domingo, 29 de março de 2009

Quem saberá?

(MFV, 2009)


Há uma beleza na incerteza que é toda ela.
Como uma espécie de miragem que é concreta,
Ou uma existência palpável instantaneamente absorvida pelo ar.
Nem diluída, nem apagada: absorvida.
Por isso, a incerteza se sente e é sentida e tem sentido.
Além de ser bonita, bonita,
Daquela beleza que se apreende, mas não se vê.

quarta-feira, 25 de março de 2009

surpresa andradiana

Roni tem 27 anos e, três meses atrás, tornou-se pai de uma garotinha. Nasceu em Aguiarnópolis (TO) e, embora trabalhe desde cedo, só há três anos conquistou carteira assinada. Pensava em ir a Brasília em busca de uma melhora de vida, mas surgiu uma oportunidade de emprego lá em sua região. No que gosta de fazer: carpintaria. Hoje na construção civil, Roni sonha em seguir erguendo barragens. Fala com ânimo: "Quero no futuro ter minha própria história para contar."


Suspirei a respiração por um segundo, num gesto de respeito e admiração.
Roni é um brasileiro que nem eu.

segunda-feira, 23 de março de 2009

chanson de tristesse


Quando meus pés ficaram gelados, no meio da noite, e tive sede, me senti triste. Triste porque aceito seu “egoísmo da novidade”, que suponho passageiro e compreensível, e sua necessidade de se aproximar dos discursos parecidos, dos momentos parecidos. Mas lamento que seus ouvidos tenham estado fechados para as minhas histórias. E para as histórias que recolhi quando estive lá e não cá. Que eu, pouco a pouco, venha me tornando desinteressante porque não estava nem estou na sua novidade. Porque me encontro em minha própria novidade, diferente e tão cativante quanto a sua, porém da qual você nem se esforça em participar.

A tristeza entrou no sonho. Nele, você não estava. Você havia tirado sua fotografia da cortiça na parede e vaticinado que eu só dou para os livros e não para os palcos. Por isso, você não estaria onde eu estivesse. No sono, no sono pesado e macilento, contudo, você apareceu. Estava tentando conversar comigo usando o diálogo de antes, de muitos meses atrás, como se só você estivesse experimentando as mudanças e as descobertas e eu continuasse igualzinha e idêntica àquela do passado. Acordei com um sabor azedo na boca. Você sabia que eu não era aquela de antes. Você notou, constatou. Por que então me forçava a caber naquele espaço obsoleto dentro de sua vida? Teve medo, desconfiança?


O tempo passou também para nós, o que em si não traz nenhum problema nem anuncia separação ou ruptura. Porém, você estabeleceu que eu não sei participar de sua jornada atual. Que minhas palavras não lhe servem, parecem irritantes até. Soltei um suspiro, comi uma colher de doce. Não adiantou. Dia desses, quando observava que o horizonte nem sempre é uma linha reta, meu deu uma baita saudade das perguntas que você não me fez: Qual o pôr-do-sol mais bonito que você viu? E a pimenta mais ardida? Em que grama gostou mais de estatelar-se? Qual foi o minuto que lhe passou mais devagar? E o mais rápido? E qual o olhar que lhe chamou mais atenção?

Você não quis saber. Satisfeita, talvez, com as mensagens esporádicas enviadas de lá, me deu a impressão de me punir, no cá, com um leve descaso ou com uma inexorável sentença de tempo: já passou. Seu tempo é gerundiano, está passando. Mas você me prendeu ao passado: ao meu, ao seu e ao nosso. Comecei a acinzentar-me, você ficou aliviada. Enquanto estou na toca, não lhe proponho novos desafios. Melhor assim.

Quando a cortina bateu forte contra a parede, por conta do vento ou de um despreparo mútuo de nossa parte, pensei de novo no “egoísmo da novidade”. Por si só, não é nada de mal ou de mais. Mas, quando ele delimita o espaço do outro em sua vida, oferecendo-lhe uniformes e um regulamento básico, faz chorar. Talvez ninguém esteja a princípio acostumado às mudanças, muito menos nós. Talvez porque tais mudanças sejam tão maiúsculas, respectivamente, que nos surpreendemos. Eu parei de boca aberta, coração acelerado, sinapses desconexas. Você até tentou me carregar para dentro das suas, mas dado meu ritmo outro, franziu a testa cansada e me restringiu a uma atuação inócua. Ah, sim, eu não dou para os palcos... nem para a música.


Não sei se tenho razão, nem quero a última palavra. Dispenso os rótulos “certa” e “errada”. Não filtro você no papel Melita de minhas experiências, de minhas conveniências. Não. Simplesmente a observo, agora de longe, absortas ambas. Continuo triste, no entanto. Sem entender, entendendo. Fique onde quiser ficar, aninhe-se onde melhor
lhe convier. Estarei feliz quando estiver, você sempre soube. Não é a proximidade física ou a posse que me importam. Mas, por favor, não me trate como uma desconhecida. Talvez minhas histórias sejam demasiado distantes, demasiado engajadas, vá lá, porém tente ao menos aceitar que existem – que são diferentes, vivas, amplas e edificantes. Porque são minhas. Não me restrinja a um ou dois discursos, como um CD riscado que não sai da faixa 2.


