas
Muitas cultivadas feito larva, feito lava, feito lavra
Por nós mesmos

Havia uma esperança
De reconstrução de espaços, de ventilação dos silêncios
Ausências pesadas, incongruências fluorescentes
Trôpegos, tropeçantes
Havia
Sempre ia, vai, iria, haveria,
Enquanto que

Mas danamos as conjunções e as conjugações todas

Se tristeza, se vazio gatuno, se vaza
As fantasias todas presas com colchetes coloridos
Imagens projetadas, sombras na parede, sombras claras, mas oras!
Sombras!
Não, não, nada disso, não, o que queríamos mesmo
Era voar livres.

E vivos.