sábado, 18 de setembro de 2010

expurgo

"E eu vim-me embora, meu Deus, eu vim-me embora."
Lixo e Purpurina, Caio Fernando Abreu




Hoje não tem beijo. Nunca mais vai ter. Não olho para trás, mas minha nuca o observa sorrateiramente. Ele ainda está lá, em pé, olhos baixos, ombros caídos. Sua prepotência contrasta com aqueles malditos ombros caídos. Agora constato: ele parece um armário mal-acabado. Um armário de cores pálidas, bloco compacto sobre duas palafitas. Ele fica lá, em pé. Ele espera a outra. Ele nem se importa mais em disfarçar. Não, me disse, devorando um bolo de chocolate – porque ele adora doce, porque ele se empanturra de doce para não se empanturrar de sentimentos, porque ele é feito de pedra e de pavor – não, não quero pertencer a ninguém. Então, antes de você, depois de você, antes das 20h, durante as 20h, depois das 20h, sempre haverá alguém. Uma outra, qualquer outra. Assim como você é uma-qualquer-você. Uma pessoa, diz ele ao telefone à outra, estou com uma pessoa. Naquele momento, diante daquele homem com uma horripilante e minúscula baba de desprezo escorrendo do lábio fino e encardido, naquele exato momento, não sou nada além de uma pessoa. Uma pessoa desprovida de pessoalidade, sem cheiro, sem sexo, sem suco, sem sangue. Uma pessoa-rubrica, um nada-pessoa.


Hoje não teve beijo nem nunca mais haverá. Não olho para trás, mas sei que ele permanece em pé, derrubando ainda mais os ombros, como se não suportasse a própria prepotência. Em dois, três segundos, tudo estará acabado, quando eu cruzar aquela porta, quando a outra chegar, talvez antes até, quando ele se sentar, tudo estará acabado. Definitivamente. Não, eu não olho para trás, mas minha nuca revela que ele procura migalhas sobre a mesa, que ele sente um certo desconforto, que o relógio marca um atraso que não deveria acontecer: o ponteiro já deveria ter avançado à hora seguinte, mas teima em girar em torno do traço anterior. Um traço-pessoa, um apêndice de qualquer coisa que deveria ter ficado dentro do armário.


Não guardo mais beijos, todos ressecaram, todos estragaram, cheios de carunchos, cheios de vazios, cheios de cansaço. Lavo desesperadamente meus lábios que quase tocaram aquela baba repugnante que pingava daqueles lábios finos e cínicos. Lavo desesperadamente as mãos que quiseram investigar as ranhuras daquele armário blindado. Lavo meu corpo, esfrego até sangrar todas as partes que roçaram o não-corpo daquele não-homem. Sangro, sangro doidamente, doídamente, sangro infelicidades dormentes, mas sangro humanamente até me expurgar.


Se eu pudesse, quebrava aqueles malditos ombros caídos para eles nunca mais derrubarem alguém. Se eu pudesse, arranhava aquelas infames palafitas que sustentam inverdades e sarcasmo. Se eu pudesse, ah, se eu pudesse, eu empurrava de volta toda a crueldade vomitada por aqueles odiosos e repugnantes lábios finos.



Tenho muito nojo.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Ah, esse som esse suor esse sumo que escorre de você direto direito diametralmente perfeito Ah, esse sim esse sei esse a gente o tudo o nada agora e depois Ah, quanto quando quase creme acinzentados doces esses olhos sua minha sim minha boca rósea rósea e túrgida Ah, as costas as pernas as coisas apenas porém tão e tão Ah, as mãos a respiração sua versão minha tentação nossa vamos voz vez de novo Ah,

Ah

Ah

Ah

domingo, 12 de setembro de 2010

rascunho

tinha algo fora de lugar naquele quadro de cores fortes e uso tão adequado de luz, com dois personagens bonitos, embora imperfeitos em seus traços, diferentes mais aparentemente condizentes, tudo em perfeita harmonia: eles, o ambiente, as cores, a luz, o então, o desejo, os olhares, os sorrisos, o antes, o durante, o tempero, até as entrelinhas. mas tinha algo que faltava, tinha sim. àquele quadro tão interessante, do qual se podia dizer um quase-começo de uma quase-história de um quase-amor, faltava profundidade.

fugidios

Haveria de encontrar uma epifania escondida naquele estar-ali. Estar-ali com ele. O sol continuava em seu lugar, as ruas reluziam de alegria simples de existir. No ar, misturavam-se cheiros: cigarro, fuligem, perfume, fritura, doce, poluição, suores e hálitos. Muitos hálitos. A vida seguia normalmente, às vezes esperando o sinal verde para atravessar a faixa de pedestres. Ou freando no vermelho, se estava muito acelerada.
A epifania. Onde estaria?
Houve um relampejo de algo precioso. Um relampejo apenas, em meio à floresta onde o caçador gaguejava para si mesmo a vitória de ter laçado sua mais almejada presa. A presa não se sentia presa, sentia-se livre, selvagem, dona de si. Num pequeno momento, caçador e presa foram apenas dois seres humanos unidos por um desejo de lançar-se juntos a algum voo especial. Um desejo que não se consumou.
Estar-ali.
Talvez a epifania se encontrasse justamente encravada no estar-ali, naquele momento, naquela partilha diáfana e fugidia, naquela partilha que queria a todo momento escapar daqueles dois, um tão preocupado (com a caça), outra tão despreocupada (com ser presa). O ter-estado-ali, na intensidade de todos aqueles segundos, foi o que de mais belo poderia ter acontecido àqueles dois. Sim, ela concordaria, aí residiria a epifania.
Encontrara-a, por fim!
Ele voltaria à floresta, ao caçar. Satisfeita com aquela miúda descoberta, ela velejaria além-mar.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

La ra la da

Lara, doce Lara, andava no meio-fio, cantava a meia-voz, dormia no meio da cama e sempre estava onde dizia estar. Lara ralava cenouras enquanto meditava sobre ramos, amoras, amores, aromas, marolas – sua vida, enfim. Lara refletia sobre o nada – sabia que “nada” em bósnio (ou croata, ou sérvio) significa “esperança”? Em bósnio, nada é tudo. E tudo era justamente o nada (em bósnio) que Lara desejava. Ali estava Lara, à beira mar, na beirada das rotas e dos rumos alheios, sempre buscando uma trilha selvagem-miragem. Ah, Lara, suspirava ela para si mesma e para as joaninhas dos matos adentro, das flores afora. Ah, Lara clara, Lara escura, Lara amendoada, Lara escondida, Lara cindida. Coragem, Lara, caramelo chinelo chave chuva luva lava Lara. Laura laureada no aprender.


Dia desses, Lara assim, Lara assado, Lara saiu para passear e não voltou mais cedo, mas mais tarde. Descobrira, por fim, que era a autora e a personagem de sua própria história. Porém, não a revisora. E isso era muito, muito bom. Sus sur rou La ra la da.