domingo, 27 de dezembro de 2009

Parola

(almoço em Montemurro, 2009)


Continuo passeando por esse idioma recém-aprendido, estalando de fresco nas estradas apenas construídas dentro do meu cérebro e, principalmente, de meu coração. Volta, volta, minha impressão é que estou escorregando do mundo de fantasia para o mundo de concreto esquecendo miudinho a miudinho todo aquele novo mundo que me acolheu de braços e sorrisos abertos. Volta, volta. Não quero me esquecer do condicional, do subjuntivo, mas principalmente do presente, do presente que essa língua me concedeu. Piano-piano, reformando rotas e pequenas choupanas no meu pensamento, abrindo janelas em paredes vazias. Sentimentos aos borbotões, reconhecimentos. Pertencimento, pertença. Penso num caldo, num brodo, num creme de pana, denso, no qual nado, nado, passeio, flutuo, me afogo e logo me redescubro. Canto as palavras, saltito nas cadências – um trajeto que fiz só meu além-gramáticas, além-sintaxe, além-grafias.


Hoje choro, choro dolorido e alegre, choro branco, choro azul, choro o cintilante dos lungomares visitados e tão experimentados cá dentro. Nesses pedaços de léxicos estão pedaços grandes e generosos de mim. Grandes. E de mim. Non ti dimenticarò, italiano, sei proprio mio.

Sofro de enamoramento crônico.
Ah, se eu pudesse desenamorar-me com a mesma facilidade, quando o cinza substituir o sol, quando naquele oceano não se permitirem mais sereias...

sábado, 26 de dezembro de 2009

Identità


Carrego quatro nomes e quatro histórias que, embaralhadas, me pertencem, me fazem. Me escolheram numa multidão de recém-nascidos e me batizaram, os nomes de forma dócil, as histórias de forma impiedosa, e agora sou eu e mais um monte de fagulhas de universo. Tenho de tecer, enquanto vivo, as colchas de significados perdidos, esquecidos ou celebrados. O nome. A identidade. A personalidade. O composto de células e neurônios, de seres e sentimentos. Sou feita de muitos, por isso minha sina é a inquietude. Os hebreus-palestinos fugidos. Os italianos medievais. A mítica Maryam. Os reis europeus Fernandos e Ferdinandos. Relatos de deslocamentos infinitos e inomináveis. Minha alma vaga, alma marcada de relatos mil mas leve de plumas aprendidas, vaga pelos ângulos de um mundo que se diz redondo – não há fronteiras, apenas esquinas. Meu pensamento às vezes voa para tempos imemoriais, sonhados ou antecipados, passados ou recorrentes. Não, não me pertenço. Porque não sei quem sou além desses quatro nomes e dessas quatro histórias, que carregam outras quatro, oito, dezesseis – e umas quantas vidas.

Te amo. Te amo. Te amo.
Não falei quando podia, agora solto assim, à toa, atordoada, porque não sei se um dia seus ouvidos ensurdecidos reconhecerão minha voz. Você continua aí, no calabouço de seus desalívios e desalinhos, apoiado no porão sem nem espiar a varanda, fechado.
Te amo. Te amo. Te amo.
Embora você queira estar só.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Nascita

(imediações de Belém, 2008)


Nasci em Belém, a cidade palestina das natividades, parida sob uma oliveira, num campo de refugiados, num campo de esperançados. Esperançados. Cresci entre as paisagens de Minas Gerais, rolei as pastagens, bebi chuva, quantas chuvas, e piquei formigas. Menina de lá! Virei adolescente sobre o mar, sobre o mar escorri meu sangue surpreso, sobre o mar descobri o amor. Amei o mar. O mar, o amor, amora, amargo, ramo, rosa. Vivi uma juventude povoada de esquinas, de ruas sujas, de cortiços perfumados de mofo e povoados de gente. Paulistanices. Ruas do Bexiga, ruas de bexigas, ruas bexiguentas, ruas túrgidas e tabus, concretos, gentes, calçadas, gentes, muros, ônibus e sinais. Um diploma, um trabalho, um avião. Cresci, cresci, cresci e me fiz alada, atravessei desertos, seduzi oceanos: porteña nordestina, italiana mexicana, paratiense esquisita de coração turco, muito turca, sertaneja cubana, sou palestina salvadoreña – de que Salvador? –, brasileira, paulistana tão mineira, meu Deus, crescendo, crescendo, brasileirando-me ainda mais, lato sensu, latina, latim, sou mundana, imunda, o mundo, sou. Sou muito, muitas, muitana.

Sou a pessoa mais eu mesma com a qual me deparo quando acordo. E isso me confere uma aura de solidão que dói às vezes, mas que gozo sem parar. E que desfruto sem temor, com os suspiros dos peregrinos errantes da linhagem mais obscura de Abraão, aquele, o nosso.

love is in the air

(capuccino romano com estilo, 2009)

...
(só espero que não se esqueça de pousar em mim)

domingo, 20 de dezembro de 2009

ainda era difícil para mim não me assustar com o grisalho de seus cabelos, fios portadores de histórias de toda uma vida. o entendimento justo veio quando, no meio do almoço, ele me olhou por alguns segundos que levaram horas para serem digeridos. meus olhos estavam inconscientemente fixos nos seus -- e fui pega de surpresa. o grisalho de seus cabelos ainda me assusta, sim, mas ele experimenta a mesma solidão que sinto. entendemos, ambos confusos, que ja não estaremos mais sozinhos. se quisermos, é claro. e isso é muito novo, demasiado.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Ma dai, lui mi ha detto.
Si, devo andare via, ho risposto.

C'era una luce diversa quello pommeriggio, però lui mai lo potrebbe imaginare. Anche io no sapevo che nevicava in decembre e che i giorni sarebbero stati troppo tristi sensa i nostri sentimenti di "insieme". Tutto è ormai passato quando il treno arriva.

Passato.
Si, la neve.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

clandestinos

Ele disse.
Ele também disse.

" "

Ele retrucou.
Ele igualmente retrucou.

--

Ele afirmou.
Também ele afirmou.

.

Ele perguntou.
Ele igualmente perguntou.

[ ]


Estavam ambos sentados nos degraus de um desses centros comerciais meio clandestinos, mais de 10h da noite, garoa fina lambendo a cidade, uma densidade inóspita na fadiga paulistana e eles dois ali, sentados nos degraus, meio clandestinos, diante de um centro comercial fechado, sob a garoa, no meio da cidade, mais de 10h da noite, sentados em degraus meio clandestinos, pois se encontravam na mesma situação: o amor entre eles era tão ardido, tão ardido, que nenhum queria tomar para si a responsabilidade. Amar, arder, arder, amar, sempre meio clandestinos, sempre em degraus, nunca num plano, um mesmo, o deles, garoando um no outro sempre, sem banhar, sem secar, só espirrando-se. Na noite. No meio da cidade.


Daí o excesso de discurso.
Ele foi.
Ele também foi.

Os dois. Embora.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

conjugação

Eu te esqueço
Tu me esqueces
Nós nos esquecemos

-- sou a melhor aluna da classe, mas apenas finjo aprender.
Ele era apaixonante. Mas carregava um cartaz invisível, em letras garrafais, ocultas por seu charme e sua natureza despojada: "Proibido se apaixonar". A dúvida permanecia: era proibido a ele se apaixonar ou era proibido se apaixonar por ele? Eu queria ter sido anarquista, revolucionária, rebelde e mandado à merda qualquer uma das possíveis restrições.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

ainda sobre a saudade

não estava acostumada a receber saudade alheia, acho que ainda não estou, fico atordoada, envergonhadinha, mais rosada e mais pensativa. parece que não entendo por que sentem minha falta, pensam em mim nos momentos em que me ausento da vida deles, por que grudo em seus sentimentos por tempos a fio. muitos não me escrevem nem telefonam, só se deixam guiar pela saudade, enquanto eu imagino esquecimentos vários e longínquos. sou pessoa de entender silêncios, mas às vezes confundo tudo e fico pensando que me dissolvo com tremenda facilidade. daí suspiro tristezinhas e tripinhas. mas, pelo jeito, não é bem assim, não.
havia aquela saudade encardida, escondida nos fundos do armário, embolorada posto que úmida, ainda úmida, mesmo depois de tanto tempo. era um trapo de saudade, outrora cheio de frescor e ardor, outrora cheia de flores de chita e sabores, um registro apenas, não segurava mais os fios finos de meu cabelo rebelde nem minha cintura oscilante, senhora de um peito que ofegava ainda ritmado. desafiante.

saudade, meu negócio é cantar.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

para além das fronteiras internas

http://www.youtube.com/watch?v=VVhKrZo7CRY

o reverberar da liberdade de ser.