Ontem mesmo sentia o sabor de pêra com nozes. Falávamos sobre pôr-do-sol, epifanias e comunhões.
Quem é você agora?
Você também não quis saber...

domingo, 22 de março de 2009

(MFV, 2009)


Você tinha um lado da barba mais denso que o outro, o que me encantava. Às vezes, os cílios longos desviavam minha atenção de seus olhos cor de mel que se enchiam de lágrimas em momentos surpreendentes. Eu pensava que ia sair por aquela porta na segunda vez em que você fosse rude comigo, mas estou aqui até hoje. Porque sua rudeza é igual à birra tardia, tardia, de um menino que aprendeu a doer e a sofrer muito cedo. E sei que você ficava com muito medo de soltar o fio que me prendia à gravidade terrestre, por isso me chacoalhava de tempos em tempos, em alguns momentos com força demais. Eu tinha medo de te quebrar em pedaços assimétricos com meu abraço, porque você sempre me pareceu demasiado frágil. E achava estranho dormir abraçada com você, ainda mais porque eu é que devia te abraçar e não você a mim. Assim mesmo, com tudo esquisito, continuei aqui. Eu nunca tive a menor idéia do que você pensava a meu respeito, se gostava de mim ou não, porém todos os outros ouviam você falar a meu respeito. E falava bem, embora às vezes usasse adjetivos agressivos quando estava bravo (não comigo, ou não só comigo, mas com a vida). Para você, eu não era nada de mais em partes, mas meu todo se tornava imprescindível. Com você, eu não tinha certeza de nada, nem de quem eu podia virar no minuto seguinte ou se ia ter fome na hora de jantar. Sem você, eu poderia voltar à rotina de sempre e diminuir até caber na roupa de novo.

A gente mal sabia um do outro e já conhecia tanto, tanto. Não sei que final tem essa história, se já o teve, nem por que a conto, porém acho que desenvolvi um tipo de gostar que desapega até do momento da própria história. Se foi, se vai ser, se é... Continuo aqui, nesse gostar. E ouço sua voz, mesmo quando você nada diz. E se não dirá.

sábado, 21 de março de 2009

laissez tomber

(2009)

No aprendizado dos tempos. Deixar ir, let it go.

segunda-feira, 16 de março de 2009

peraltice

(2009)


era segunda-feira, ela não tinha expectativas expandidas além do dormir, comer, trabalhar, ler, sono, sede, fome, vontade, banho, suspiro, respiro, outro respiro, desta vez mais fundo. senta, levanta, reinventa. ah. reinventa! podia ter sido qualquer outro dia, de mais inspiração e menos mesmice, mas foi justamente aquele. naquela segunda.

fez um caminho conhecido: corredor, cozinha. abre a geladeira e lá estava ela, rosada e perfeita em suas curvas imperfeitas. clic. a gente ama o parecido, sempre, mesmo com a desculpa de buscar o diferente, o oposto, o avesso. a gente não assume, às vezes nem tem consciência. apenas segue, seguindo mesmo, o fluxo da vida, das interjeições e dos encanamentos existenciais. clic. assim foi com ela, ou com elas: encanto em primeira pessoa. um reconhecimento, uma identificação, um parecer-se. aquele róseo, meu deus. as mãos tremiam quando a lavava. um sentimento de quase pecado, de transgressão. era como se tocasse, tocando outra. outra! gênero: feminino. espécie: fruta. condição: sedutora. especificidade: madura, suculenta. oferta: comestível. opção: uma única vez. e com ela.

consumou-se demorada e languidamente a relação sensorial e cheia de frescor entre uma mulher de pele rósea e curvas imperfeitas e uma pêra de pele rósea e curvas imperfeitas. ambas brancas e lúcidas, entregando-se em mordidas ou bocados. uma boca e uma polpa. encontradas e realizadas. entregues ao desenrolar da cauda do tempo e das temperaturas. de uma delícia só. de um desbunde impressionante. pacientemente, respeitando cada instante, cada espacinho de ar entre uma mordida dada e um bocadinho cedido. ambas suas. elas. das duas.


ela, espécie mulher, sabia da opção. era uma única vez: um fazer-se eva em momento de lilith lá nos idos de sua entrega à maçã. uma mulher, depois de entregar-se a uma fruta, jamais seria a mesma mulher ou apenas uma mulher ou mais uma mulher. ainda mais com uma pêra. era ‘aquela que’, e sendo, preenchia o universo ao seu redor com sua peraltice de fêmea. um perigo.

