domingo, 9 de dezembro de 2012

nonada: donada

Seguia as pegadas do rio. Um rio que quase nem estava, mas generoso me tocava, como amigo que conforta aquele que fica depois que todos vão. Eu não me conformava: queria ir também. O barro sedoso me acariciava os pés, alisando cutículas e quereres diminutos, cuidando dos calos, das unhas grosseiramente aparadas. Garras. Vez ou outra, me largava de joelhos, como se pedisse clemência, ah meus pecados todos, esses dizeres que eu digo e depois não consigo apagar. E logo ganhava um abraço, efêmero, fluido, da água morna.
Araras. O sol ardia, a saudade ardia, a cicatriz recente doía, doía -- doce, abrupta, cor de mel. Os buritis davam ritmo aos minutos, já que o tempo tinha se perdido de mim. Que sons eram aqueles? Cavalos? O rio não tinha pegadas, mas eu continuava seguindo rastros quaisquer: era por ali que eles tinham ido. Minha sombra corria na frente de meus delírios, meus sorrisos nervosos despediam minhas sanidades e ao longe, mas lá bem ao longe, vozes me confundiam, me confundiam com os pássaros, as vozes se confundiam com os pássaros, eram de novo as araras, os cavalos?
Me deixava embarrear com generosidade, esbarreava, embarreava, nada já me barrava, amigo esse rio, que não tinha vergonha de sua fragilidade escancarada. Quase nem rio, tão rio, quase sem água, vazio, mas tão cheio. [Eu o preenchia inteiro.] Os buritis. A cicatriz. As margens arenosas do período de seca acolhiam nossa mútua companhia às margens de dentro, quando estávamos ali. Carcaças. A seca que sorvia a água e desamparava o rio me desamparava também. As boiadas deviam passar longe, bem longe dali.
Era agosto, e as poucas nuvens no céu não suportaram o ardor das queimadas nas entranhas dele: acolheram-no, cordato e gentil, todos cordatos e gentis, todos menos eu. Segui as pegadas do rio no próprio rio, em sua estranha sobrevivência de quem chora sem lágrimas e ama sem amor. Tocava o fundo de mim mesma ao tocar o fundo exposto daquele rio quase seco, experimentando a nossa síntese.
Quando optei pela urbanidade, tinha a enganosa expectativa de ficar ainda mais e mais e mais na margem arenosa sorvendo os sons, as sedes, as súmulas, os sumiços e os nossos sonhos por mais um pouquinho assim de eternidade. Mas não era mais verdade -- e hoje jazo sob o concreto sujo, seco e duro, sem comiserações. Não existem mais rios. Não rio mais.


sábado, 8 de dezembro de 2012

eu e ele, um capítulo nosso

(ya sabes que es para ti)


Antes, *ela* era apenas um personagem em duas fotos bem colocadas na estante dos CDs. “E isso importa?”, ele rebateu, quando interrompi nosso primeiro beijo para apontar o tal porta-retrato, eu, toda acuada no sofá. Encostei meus lábios nos dele e contive sua pressa com minha língua. Aos poucos, encontramos um ritmo nosso, intenso como nós dois, insolente como nós dois, mas respeitoso à austeridade das histórias que nossos corpos carregavam, das histórias do mundo que nos transpassavam. Não, *ela*  pouco importava. Pouco importou até um mês e meio atrás.

Havia devorado meio saco de batatas fritas com a plena consciência de que isso não suavizaria a angústia de sempre e que a única serventia de meu ato rico em gordura saturada seria sublinhar o cansaço. Porque também me sentia uma espécie de gordura saturada: densa, saborosa, ciente de minhas propriedades, mas definitivamente perigosa para corações alheios. Corações alheios! Ele estava agora preparando sua viagem a Genebra a fim de encontrar *ela*, a nobre e digna *ela*, que terminava um curso de observadora internacional de processos eleitorais problemáticos. Em breve, disse ele com orgulho, *ela*  receberá uma missão para seguir a algum canto do mundo. Sem ele, obviamente. A tão bem-preparada *ela*  que aparentemente pouco se importava com a anatomia física e intelectual de seu ele, com sua arrogância de literário, sua habilidade em preparar arrozes variados e bifes à milanesa. O porto seguro desse homem que escrevia e transava com a urgência de quem dispõe de apenas uma hora: uma hora de divã, uma hora de visita conjugal, uma hora de descanso, uma hora de exercícios nas barras, uma hora de viagem até o recanto preferido na praia.

As minúsculas guerras cotidianas que cada ser humano trava diariamente dentro de si, estando o não consciente disso, são tão sangrentas e estúpidas quanto esses atos coletivos de catarse e barbárie. Eu sabia que alguma comoção lhe causava, ao mesmo tempo em que tentava eliminar qualquer possível expectativa que teimasse em brotar dentro de mim. Não estou apaixonado, você me entende? Não estou. Ele me repetiu isso três vezes num dia em que saímos. Outras três vezes três semanas mais tarde. Acho que já sei qual é seu número mágico, ironizei. Numa tarde de inevitável comoção, não quis me olhar e comentou que sonhara com três filhos. Sabia que, aos 50 e poucos anos de idade, era uma visão quase piegas e melancólica da tal família perfeita, mas, se sonhava com isso, fazer o quê? 

Ele voltou a tocar minha mão: "se não eu e *ela*..." Não disse mais nada. Eu não queria ouvir qualquer murmúrio, porque a única coisa em que pensava era em meu desejo imenso de ter um filho com ele. Que juntos pudéssemos escrever nossas obras, cuidar de orquídeas e de oliveiras-anãs, cozinhar especialidades várias e cuidar de um bebê. E que *ela* se apaixonasse por algum alto executivo das Nações Unidas, mudasse de nome, pintasse os cabelos e fosse para bem longe, deixando-me em paz e a sós com meu homem.

Mas hoje era uma quinta-feira como qualquer outra, passava das 14 horas, eu havia devorado a metade que restava das batatas fritas e aquela tarde de sábado de quase um mês atrás tinha virado uma fotografia em algum porta-retrato da memória dele. “E isso importa?”, ele teria perguntado.
 
Lonjuras.

Talvez naquela imagem escondida e largada entre as lembranças reprimidas de nossos corações estejamos ambos de olhos fechados, sonhando com tardes lilases nossas, à beira-mar.

ascolta l'infinito



Dimmi “ascolta” e ti lo faccio, ti faccio ascoltarmi. Dimmi ti amo e ti lo faccio, ti faccio anche amarmi. Dimmi tutto, sia tutti, dimmi quello che vuoi ed anche quello che non posso volere. Ti posso chiedere se vuoi volare, ti posso chiamare per accompagnarmi, ti posso dire che ormai non posso se non sei vicino a me. Allora mi faccio ascoltarti. Adesso mi faccio amarti. Così voliamo, così vogliamo.