A doença da unanimidade (ou I'm too sexy for myself)


Tinha pouco mais de 40 anos, garota de Ipanema, cheia de bossa e risada. Inventava uma tirada nova a cada dia, provava uma caipirinha diferente diariamente, tinha a palavra certa para cada saia-justa. E tudo ia muito bem, obrigada. Vez ou outra, ela se ressentia desses homens mal-humorados, bofes em geral com bafo, batia lá no fundo do peito uma vontade inconfessa e indigesta de um amor verdadeiro. Enquanto ele não vinha, ela estudava, fazia pós, mergulhava em Nietzsche e em Spinoza, ouvia Bethânia e um pouco de Nara Leão, curtia o Grupo Tapa pelo nome e o Galpão pela técnica, inventava dinâmicas e dinamizava os encontros dos quais participava. Era a perfeita gente fina, gente boa, que todo mundo queria na feijoada de sábado na terra da garoa, nos botecos de Santa Teresa ou, quem sabe, num restaurante do Savassi, de Beagá. Prezava suas amizades, ah, que calorosa, embora detestasse praia e embora fosse, no fundo, intransigente com os membros de seu séquito que se afastavam sem permissão. Ou pior: que passavam a integrar outro séquito.

Pois tinha uma característica quase incontrolável essa mulher que hablaba español com a desenvoltura de quem cantava Roberto Carlos desde criancinha, que falava inglês como se tivesse feito aula de dança com Sinatra (ele dava aula?), essa mulher que lia Clarice e Brecht, que falava de paz e de Iemanjá, que tinha um sotaque que nem era assim tão forte. Essa mulher sofria da doença da unanimidade, de uma necessidade urgente de adoração, precisava dos louros e dos estouros, os olhos todos vidrados em sua pessoa, devia ser sempre ela, ela, ela. Tinha esse sonho louco de ser ininterruptamente o centro das atenções. Uma superstar em senso genuíno, aquela pessoa que não precisa de passaporte em nenhum controle de imigração do mundo, porque todos – fascinados com sua garbosidade – sempre dirão: allez, allez, allez! Porque ela era, incontestavelmente, a mais legal.

A doença da unanimidade começou miúda na adolescência, passou batida na juventude, mas se espalhava, maligna e cruel, na fase adulta. Se aparecesse outra pessoa que ofuscasse seu brilho, ela logo se ouriçava e sentia a mais aguda das dores de cotovelo. Tornava-se irracional, nem refletia. Tinha de ser sempre ela, ela, ela, e só ela, ela, ela. Por isso, a fim de destruir a reputação dos demais, usava palavras pesadas e referências amargas, inventadas ou aumentadas até a deformidade. Não tinha pudores quanto à fofoca: nenhuma mulher era, no conjunto da obra, mais atraente que ela, a superstar!

Displicente quanto à doença, fingindo que era fruto de macumba ou de inveja alheia (certamente, ela se acreditava muito invejada), não se deu conta de quando apareceu numa festa, aos berros, desancando a aniversariante, essa idiota que concentrava as atenções. Ofendeu uma antiga amiga, porque se julgou ignorada numa simples mensagem de boas festas. Passou a humilhar publicamente os rapazes que não a cortejavam, os caixas de bancos e de supermercados porque não lhe faziam as justas mesuras e os motoristas que tinham carros aparentemente mais chamativos que o seu. Estava fora do controle – e só reconheceu a doença quando acordou afundada em seu próprio e imenso umbigo, suando horrores, acreditando ter sido engolida pelo centro do universo. Socorro!

Hoje ela participa de terapias em grupo e reconhece que a companheira mais magra é tão simpática quanto ela. Que a senhora de cabelo curto pode ser também tão divertida. Que há outros mais bonitos, mais viajados, mais populares, mais afinados – e que isso não tira seu charme nem diminui seu carisma. Hoje ela até vai à praia, para molhar os tornozelos e deixar-se misturar com a imensidão. Sabe que tem um espaço só seu e nem se comove mais quando vê os holofotes, as faixas de miss simpatia e as listas masculinas de as mais gostosas. Ou quando ouve “Garota de Ipanema”, que acreditava ter sido composta para ela. Passou a freqüentar o UAU!, grupo dos Uns Anônimos Unânimes!, no qual às vezes é solenemente ignorada, mas em outras é tida como a mais legal. É, suspira enquanto se olha no espelho, tem mesmo um monte de gente bacana no mundo!

domingo, 11 de outubro de 2009

sobrevivente

outubro, 2009

generosidade dos nossos tempos

Beto não se importava em pagar uma rodada de cerveja aos colegas de trabalho, não rachar o estacionamento quando dava carona ou subtrair algumas dezenas de reais dos gastos de combustível da conta dos amigos que vez ou outra acompanhavam-no na ida à praia. Beto era tido como um cara generoso – e, de fato, entre os seus, não hesitava em pagar sanduíche alheio quando fazia questão de determinada companhia. Raramente deixava as namoradas abrirem as bolsas no jantar à luz de velas; claro, respeitava aquelas que faziam questão de dividir, mas delicadamente compensava com flores durante a semana. Beto também acudia os parentes, mesmo antes de lhe pedirem algo. A generosidade, mais que um gesto espontâneo, um traço de sua personalidade, era uma obrigação prazerosa para Beto. Tinha que, tinha de. Precisava, por alguma razão obscura de seu passado difícil e pontuado por privações, evitar que a gente querida se sentisse impedida de fazer algo por causa de dinheiro.

Mas, para Beto, gradativamente todas as outras relações – humanas, financeiras e até políticas – passaram a ser mediadas por dinheiro. Seria seu trabalho, dez ou mais horas diárias rodeado por cifrões e discussões sobre reais, dólares, euros, libras? Considerava injusto pagar tal quantia por um grelhado no almoço; se fosse um ensopado, ficava menos aborrecido. Os preços das coisas subiam, o combustível, o teatro, a soja, até o barbeiro, Beto chiava, mas pagava. Jamais fraudou o Imposto de Renda. Jamais desonrou seus compromissos. Dizia que o governo era refém das atrocidades especulativas, mas repetia detestar política. Tudo para Beto era pagável. Se caísse na rua, como ocorreu uma vez, sentia-se no dever de pagar ao samaritano que o acudisse, como fez ao homem que o ajudou a levantar e gentilmente recolheu os papéis de sua pasta. Quando a mãe lhe levava uma torta ou o arrozinho-da-infância, sentia o impulso de pagar-lhe. Mas, filho, faço isso por amor! Uma amiga deu-lhe umas fotos do fim de semana na praia e ele, impulsivamente, lhe pagou por isso. Certo dia, tão habituado, depois do sexo foi logo abrindo a carteira para agradecer à nova namorada por prazer tão especial. Pediu desculpas quando ela lhe bateu a porta na cara, mas não pestanejou ao pagar o porteiro que a ajudou a encontrar um táxi naquela hora.

Beto acreditava na generosidade – na dele, mas não na dos outros. Criticava essa gente interesseira que só pensava em dinheiro e não sabia mais o que era partilha. Deu quantia vultosa ao moleque, um turista também, que o acompanhou naquela bela trilha da praia carioca, durante o feriado de Corpus Christi. Não entendeu a indignação do amigo do amigo que, em pleno domingo à noite, passou em sua casa para entregar-lhe o pen drive esquecido. Será que ele achou pouco 50 reais?, perguntou-se. Um dia, uma senhora puxou papo com ele na livraria que adorava frequentar. Contou-lhe histórias de infância, motivada talvez pelo título de uma obra. Comovido, Beto quis lhe pagar; não tinha dinheiro, indagou se ela aceitava cheque ou cartão de débito. Ninguém tem obrigação de nada nessa vida, afirmava Beto, por isso cada gesto tem seu preço. Suspirava: culpa desse capitalismo selvagem que nos ronda...

Ele tinha salário de cinco dígitos, poupança e fundos de seis dígitos e nutria um certo medo das oscilações econômicas desse governo de merda. Não sei se o dinheiro vai dar, não sei... Porém, não divulgava tais preocupações íntimas, não queria apavorar os amigos, a família. Tampouco ajudava os pedintes na rua: não posso lhes dar o peixe, afirmava. Alguém precisa ensinar-lhes a pescar.

Beto era honesto, nada arrogante, não ostentava seus cifrões, rapaz simples, e, vez ou outra, quando tinha de pegar metrô, pois o carro ia para a oficina, achava injusto o preço da passagem. Solidarizava-se com os anônimos, trabalhadores como ele. Beto era querido, pois não deixava de ajudar um amigo. Beto era cidadão, pois pagava seus impostos e contas corretamente. Na somatória de tudo, diríamos, Beto é um homem dos nossos tempos. Beto tem a generosidade dos nossos tempos. Beto estranhou, dia desses, quando quis pagar a si mesmo pela bondade que o reflexo no espelho teve ao lhe sorrir, assim tão enternecido, tão espontaneamente. Só podia ser sinal dos tempos. Desses nossos tempos.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

rebobine, por favor #2




http://www.youtube.com/watch?v=GSCHaV-goLU

("Yes, I can!", fazendo coro a Obama, agora Nobel da Paz.
Um dia eu ganho uma Palma de Ouro. I can!)

, fazia segundos, meses, séculos sem respostas suas. e a saudade doida quebrando copos, bagunçando gavetas e misturando jornais antigos com notícias de última hora. onde onde onde, pergunta, desespero, dúvida. não entendia por que você havia sumido, assim, tão enternecido de suas próprias reflexões a ponto de não me incluir mais num poema, num dilema, em seu sistema lunar ou em sua dieta microfibrosa. Dizia que era irreverente e fazia coisas velozes, eu tomava como elogio risonho, e lhe falava de seus passos difusos e de suas coxas grossas, que pareciam finas quando você tinha medo. me escreva, vai. me diz como você anda e por onde você segue, qual será o verso do minuto seguinte e como meu sorriso ainda reverbera em seu hemisfério sul. tem dias que sonho com seu suor, em outros você me toma nos braços e me acalenta com gozo e afeto. e a primavera invernal vira verão primaveril com gosto de suco de tangerina e menta...

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Vendem-se sorrisos pré-cozidos para fritar ou assar. Sorrisos de todos os jeitos, para reagir ao tempo nublado, para celebrar que o salário dá para aproveitar a “vida cultural de São Paulo”, para demonstrar constrangimento diante do orgasmo descarado da vizinha, para entreter os colegas de trabalho, para rir e rir de felicidade prozakiana, para mostrar como você é legal... Usos vários, dizem. Ainda prefiro os meus, um tanto demodés, mas distribuo a informação no caso de. Ah, último lançamento: meio sorriso com feijão.
Ainda que esteja surda ou paralisada, meu útero me lembra de que sou mulher. Não mãe em potencial, alma feminina, mocinha inteligente ou bombocados afins. Não. Me lembra estridente: m-u-l-h-e-r. Às vezes me esqueço. E, nos momentos de assexuadice, ele chacoalha dolorido as dores e dolores cá de dentro: sai. Volta, mulher. Irrita-se com as férias forçadas. Manda embora veracruzes, dulces, evas e busca de volta mulhermariamulher. Meu útero desdenha das revistas femininas, dos aparelhos de ginástica e das dietas insossas. Ele gosta de sangue, de vermelho, de presença, de voracidade, de tenacidade, de entrega. Não se cegue, ele me diz, diz não, grita, porque meu útero não é discreto. Ignora as convenções e pede vestidos, saias e sandálias, pede homem. Meu útero afirma que não importa nada disso que me aborrece, porque no fundo é ele que reluz quando. E se. Como. Para. Meu útero é meu órgão revolucionário, liberta a alma, fala de amor aos domingos e delira nas noites de lua calma. Ainda que à revelia, quando cinza, explodo em rubro uterino, veemente e faceira. Mulher, mesmo em descrédito, mulher, surpreendida.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

rebobine, por favor

* sentimentos amorosos são confusos? * a gente desgosta de um lado, mas continua gostando de outro * love is messy * ese lío que se llama amor... * amor ou paixão? * c'est la vie? c'est comme ça? * fins aviat... * love is all we need *



amigo do Léo diz: "prefiro os autodidatas. têm mais frescor e menos medo de arriscar."

http://www.youtube.com/watch?v=m-pQaLyGqX8

domingo, 4 de outubro de 2009

retrato em sépia


Quando meu sofá saiu de seu lugar de sempre, rumo à casa de uma nova dona bem longe de mim, chorei. Naquele dia, chorei mesmo. Menos pelo sofá em si, também por ele, mas a constatação do vazio na sala ecoou cá dentro. Como que se a mudança se anunciasse concreta, inadiável, de algum modo irreversível. Ora, eu já vinha me preparando há tempos para a despedida gradativa dos móveis, do espaço outrora ocupado, de um certo estilo de vida. Mas o primeiro passo, o primeiro ato, o primeiro teste me trouxeram um ar fresco e forte de pura realidade. Um susto, um corte inesperado, algum sangramento. Era e ponto. Ou melhor, foi.

Assistindo a “Caos Calmo” me dei conta: meu sofrimento fragmentado de 2009 advém de um luto. Sim, estou vivendo um luto simbólico. Porque voltei e não encontrei mais meu sofá (o metafórico). Porque voltei e reconheci o vazio deixado por ele. Porque me desapeguei totalmente dele (não sinto mais sua falta). Porque a mudança já se instalou de modo inevitável. E, porque, abismada, não encontrei palavras decentes para dizer que eu não tinha nada a ver com aquela imagem minha mantida à revelia no freezer. Que pessoas não podem ser guardadas congeladas a fim de que não mudem depois de experiências tão instigantes. Não descongelam e aí ficam iguaizinhas a antes, não. Que há coisas que desgrudam da gente no meio do caminho porque não fazem mais sentido. Outras são deixadas propositalmente, pois não se encaixam mais no presente rumo ao futuro, como o sofá. Desapegar é duro e dolorido, mas isso nos torna ainda mais próximos do que somos de fato. E o mais difícil é desapegar da gente e da imagem do outro que carregamos em nosso bem-querer.

Meu luto simbólico vem sendo povoado de respiros, por isso foi tão complicado identificá-lo. Vivi outros lutos antes: o luto pela morte de meu pai, meu luto pós-cirúrgico, meu luto pós-demissionário, o luto breve – e belamente grávido – pela morte daquela que eu era no início de grande e mítica jornada. Mas esse luto de agora é capcioso, pois vivo as perdas dos outros quanto a mim. Passo por um luto que é meu, me pertence, mas envolve também os pedaços de mim que ficaram com os outros e que são chorados por eles (mas não são mais meus). Como que se me devolvessem roupas doadas, já tão justas, a fim de que eu volte a ser quem era antes, cabendo nelas de algum jeito. Já falei disso, não é? Essa repetição faz parte do processo.

Ando num caos calmo, como o Pietro do filme. Tenho meu banco de praça e minhas viagens. Já passei pelo período mais complicado, o da raiva seguida pela depressão. Agora, aos poucos, caminho para a aceitação. Também não sou mais aquela do início do luto. Não choro mais pelo sofá – hoje eu nem teria um outro. Mas sua lembrança me conforta nessas noites esquisitas de primavera, em que às vezes o frio da ausência quer chamar mais atenção que o natural brotar das flores. Jamais poderia ter empreendido a jornada mítica com o sofá a tiracolo. Assim como não posso seguir adiante, neste momento, carregando determinada bagagem de sentimentos, relacionamentos e posturas. Que se eternizem num belo retrato em sépia.

sábado, 3 de outubro de 2009

sentindo assim, ainda, de novo, desde então, faz tempo:
http://diariodeloricapitu.blogspot.com/2009/01/cinzentos_06.html

com exceção de uns poucos, os demais já se revelam enfadados:
-- Vá embora de vez ou cale a boca, idiota.
-- Ih, de novo com esse papinho.
-- Desocupada!
-- Desculpe, estou sem tempo.
-- Triste de você que não sabe como o ano vai terminar.
-- A sombra... buh... a sombra... buh...
-- Ó, eu dou de ombros.

tic tac tic tac tic tac tic tac tic tic tic tac tac tic tac tac tac tic tic tac tac tac tac tic tac tic tac tic tac

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

me parecia ter algo de especial, um certo ar de personagem de canção do chico, um despudor rodriguiano, uma casualidade de filme do assays. deveras: levava jeito de promessa já cumprida. mas deslizou sem tapete em seu próprio caldo entornado e, com as luzes acesas, caiu do cavalinho de pau, manco de uma perna, ainda tão generoso.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

estranha


Ela voltou depois de anos. Ninguém a vira exatamente partir. Partiu, assim, como se fosse estar um tempinho ali ou lá, já vinha fazendo isso, por isso ninguém notou. Ou ninguém quis notar, já que estavam todos ocupados com suas correrias cotidianas, um tanto cansados com as idas e vindas dela, não pareciam mais novidades. Além disso, suas andanças a modificavam deveras, e eles já haviam perdido a paciência de acompanhar tais mudanças. Como se não bastassem os desafios espinhosos de seus próprios passos, oras. Horas. Dias. Semanas. Meses. Anos. Seriam séculos, se a expectativa de vida não fosse um limitante.

Ela voltou depois de anos. Ninguém se deu conta da partida, a princípio. Aos poucos, uma lembrança embaçada de seu sorriso ou de suas falas inflamadas, ou ainda de seu ar de camponesa robusta, ou de seus suspiros alargados, uma lembrança assinzinha, vinda à toa, trazia saudade, um olhar naqueles que estavam online na lista de “ao redor”, uma vontadezinha de estar junto. Mas não havia tempo, nunca havia. E ela já estava longe, distante de verdade, dissolvida nas esperanças e nos sonhos acumulados rotas afora e adentro, misturada a eles.

Ela voltou depois de anos. Não buscou reconhecimento nem foi reconhecida de imediato. Não reconheceu muita coisa, mas os fragmentos de vivências antigas retornaram com uma força gigantesca e atemporal. Seus pés a levaram a caminhos antigos e já disformes. Reencontros vieram. Antigos-novos, novos-antigos. E lhe perguntavam por quê, por quê, pois mesmo com os anos as pessoas não se conformavam com as dúvidas irrespondidas, razões rachadas. Mas e eu, e eu, falavam aflitos e afoitos, descreviam o susto, a decepção, a dúvida, o conformismo. Ela se calava atenta, surpreendendo-se com o outro que era o Outro, deliciando-se com suas novidades imperceptíveis muito além dos discursos de “que fiz isso, que fiz aquilo”. A ela não lhes interessava contar o que fizera nem escutar o relato pré-cozido daqueles que a reviam. Queria desfrutar desse desconhecido que brotava em cada conhecido, ainda que lhe cobrassem: “por que não me disse nada”.

Ela voltou depois de anos. Trazia o mesmo corpo, mas tinha um filho. Como ninguém notou, ninguém soube. Voltou depois de anos com novas sabedorias. Sabia cozinhar especialidades, dançar diferentes bailes, captava imagens cotidianas com outro apuro e um afeto mais refinado. Mas ninguém notou exatamente, ninguém logrou perceber. Ela voltou depois de anos, acompanhada de novas gentes dentro de si, mais pintas, mais cicatrizes, mais azia, mais alegria. Porém, ninguém notou, só prestavam atenção no cabelo que continuava igual, nas rugas que não aumentavam – sortuda! –, nos joelhos que permaneciam meio escuros.

Você não mudou nada, disseram. Foi como se não tivesse ido.
E quando ela partiu de novo, então, deram graças a Deus por não ter que suportar um pouco mais aquela chata ingrata, provocadora, uma verdadeira estranha.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

oníricos >> fragmentos de sonhos

http://www.youtube.com/watch?v=2U6Yj80g2g4

faz pouco que espirrei e, assim, esqueci todas as preocupações que me davam azia. pode ter sido uma maneira pueril de fechar as torneiras, dar as descargas, mas foi o jeito mais puro que meu corpo encontrou para levitar. atchim.

IRREMEDIÁVEL

Quem somos hoje?
Eu ficava encontrando novos modos de me despedir de você, embora não os buscasse. Como se todas essas palavras ou esses tons de voz já estivessem cá dentro, querendo urgentemente sair.
Não me importava não nos reconhecer de pronto. A mim, a você. Sou adicta da mudança, do movimento, creio no leva-e-traz das ondas da vida. Seu sorriso, seu afeto. Você me preparou uma redoma linda e terna, aconchegante e arejada: mas redoma.

Eu ficava me deparando com posturas minhas em desuso, como se os pacotes de roupas velhas e apertadas voltassem inesperadamente aos meus armários. Você os jogava aqui dentro, de novo. Você queria me reconhecer de todos os jeitos, me devolver os fios de cabelo já perdidos, queria recuperar uma face minha que antes lhe era tão familiar. Nos doíamos, então, pelo improvável da situação. Eu me sentia mutilada. Você... lhe dilacerava o abandono.
Quem somos hoje?

Você me cercava de todos os jeitos – absorvendo meus amigos, os mais próximos, os menos próximos, como se sugasse deles o sangue que queria ter de mim. Você tentava reaproximar-se com pequenos caramelos displicentemente postos num caminho, no seu caminho, nos ladrilhos que me levariam a você. Quando virei para outro lado, o susto, a incompreensão, a mortificação.
Hoje, não sei, não tenho respostas.

Você está onde esteve sempre e nesse lugar não estou eu – já faz tempo.
Eu ando em dimensões impalpáveis de mim mesma e, mesmo que você não tivesse tanto apego, talvez não conseguisse me alcançar por lá. Porque esse espaço é muito íntimo e muito particular, uma necessidade muito minha, que quase você não entendia.
Eu ficava desenhando maneiras de lhe dizer tudo isso com a melhor voz e o jeito mais doce, porém as mensagens ganham vida à nossa revelia. E então, e então.


(Desculpe, sujei de barro a beiradinha da calçada.)

terça-feira, 29 de setembro de 2009

nessa sociedade de plástico reciclável, mas que tardará séculos para se decompor -- um dia tornar-se-á orgânica? --, tenho orgulho de constatar que minhas bochechas, ufa, puxa, não têm silicone!

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Cuentico de un comienzo


Era un hombre con un ramo de flores, caminando por la Avenida Cabildo en el atardecer de las añoranzas. La tarde, casi noche, estaba hermosa y calientica, como si invitara a todos a un abrazo interminable. El hombre con un ramo de flores tenía una sonrisa imperceptible y yo le imaginaba deseos y esperanzas. Una mujer que lo esperaba, un beso sabor alfajor de dulce de leche, un cortado antes de la despedida (que jamás sería despedida). De súbito, un otro hombre surgió de una esquina con su ramito y también me llamó la atención por sus ojos llenos de sueños en acuerdo con la flor que traía. Y vino entonces una mujer con una rosa, y un señor encorbatado con un ramo grandote, un joven con tres ramos en la mano, una pareja con flores azules, y la gente toda cargaba ramos y ramos y ramos. Las luces de Cabildo se quedaban pequeñitas delante de tanta flores. Yo me sentía perdida en jardines de amores, vinos por beber, tangos por escuchar. Y por casualidad me acordé que era el primer día de primavera y la vida me invitaba a celebrarla lindo.

Para que no me quedara sola en esa ciudad de no sé cuantos millones de personas, paré en un quiosco de flores y me compré un ramo. A ese sentimiento le llamé pertenencia. Por las calles no estuve olvidada -- tenía mi ramo, que me acompañaba, tenía a la gente, que reflejaba humanidad. Y desde entonces a los días que me sorprenden por el acogimiento y la belleza les doy el tierno significado de primavera. Y así me siento feliz.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

correio elegante

Cruzo com homem na rua, eu de cenho franzido, ele com ares de quem traçou uma cachaça há pouco.
-- Eita, filha, tá precisando de uns beijinhos, hein?
Nem tenho como discordar da observação.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

ao amor que passou, com carinho

http://www.youtube.com/watch?v=mZZKnASZ6yM

FIM


“Aos sete de setembro de 2009, às 23h17, constatou-se que o relacionamento da srta. X e da cidade de São Paulo estava definitivamente terminado. Ambas, diante dos presentes, confirmaram a disposição para estabelecer uma relação mútua de amizade, respeito e desapego. As duas disseram que o estranhamento inicial, espinhoso e dolorido, ocorrido no início deste ano, não voltou a acontecer. E que nos últimos dias comprovou-se a possibilidade de uma coexistência pacífica entre elas, situação que São Paulo afirmou garantir até a srta. X encontrar um novo lugar para se estabelecer. São Paulo se revelou acolhedora e a srta. X, compreensiva. A principal causa da separação, alegaram, foi a constatação de que as duas já não coincidiam mais em propostas de vida, possibilidades de atuação, buscas espirituais e premissas ideológicas. São Paulo alega não poder oferecer à Srta. X mais do que já lhe proporciona. Infelizmente, ressalta, não pode arejar-se mais, preservar-se mais, possibilitar mais fluxo físico ou humano. E a srta. X diz sentir-se oprimida pelo excessivo concreto das construções, das almas e das circunstâncias. Acolhidos os argumentos, reconhecido o afeto ainda existente entre as duas e a ausência de agressão de qualquer uma das partes, ciente de minha atribuição, declaro findo o relacionamento. A srta. X está livre para envolver-se com qualquer outra cidade ou lugar a partir deste instante.”


domingo, 6 de setembro de 2009

(time after time 2)

A que quando pertencia?, era a pergunta que mais lhe fazia companhia quando abria os olhos de manhã, ainda atordoada pelo último sonho, nem sempre estacionado na última estação. Quando exatamente vivia? Porque, vez ou outra, tinha a impressão de que não existia, embora estivesse viva, corada e suada. Seu agora era povoado de novidades e antiguidades, emoções diversas, sensações e indagações. Mas provava em lampejos o sempre e, como que descompassada, se perdia em lapsos e labirintos invisíveis, pequeninos, indimensionáveis (se é que a palavra se pode). Por isso, sentia-se perdida. Mas também bem encontrada.

"Só há texto e só há existência no 'agora'. O 'antes' e o 'depois' inexistem para o 'agora'. (...) Só no sempre todos os 'antes' e todos os 'depois' são alcançáveis, porque não há 'agora'. O sonho de retornar ao passado ou ao futuro só seria possível abrindo mão do 'agora', ou seja, deixando de existir."

Nilton Bonder, Sobre Deus e o Sempre

(time after time 1)

(mfv,2009)

Estava no canto do salão observando a aparente felicidade dos demais. Era apenas ela ali, naquela sombra, naquela pequenina solidão. Ela e seu vestido destoante. Ela e seus sonhos esvoaçantes. Ela e seu sorriso ainda despercebido. O sapato apertava-lhe um pouco os pés. Ela.


Acordara há pouco, ainda misturando bocejos e areia, e atordoada notou que o sol iluminava todas as pegadas que deixara ao redor. Havia caminhado muito, não podia negar, mas as rotas estavam demasiado confusas. Parecia que ela tinha milhares de pés desarticulados, movendo-se em difusas direções. Continuava a haver areia em seus bocejos. E suas pegadas tinham formas de mundos, muitos mundos. Profundos.


Havia um lapso de desejo desinstalado em seu peito. Havia, na verdade, um buraco no coração pelo qual escapavam seus enamoramentos e os dos outros em relação a ela. Parecia não sentir nada. Dessentia, então, insensações.


Passou a tomar menos café e a evitar sobremesas. Respirava mais intensamente e exercitava-se pela manhã. Assim, prolongou sua esperança e constatou que era preciso mesmo fazer opções, ter mais focos, fixar-se em algo ou alguém ou com agulhas.


Confusa e adorável equilibrista...
Desenhou uma janelinha na parede do quarto escuros sem janelas e sem maçanetas. Com o vento, ouviu “Aquarela” e experimentou a passagem do tempo ao revés. Estranhou: havia setas apontando para lados diferentes. Por que assim? E duas metades suas já não encaixavam. Com o tempo não se brinca!


O mundo a imagina, mas ela existe de fato. Só não tem certeza se de fato existe na própria certeza. Quem? Ela ou o mundo? E são essas as perguntas que sempre traz... (Suspiros. Suspira!) Na filosofia do céu azul, existe o momento em que nuvens cinzas se misturam às luminosas e claras e resultam todas num permeável pode ser. Pois aí ela se encontra -- nos dois sentidos.

sábado, 5 de setembro de 2009

flow


He used to say: “We are going to change the world together”. And I always agreed with him. Once he told me that it was time to leave: “I am going to the blue”, those were his last words before he kissed me. I did believe in him and tried to hidden my feelings of longing and exagerated tenderness. Then I only smiled back.

Today, every time I look accurately into my inner universe, I can see him flying around in a pure flow of life. So I become sure I also belong to this huge blue whose name is freedom and I understand we are already changing the world somehow.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Querência: Baklava


Lágrimas acumulam-se nos olhos fechados. As papilas gustativas em trabalho de parto geram sensações inesperadas. Istiklal Caddesi reaparece em minha memória: quase enxergo as vitrines das lojas de doces exibindo baklavas de vários tamanhos. Enquanto isso, as delicadas camadas de massa folhada recheadas com a mistura de nozes, amêndoas e pistache moídos, cobertas por uma calda de açúcar diluído, se desfazem na minha boca e tocam meu coração: eu me emociono com esse momento lindo, com o perdão do clichê. Imediatamente a turca que habita minha alma desfruta os gostos de Istambul, os bazares, os cheiros, o Bósforo, a ponte Gálata, as pequenas e grandes mesquitas, a cisterna, a mesinha no café perto da estação Çemberlitaş: eu adoro aquela cidade, adoro aquele país. O duro simbolismo da bandeira – lembrança do sangue derramado em nome de um território, de uma religião – não reflete a suave do sabor de minhas vivências, quiçá reflita a lua e a estrela, meu sol ou meu mar. Meu pé ainda pisa Pamukkale, ainda me lembro do baklava saboreado na única doceria de Göreme, na Capadócia, e os caminhos de Éfeso surgem tão vívidos quanto os rumos em Kars e seus arco-íris. Olhos já abertos, mais um baklava, outro delírio e as lágrimas já escorrem o açúcar dos meus suspiros. Quero sempre voltar para esse meu lugar...


P.S.: Dear Sercan, thank you for this tasty and beautiful moment…

Tem uma beleza imperfeita
Na desculpa desfeita
E na surpresa de reencontrar
Alguém já tão sabido
Mas completamente desconhecido
Em suas novidades de barquinho entregue ao mar.

Tem essa beleza, essa vida cor turquesa
No jeito quase escondido, sorrateiro
Em largar os sapatos no canto da sala
E esvaziar, sem pudor, sem temor, a mala
De diálogos já cansados, de adjetivos estragados.

Ah, é por isso que me faz tão bem
suas perguntas generosas sem vírgula ou porém
Essa bagunça curiosa no meu criado-mudo
E em meus alto-falantes às vezes carrancudos
Essa verdade nesse nosso caminhar despreparado
Em rumo não-planejado, hoje verde, amanhã desalinhado

Muito, muito bonito
Quase frescor de um novo rito:
Um beijo, uma novidade,
Pão-de-queijo, intensa, sempre intensa, brevidade.

domingo, 30 de agosto de 2009

Uma canção para D, a desconhecida, e para I, a russa

À querida e saudosa Paula,
que buscou o conforto desde a janela do 9° andar,
em 2003


As 17h e alguns minutos desse sábado 29 de agosto foram diferentes. A luz – havia algo com a luz do sol, incisiva diante da poluição e dos vidros espelhados. A luz estava mais densa e mais vermelha que a habitual. A luz sangrava? Da cobertura do edifício do Sesc Paulista, onde funciona um café, eu tentava desvendar os segredos daquela tarde, dessa cidade, de um fragmento de vida. No mesmo momento, bem próximo a mim, um outro fragmento de vida se dissipava. Havia um garotinho sozinho ao lado do binóculo. Por algum motivo sua avó correu para a esquerda, seu pai já tinha ido antes. Por que deixaram o menino sozinho?

Permaneci mais um instante – que pareceu longo e indefinido – absorta nas reflexões diante da megalópole austera e reluzente que eu via desde o balcão daquele café. Quem sou eu para ela? Que significados meus essa cidade guarda? Um dia decifrarei seus segredos incrustados em minha pessoa? Intrigada por algum sentimento alheio, porém, virei a cabeça para trás. Minha amiga Michelle me buscava com os olhos, tremendo de susto. Nos abraçamos.



Agora imagino D.
D. vestiu sua blusa listada e uma calça escura. Miúda, descendente de orientais, embora de meia idade, parecia mais jovem. Ajeitou os cabelos, que chegavam quase no ombro. Naquele sábado, D. saiu de casa com uma certeza. Essa certeza não lhe fazia nem mais nem menos feliz, apenas tranquila. Tornava o fardo mais suave. Talvez tenha até sentido um agradável bem-estar com a morna luz da tarde, enquanto caminhava rumo ao prédio do Sesc Paulista. Talvez tenha notado o casal de adolescentes que sorria numa cumplicidade marota. Talvez tenha notado a moça de bolsa imensa e salto agulha. Talvez tenha notado o homem acanhado de ar cansado. O rapaz com a camisa do São Paulo. As duas senhoras de xale. Talvez.

Talvez, pela primeira vez em muito tempo, D. tenha conseguido enxergar a vida que se passava a seu redor. E tenha sentido esperança. Acolhimento. Pertença. Talvez D. tenha ficado na dúvida quando subiu ao 14° andar do Sesc Paulista. Quando cruzou com a moça de óculos de hastes vermelhas, absorta diante do fragmento de horizonte. Quando pediu seu café para a simpática garota do atendimento. Quando viu aquele jovem pai com seu garotinho, paparicados os dois pela avó. Mas D. tinha sua certeza e, naquele sábado de luz avermelhada, sua certeza lhe fazia bem. Que sentimento gentil, meu Deus, depois de angústias intermináveis. A certeza era maior que a dúvida.

D. subiu calmamente na mureta. O rapaz achou esquisito. A calma dela era tanta que ele pensou se tratar de uma funcionária. D. encontrou um apoio para os pés na parte externa, equilibrou-se. O rapaz se aproximou:
-- Você precisa de ajuda?
D. não respondeu. O rapaz se deu conta, num átimo, e tentou segurá-la pelos pulsos. Sua mãe correu para lá.
Michelle, que estava no mezanino, viu o corpo cair. Ouviu o barulho.
A luz sangrava, sangrava muito, sangrava ardorosamente a vida de D.
Eram 17h e alguns minutos, mas eu não consegui mais olhar nos olhos da megalópole, porque ela fingiu não me ver. Havia tanta gente na rua essa hora... Mas a luz... a luz estava vermelha demais.



D., se eu não estivesse tão absorta, talvez tivéssemos nos cruzado no café. Talvez eu tivesse notado você, sua calma tão diferente de outras calmas que eu já conhecesse. Talvez, D., eu tivesse puxado papo com você e comentado um sentimento meu desta manhã.

I. é considerada uma estrela. Quanto se espera de I! Recordes, vitórias surpreendentes, exibições perfeitas. Há dez dias ela chegou ao Mundial de Berlim como bicampeã olímpica. Classificou-se com facilidade para a final do salto com vara. Mas, conforme admitiu depois, o excesso de autoconfiança tirou sua concentração. Excitada com a possibilidade de bater mais recordes, perdeu o foco quanto ao mais básico: saltar. Queimou suas três tentativas. A decepção foi geral – falou-se muito em fracasso, falha, vexame. “Eu precisava perder em Berlim”, ela disse. “Tinha de ver o esporte de outra maneira, por outro ângulo, não só do topo.” E, nesta sexta-feira, na Golden League em Zurique, I. não só conquistou uma fácil vitória (contra as mesmas adversárias de Berlim), como estabeleceu novo recorde para o salto com vara: 5,06m. I. aprendeu a vencer quando foi derrotada. E não deixou que seus demônios interiores a subjugassem.

Eu teria gostado muito de ter partilhado essa notícia com você, D. Teria ficado feliz em lhe dizer como a história de I. me emocionou. I. deve bater novos recordes. Eu talvez mude de São Paulo e sinta saudade da luz avermelhada. E você, D., esteja com Deus.

terça-feira, 25 de agosto de 2009


Dobra as dóceis pernas quando caminha, fera felina e humana,
Aninha mansidões em trechos extensos de bem-querer
E profundas indignações em cantos obtusos de seu peito circular
E caminha e caminha e caminha
Já que nunca chega e não chega nunca e nunca não chegará

Solidões são sólidos limões que correm escorrem morrem no Solimões?
Estalactites ecoam dúvidas deprimentemente individuais
– seiva: fissuras são normais

A frieza das indiferenças das incompreensões dos descompassos e dos marcapassos
socioeducativoculturais – puros sais de banho
O apelo ardente do frio lá fora clamando por coragens interditas e paciências infinitas
Na era do gelo – mero cobertor para a incessante dor
Desdobram contrastantes interações com esse tal de “mundo lá fora”
(não use aspas)

Agora: -pare com isso de ferimentos experimentos excrementos e jumentos
De quem quer que seja, sejam meus, seus, nossos, ou dele!
Cuide do bolo empantumado no forno de suas – não minhas – excomunhões
Pare, pare, pare de falar de cumprir de exibir de esculpir obrigações,
Por que não me rasuro de suas contas caras do passado?

Paz, pelamor, paz
Silêncio, sêclemente, ouvidos

Fera felina caminha e caminha, caminha as dóceis pernas que se dobram
Na dor no salto no bote no desapego na oração e na morte
São vastas vastas vastas essas trajetórias inconclusas e difusas
São vastos vastos vastos esses ires e voltares em tons estelares
Novos grandes largos frescos ares
Ah, humana felina santa cruel princesa enternecida,
Dama e bruxa no beabá.

Quase, quase, quase e lá
Um horizonte ofuscado pelo tempo kairós de uvas sem caroço e de mulheres sem moços
Um heróico esforço de delicadamente mastigar
O fulgor o estupor o pavor o temor de ultrapassar
A fronteira entre o existir e um inevitável eternizar-se.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Não deixe o rio morrer!




Um misto de homenagem e apelo pela vida eterna do Rio São Francisco, o Chico dos meus amores mais ternos, 100% brasileiro.

domingo, 23 de agosto de 2009

minha vida não cabe num coque

pura irresponsabilidade é deixar que um desconhecido decida sobre uma mudança em vida alheia. ainda mais se ele é um cabeleireiro que nunca a viu antes. você o provoca, de um jeito maroto, e diz: quero ficar diferente. aí ele manda bala.

agora, estou de quarentena do cabelo solto. e não reconheço a cara esquisita que aparece no espelho.

incompletude (ou: um girassol no gelo)


Uma lágrima, um impulso.
Um quase-susto.
O espelho já não se detinha
À face, muito menos ao disfarce:
Estava ali, alma desnuda,
Em processo de muda,
De desprendimento.
Fluxo contínuo, a grande jornada,
Uma presença intensa,
Manifestada.
Um entendimento verdadeiro.
Era quem era – e isso se lhe revelava ofuscante.
Um universo inteiro,
com mais existência adiante.
Palavra como força que move:
Faça-se!
Do significado ao significante,
Um átimo, um instante.
E lá se materializava o ritual.

Revolutionary Road


Assistiu a “Foi apenas um Sonho” e acabou dormindo com sede, sem sonhar. Abriu o jornal, leu sobre Sarney, Taleban, aumento da criminalidade, compra de terras férteis na África por grandes investidores, mandos, desmandos, um tal de cinema crítico, nota sobre socialite inventando moda, uma bermuda que acaba com gordura localizada, uma crônica banal de algum escritor pseudo. Vomitou. Venceu a preguiça e o frio de 12 graus, passou o batom que quase não usava, pôs óculos escuros e partiu. Alguém até lembrou de registrar no obituário, mas ela já estava, enfim, livre, leve, longe e em outra dimensão.



"And if you walk along and if you lose your way,/
Don't forget the one who gave you this today/
Follow True Love"
Cat Stevens

sábado, 22 de agosto de 2009

"Estúpido, ridículo e frágil é meu coração"


Não seria jamais chamada para um comercial de xampu, não receberia bônus de cinco dígitos no final do ano nem estrelaria uma campanha pela especulação imobiliária. Anônima e invisível, circula pelas esquinas e avenidas tentando escapar do aspirador de diferenças, que mantém a pobreza mas apaga a heterogeneidade.

Está à deriva; é uma náufraga em sua própria sociedade.



"Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro como é triste ignorar certas coisas."
Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Pequenina eternidade


Ainda de pijamas, ela abriu a porta, com os cabelos desgrenhados e os olhos inchados de tanto doer os pequenos vazios de sua existência. Aquele dia estava cinza, não havia apetite nem calor, mas ele a abraçou assim que entrou, num silêncio carinhoso e aconchegante. Nesse instante, ela constatou, surpresa, que seria para sempre.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

metamorfose


Foi quando Maria das Dores descobriu, por fim, que podia ser feliz: ao raspar o fundo da panela de doce com os dedos. Naquele instante, não houve marido inconstante, filhos desbocados ou patroa a ralhar. Existiam ela e os prazeres ínfimos do viver.


germes germânicos

Quando ele beijou lambeu arranhou o fundo do poço e, no meio de todos os clichês possíveis, constatou que já não haveria mais salvação para sua lavoura de tomates esborrachados em plurais sem “s” e abobrinhas feito praga, brotando aos montes por todos os poros, ele enfim olhou. E, ainda sob os bugalhos de seus chavões imprestáveis para abrir portas mas úteis em todas as outras aplicações, fez desse olhar – do primeiro ao segundo e depois o terceiro – sua tábua de salvação. Ao olhar, salvo ao menos um fragmento, disse a si mesmo entre arrotos e escarros, antes de tombar alucinado e inconsciente, sujo de pó e poeira. Ainda assim, inconscientemente, escavou uma fresta para a expressão mais pura que carregava em si. Porém, medroso e arrogante, não abriu mão de todo o resto: mero fim de feira. Pobres dos pulsos marcados de fugas.

E foi então que, ao olhar e com o olhar, se libertava de si mesmo e de todas todas todas as carcaças apodrecidas e largadas no restante de seu ser, o ser para o mundo, aquele mais visível e aparente. Seu mau hálito carregava frases feitas pedindo para serem dissolvidas imediatamente – e, entre alguma risada e boas parcerias, sempre recorria à cachaça para aplacar seu nervosismo por existir. Existir e, assim, ser descoberto em todas as suas farsas. Ao menos, era humano e assumia – havia gente que gostava dele por esse pedacinho.

E foi então que ele viu aquelas pernas, antes de tudo e de todos, aquelas pernas que ainda estavam a buscar e, decepcionadas, queriam esconder-se embaixo de uma calça ou de uma mesa. Ele não queria o todo – e a dona das pernas, embora quisesse um “ser inteiro”, sentia-se cansada demais das inconstâncias do gênero oposto para carregar um homem de verdade naquele momento. Ela insistia em falar no leve, na leveza, na necessidade do discurso não-assertivo. Ela era bem assertiva quando falava alto e longamente sobre a leveza. E, quando sorria inventando uma placidez para a irritação dormente lá lá lá no fundo, pedia clemência ao mundo que a deixava solitária. Assumamos: naquele instante, ela não queria dar satisfação a ninguém. Um fragmento verdadeiro era suficiente para seu deleite de mulher-fêmea.

Até que ele quis domar as pernas com suas velhas e manjadas piadas. Desfazer os laços longos dos sapatos de bailarina no caminho dos tornozelos aos joelhos aplicando os truques tirados frescos de sua lavoura de banalidades insossas. Mas foi pelo fragmento do olhar dela que o olhar dele recebeu acolhimento. Um flerte pelo retrovisor dos encontros, aquele pedaço de mundo, um espelhinho de reconhecimento. Duas carências unidas pela pureza mais sincera que o momento poderia propiciar. O fedor se unia ao perfume e tudo cheirava ao humano em estado primitivo. E, então, que se danasse o mundo, os demais, os amigos e os inimigos, as verdades recém-proferidas em tom de prosódia ou de discurso psicologuês. Fragmentários e fragmentados, assumidíssimos, eles se uniram. Pernas, mãos, é esse pedacinho, sabe, é esse pedacinho que me encanta, a justificativa ecoava entre os dentes, onde nem fio dental passa. Deram-se aos germes, os mais rígidos, os germes germânicos.

Eles se lançaram, juntos, juntinhos, grudados pelas extremidades mais óbvias, à droga mais pura e mais poderosa. E já que me mandaram à merda, cada qual a seu modo, pouco me importo com o final dessa história, da qual só sei um fragmento. E isso me basta, é claro.

terça-feira, 28 de julho de 2009


Voltar para onde tudo começou: Deus.

Essa existência é um longo preparativo... Ufa, às vezes me canso e me sinto pronta, mas sei que não estou.

Entre a eternidade e a imortalidade, sou muito mais a primeira. Não tenho nenhuma pretensão de estender a distância de minhas origens, pelo contrário; quero largar-me nelas e aí estar estar estar no ser, no Ser. Mergulhar definitivamente no Amor.

arroubos

(mfv, 2009)


-- Mas por quê?

-- Não vou repetir de novo. Já quebrei o disco arranhado há tempos. Você não quer me escutar de verdade. Se quisesse... -- bufou.
E então o inóspito: a maçaneta ficou na mão dele, impedindo-o de ir embora.

Ele chutou a mala, ela largou a almofada no chão. Silêncio. Silêncio. Bufo, suspiro. Silêncio carregado de tensão. Aquele olhar, ai, meu Deus. Eles se agarraram, se amaram, gargalharam, choraram, se desculparam, abriram uma garrafa de vinho reserva de 2004, juntaram as roupas dela em outra mala, arrombaram a porta e, em plena segunda-feira, às 16h14, pegaram o carro rumo às serras fluminenses ou à costa baiana ou aos interiores de algum lugar lindo e só deles. E falaram muito, muito, diálogos que há tempos não tinham, inclusive sem palavras.


quinta-feira, 23 de julho de 2009

Parada naquela estação

(MT, 2009)


Era um dia incrivelmente bonito: ensolarado, com algumas poucas nuvens inventando sombras e frescores e uma mescla de perfumes difusos anunciando tarde cheia de promessas. Um dia que se revelava enternecido. Um dia para uma reconciliação, um sorriso, um laço – e não para uma partida.

Mas foi quando você decidiu ir. Respirou fundo ao se espreguiçar. Na verdade, você não tinha dormido. Virara tanto na cama quanto suspirara embaixo dos lençóis, tentando dialogar com os espaços de tempo entre os segundos, para que o relógio não avançasse, e com os espaços entre nós, na tentativa de corrigir abismos. Também eu não dormira. Me forçara a sonhar acordada, imaginando uma compilação de novos verbetes que nos ajudasse a lidar com os diálogos já sem rumo. Respirou fundo. Entendi. Voltou seus olhos úmidos para os meus, já secos e inchados, tocou meu rosto. Não nos doíamos pela possibilidade de um de nós amar um outro, uma outra. Doíamos porque já não nos amávamos, porque sabíamos disso e porque, embora parecesse certo tentar remontar o quebra-cabeça de nossas emoções e querências, não tentávamos. Sua mão tocou meu rosto, meu colo, meus seios, minhas pernas, minhas costas, meus cabelos, seus lábios roçavam os meus, gozamos juntos com os olhos fixos nos olhos do outro. Impávidos. Você, então, se levantou. Vestiu-se. Lentamente juntou seus ternos, suas camisas, suas calças. Dobrava com cuidado, como nunca fizera. Eu soluçava – você buscou um copo d’água, sentou ao meu lado, segurou minha mão. Chorou. Recorríamos os mesmos recantos do quarto com nossas lembranças: a escrivaninha, a poltrona, o armário, o quadro, a luminária, nossos chinelos. Recolhi suas meias na gaveta, suas cuecas e, com delicadeza, coloquei na mala. Respirou fundo de novo. Respirei fundo em dueto. Não dissemos nada. O silêncio carregava tantas juras quanto cobranças e ambos estávamos cansados. Quando você saiu do quarto, do apartamento, fechei as janelas novamente. Puxei as cobertas, me escondi nos espaços já preenchidos no lençol, nas dobras que guardavam seu cheiro. Fechei os olhos com força, voltei a soluçar, rebobinei a manhã, a madrugada, a noite, a vida inteira. Ouvi o apito do trem, corri para a estação. Balançando os pezinhos no ar, me mantive aguardando a chegada do trem – e do outro, e do seguinte, e do que vinha depois, e do que vinha no outro dia, na outra semana, no outro mês. Você nunca veio com o trem. Você nunca voltou com o trem.

Fecho os olhos com força todas as vezes que a janela denuncia um dia ensolarado, com algumas poucas nuvens, tardes que querem trazer promessas. Sempre prolongo o sonho, inventando todas as vezes a mesma partida. Você respirou fundo. Eu pus suas meias na mala. Nos olhávamos fixamente enquanto gozávamos. Porque você nunca partiu – você desapareceu. E isso abriu um buraco tão imenso em meu gostar que sucumbi à queda. Eu preciso desta estação porque você nunca foi embora. Você, simplesmente, dissolveu-se numa tarde morna qualquer, como se jamais houvesse existido. Como se eu o tivesse inventado. Como se não tivesse havido um casal eu e você, você e eu – prolixo, imperfeito, sanguíneo.



Até hoje fico parada naquela estação, imaginando trens. Um trem que traga você – para que, finalmente, possa partir.

domingo, 19 de julho de 2009

Dora

(mfv,2009)


O dito se referia ao espelho, mas Dora suspirou ao recolher os cacos do cristal estatelado, estatelado como suas últimas esperanças. Sete anos de alguma coisa – azar, sorte, felicidade, tristeza, angústia, stress – era muito tempo. Preferia pensar em sete minutos, tempo não tão rápido como os segundos nem tão longo como as décadas. Os cacos, o cristal, o chão, a janela, o telefone, o lixo, a privada, o armário, a escrivaninha, os cacos de novo. Era quase manhã, mas ainda estava escuro dentro de Dora. A Dora, a Dora de agora, a Dora que adora hora, a Dora que demora, a Dora que ignora, a Dora que chora, chora muito a Dora, a Dora senhora de seus cravos – as flores – e de suas sardas – discretas –, a Dora que levou um fora. E a taça, presente inclemente, estraçalhada como suas últimas esperanças, pois sim. O dito se refere ao espelho, Dora. E ele, neste momento, te olha. Sim. A palavra é esta: embora.


sábado, 18 de julho de 2009

Esse é meu mundo ou é o mundo de então?

Respiro longo e empurro para fora
Pequenas melancolias, grandes delicadezas
Em prolongadas aspirações
Labirínticas inquietudes sabor jornal
Enquanto tudo roda roda roda
Passa passa passa
Corre corre corre
Diante de mim mesma estupefata:

! ! !

Queria um único dia
Único
Fingir que sou vegetal invertebrada dessapientizada
À mercê da fotossíntese e dos ciclos de auroras
Quase imóvel
( )
Apenas sorvendo as sombras, os reflexos e os pigmentos
Das cenas vivas
>>>

Es pa s mo s
“ ”
Eis-me

.

Esse é meu mundo. É o mundo de então.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

romantílica que só

(MFV, 2009)


Eu não acredito mais em histórias de amor, disse ela, bêbada, ainda que continue a escrevê-las sempre, com batom quando for preciso, com saliva se for dispensável. Fragmentos de sua pessoa caíam aos borbotões pela rua ainda úmida de ilusões e adeus. Alguns restos de lixo perturbavam as esquinas nem tão escuras quanto muitos gostariam. Botas de cano longo e salto fino misturavam-se a gatunos à espreita. Eram infelizes, todos, menos ela, ela bêbada, ela lúcida, ela desamada desanimada inanimada unânime na decisão de desacreditar das histórias de amor, especialmente as românticas.

Como se histórias de amor pudessem ser algo além de românticas, interrompeu ela, discordando inocentemente, incoerentemente, porque também acreditava que as histórias de amor pudessem ser qualquer coisa, pudessem ser histórias de amor heróicas, infames, de terror, dramáticas.

Tá. Odeio especialmente as românticas.

A noite não se calava, o silêncio era abrupto e o vento, rancoroso. Os olhos borrados, os lábios ainda tão bem pintados, os cabelos se lançavam ao balançar de seus passos incertos, incorretos. Havia um vácuo de fêmea, uma incrível crise de sentimentalidades, pulsava, é certo, pulsava vaginalmente, seu coração estalava, e ela ainda se fazia crer que tremia de frio.

Qual o quê!
Qual o quê, ela depois diria, tomando um chocolate quente meio amargo, meio dolorido, deveras penoso para a mulher que era. Digna, digna, muito digna, bonita a seu modo, indiferente sem querer, estampada nos postes, nas paredes, nos letreiros, nas cartas já desfeitas, nas linhas tortas. Amava tanto, mas o problema é que ainda acreditava que qualquer dia desses ainda toparia com um cara que iria amá-la também, e mais: que iria querer passar mais de um dia, uma semana, um mês, um ano a seu lado.

Decididamente, engasgou ela, com a língua queimada pelo chocolate, não existe amor romântico. E cuspiu um restinho de fantasia, teimosa, entre os dentes.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

e(u)fe(me)rida(s)des

(MFV, 2009)


Já nem éramos mais
E restávamos, ainda inteiros,
Das intempéries ora íntimas, ora forasteiras
De toda uma avalanche de objeções e securas
Muitas cultivadas feito larva, feito lava, feito lavra
Por nós mesmos

Havia uma esperança
De reconstrução de espaços, de ventilação dos silêncios
Ausências pesadas, incongruências fluorescentes
Trôpegos, tropeçantes
Havia
Sempre ia, vai, iria, haveria,
Enquanto que

Mas danamos as conjunções e as conjugações todas

Se tristeza, se vazio gatuno, se vaza
As fantasias todas presas com colchetes coloridos
Imagens projetadas, sombras na parede, sombras claras, mas oras!
Sombras!
Não, não, nada disso, não, o que queríamos mesmo
Era voar livres.

E vivos.


segunda-feira, 29 de junho de 2009

Blasfêmias

(Luar no Rio São Francisco, MFV, 2009)

Estávamos assim, distraídos, dizendo blasfêmias ao ar. Nada que deixasse as mais puritanas coradas de tanto despudor ou os ultraconservadores irremediavelmente indignados com nossa petulância. Talvez ninguém tivesse notado o ar mais leve, um certo bailar de palavras marotas, um suave desvio no caminho tradicional das esperas e das expectativas. Nossas blasfêmias eram muito mais pequeninas revoluções em nossas maneiras de fazer todas as coisas que um ser humano naturalmente faz, inclusive amar. Estar junto, estar separado. Como ousávamos desafiar aquilo que sempre foi, especialmente aquilo que sempre foi para nós mesmos? Nem nós sabíamos. E blasfemávamos, irracionais e felizes, ferindo todas as regras que havíamos criado durante anos, anos e mais anos, uma sequência impensável de tempos mortos e tempos vivos. Navegávamos a sudeste, porque a leste estava o mar maior e ao sul estava nosso desejo, e empreendíamos pequenas mudanças. Pequenas mudanças de dimensões imensas. Insensatas. As cortinas. O colchão. A marca de iogurte. O livro de cabeceira. O xampu. O endereço. Já não éramos aqueles que fomos tanto, aqueles com os quais já havíamos nos acostumado a duras penas, quando ainda naquela frágil crença de que o abstrato pode ser domado e o subjetivo, subjugado. Éramos blasfemadores, agora, blasfêmea, blasmacho, juntos, sem blás, sem menos, sem ou com. Porque simplesmente éramos. O ar permanecia leve, carregado de nossa subversão e de nossa pureza de espírito. Ainda se a terra se fizesse esturricada de tanto sol, porque às vezes a quentura queimava, ou se as nuvens escuras jamais trouxessem chuva, apenas dissabores, não nos abandonávamos – nem às nossas agruras agudas, saídas sem ser convidadas dos quartos mais embolorados ou dos sótãos escuros, nem um ao outro. Isso já tinha sido impensável, mas agora se tornara blasfêmia das boas, quando nos admirávamos em voz alta de nossos novos sotaques ou quando partilhávamos nossa história com alguém. E não só um, mas dois ou muitos alguéns se sentiam desconfortáveis com nossas navegações. Porque chegáramos a um oceano desses sem-fim, apenas com nossa ilha e nosso barco, incansáveis de remar e nadar e sonhar. Juntos, sempre, ainda que fôssemos encantados cada qual com uma estrela diferente, com um jeito de sugar o arco-íris ou erotizar o vento. Cada novo amanhecer carregava novidades de nós mesmos e de todas as outras vidas e coisas do universo, que encarávamos com sofreguidão e respeito, concordando sobre onde deixar os chinelos ou se as mexericas ficariam ao lado das bananas. Ah, distraídos seguíamos, somados, ávidos de blasflores, blasfemadores totais. Revolucionando nossas miudezas e nossas antigas legislações.
Vivíamos amantes.

domingo, 28 de junho de 2009

sábado, 23 de maio de 2009

um turbilhão
nariz entupido
convites para um show, um jantar, um bem-estar
mas eu queria só deitar

e na grama das minhas tranquilidades
adormecer na proximidade
da trilha recém-descoberta

novidade imberbe, ah,
a terra vermelha desse chão.

gosto desse:

http://diariodeloricapitu.blogspot.com/2008/03/encontro-e-desencontro-ou-bela-e-fera.html

terça-feira, 19 de maio de 2009

pequenina historieta de amor miúdo

(MFV, 2009)

Airam, quando se deu conta, percebeu-se com um sentimento de que estava do avesso e já fazia um bom tempo. Não só do avesso, como também numa fauna à qual pertencia em parte. Airam carregava nos grandes olhos e no coração a estranheza daqueles que constatam pensamentos largos e solenes muito cedo. O que fazer com aquilo tudo, perguntou-se, logo no início. Depois, aos pouquinhos, aprendeu a evaporar os excessos e a condensar os pormenores sem que nada fosse a mais do que realmente era. Viver era complicado, porém lhe fascinava. Não havia como desvirar Airam e fazê-la como todas as outras mulheres, pois seu avesso já lhe combinava e era habitual, e naturalmente um lugar no mundo havia surgido um tanto aos trancos, outras vezes aos prantos, de tanto que Airam se movia. Aliás, a inquietude dela não encontrava mais limites e o engraçado é que a realidade, em todas as suas contradições, parecia mimá-la – ou, talvez, reforçar seus disparates tão saudáveis. E assim, um tanto torta e um tanto endireitada, avessa a mecanismos enferrujados e padrões vendidos em sacos etiquetados e cristalizados, porém desde sempre do avesso, Airam suspirou tão fundo e decidiu prestar a atenção no universo ainda mais minúsculo de bem-quereres a fim de, quem sabe, fazer coincidir seus grandes olhos e seu coração com os de um possível companheiro passível de aceitá-la em toda a sua incongruência e esplendor de humana. Pois assim, quem sabe, novas outroras plenas de auroras seriam geradas e semeadas.

sábado, 16 de maio de 2009

[preâmbulo]

Aspas
Escuto atentamente o que
Clama meu impulso além alma
Transcendo

E vou direto ao travessão

Atravesso
Sem chios, sem chavão
Avessos

Conexos? Abra aspas
E eu recolho os pedacinhos da canção
Além alma que lhe acendo
Nesse aceno

Obsceno.

passos, paz, sopas

Parece sempre inevitável empreender mais uma etapa dessa travessia que não tem fim, que é eterna. Travessias se completam, mas não terminam e, quando compreendi isso, atingi a outra margem do rio. Uma epifania.

As reverberações se acumulam como camadas de um doce de distintos sabores delicadamente combinados para uma experiência sensorial inigualável. As vivências ganham vida a cada sono meu, quando se nutrem de lembranças e inconsciências registradas, e aí saem para o mundo sob a forma de, sob várias formas. Eu vou sendo cada vez mais, quanto mais estou, sou, e se sou bastante estou ainda mais larga e grande, sempre um pouco mais.


A menina queria ser escritora, a adolescente queria desbravar o mundo e a junção das duas resulta numa mulher de oceanos e sertões, de desertos e florestas, de riachos e pássaros, de casas e prédios, pés e asas, ventre, ventre, ventre, sangue, sangue, sangue e sonhos de luz. Muitíssima luz.

Não acho que precise entender tudo milimetricamente em termos palatáveis e vendidos em saquinhos lacrados. Me fiz amiga do mistério e do imprevisível e, enquanto não sei ainda quais serão meus tons na antemanhã, aventuro-me simplesmente em mais um bocadinho de travessia que se apresenta, que invento ou que a vida mesma arrebenta em minha frente, como pipoca. E eu desfruto, claro. Com gosto.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

A minha "Budapeste", releitura (1)

(caderno de viagem n.° 2, 2008)


Não sei bem como esse fascínio apareceu, começou ou se instalou aqui dentro. Certamente não foi nos primeiros dias, eu ainda às voltas com Partizan X Fenerbahçe e preconceitos alheios grudados em meus pensamentos. Passado o susto com tudo -- estar na Sérvia era um misto de curiosidade e auto-surpresa --, veio o enamoramento: eu queria porque queria entrar no mundo do alfabeto cirílico, compreendê-lo, decifrá-lo, devorá-lo, regurgitá-lo, desenhá-lo. E pirar com seus sons e formatos. Eu queria falar sérvio e, depois, escorregar para uma tentativa em russo, croata, bósnio. Autobuska stanica. Ja sam radio. Ko? Gde? Kada? Registrava como ouvia: velma stê liubasni. Dali mojetê da mi kajetê malo ossivom jivôtu? Delirava. "Kakoste!", dizia. "Previ put sam u Srbije. Ja sam novinarka." Oi, minha primeira vez na Sérvia, sou jornalista. Fiquei grande amiga de uma polonesa que vivia na República Checa. Voluntariamos nas montanhas próximas à fronteira com a Bulgária. Misturando seus dois idiomas, a amiga se fazia entender pelos sérvios. E resolvemos montar, as duas quixotescas, uma peça de teatro para a comunidade local. Em sérvio. "Hvala!", me agradecia a feliz platéia. Ah... Brat, sestra, kasnije... minhas adoráveis palavrinhas foram ficando para trás. Passou mês, virou ano, cabeça cheia, puxa, o português!, até ontem. Assistia a "Alexandra", filme russo do russo Sukorov, e algo se passou: COMPREENDI algumas palavras! Houve instantes em que me distraí da película, e fui a meu mundo repetindo a palavra reconhecida de significado reconhecido também, como se fosse um segredo, um mantra, um termo mágico. Experimentei novo delírio, uma rouquidão interna-interior de tanto gritar de prazer idiomático. Os créditos finais, em cirílico, me levaram a uma dimensão orgástica. Passeei com imensa satisfação pelos símbolos do meu fascínio. E decidi algo extravagante: que eu ainda aprendo esse alfabeto do caramba. Por meio do russo ou do idioma sérvio. Mas eu aprendo!