não conseguia ir à feira ou ao mercado. nas bancas, as frutas todas a apontariam como adúltera se ela decidisse comprar meia dúzia de bananas, ou um cacho de uvas, duas laranjas, ou outras pêras. não conseguia mais encarar os sucos de caixinha, em especial os que estampavam pêras desbotadas e assexuadas, um acinte à magnitude das fêmeas. as sobremesas não lhe atraíam mais a atenção e, durante muito tempo, ela visitou hortas e pomares para entender a origem de todas as origens. chegou a dormir, cochilar, meditar, estender-se aos pés de pereiras, aprendendo vagarosamente a linguagem única das frutas-fêmeas. nem todas tinham pele rosada e aquelas curvas imperfeitas de tamanha perfeição quanto a sua. pêra havia sido única.

passaram-se nove meses, e ela descobriu-se prestes a dar à luz. tinha engolido as sementes, no afã da experiência, numa tentativa de ficar junto só mais um pouquinho. pariu uma flor que chamou de peralta e que plantou lá no jardim. peralta só abre de segunda-feira e parece que um dia pode virar árvore. ou fruta. ou mulher.


domingo, 15 de março de 2009

ao acaso, por acaso

(2009)


1.
Eles se encontraram literalmente no meio da rua, num desses horários improváveis, meio de tarde no meio da semana, quando as pessoas em geral seguem trabalhando em seus escritórios ou correm para pegar o banco aberto. Fazia muito tempo que não se viam e até tinham se esquecido um da existência do outro. Afinal, nunca foram mais que colegas de trabalho. Jamais houve um almoço de mera conversa, uma coincidência de tomar café na mesma hora, uma carona casual – uma informalidade qualquer dessas que aproximam duas pessoas estranhas. Conheceram-se e, durante um período, conviveram, mas continuavam indiferentes um ao outro.
Ela, na camada pré-sal de seus pensamentos, ouviu seu nome quando atravessava a rua, bem na faixa que separa a pista que desce daquela que sobe. Cumprimentaram-se, ainda com os pés no asfalto, distraídos, até que ela sugeriu sobriamente que optassem por uma das calçadas. Foi seu único momento de sobriedade. Ele estava curioso. Apressado, mas curioso. Os cabelos dela tão finos e tão despenteados. Ela ficou envergonhada: era um homem, e não um menino, diante dela. As poeiras do ar daquele instante não sabiam dar mais detalhe algum: se ele estava casado novamente, se ela continuava solteira, se ele estava mais bonito, se ela se encontrava mais gordinha, se ele era realmente um cara legal, se ela surpreendentemente parecia uma mulher atraente. Ninguém, nem os dois nem as poeiras, muito menos as pessoas atarefadas e urgentes de desnecessidades, parecia preocupado com tais informações.

2.
Ela estava nos profundos do fundo de seu oceano particular quando foi chamada à tona. Teve medo da embolia, por conta da subida rápida. Por isso, não mudou sua técnica: foi soltando o ar aos pouquinhos, vagarosamente, enquanto avançava camadas aquáticas rumo à superfície. Os peixinhos lhe faziam cócegas. Ela ria.

3.
Ele seguia anestesiado sob os efeitos da palestra da qual acabara de participar. Consciência, sagrado, existência, pessoalidade, vida em plenitude. Tudo reverberante, como sinos de um mosteiro em compasso com o silêncio do ser. Não, a transição ao barulho cotidiano não podia ser veloz. Ele ouvia atento.

4.
No diálogo real, falaram de aqui e agora, da ruptura com o que foi, das mudanças e de “não sei”. Descobriram-se similares na disposição ao novo e à honestidade com as pessoas que eram.
Mas poderia ter sido assim a conversa, um monte de não-ditos:
— Tanto tempo lado a lado e jamais imaginaríamos que.
— No fundo, parecidos...
— Pois é, eu te achava legal. Um cara simpático.
— Você também parecia legal, mas distante. Reclusa em você mesma, espinhosa.
— Você era casado na época.
— Isso não mudaria as coisas. Mas prestava muita atenção em superficialidades, confesso.
— O importante é que não tenha ficado nisso.
— Não. Quero mais para mim. E poder me dedicar ao que realmente gosto.
— Do que você realmente gosta?
— Pois então, não sei. Ainda não sei.
— (Risos) Nem eu!
— Então, você foi à Palestina e ao Kosovo...
— E você, certa vez, cruzou o Vietnã e o Camboja de bicicleta, né?
— Respeito as fronteiras, mas não as vejo como imperativos.
— Viva a travessia!
— De Guimarães Rosa.
— E de Pessoa.

Viria então um silêncio e os olhos travariam um diálogo. Ele ficaria túrgido e ela, eriçada. Ela o convidaria para um mergulho em seu oceano, ele a levaria para passear em seu mosteiro de campinas, delicadezas reverberantes e sinos. Seria tudo muito, muito gentil. Às vezes, faria cócegas, em outras quanta intensidade. E teria as risadas e as satisfações de um “não sei”, sem antes ou depois. Seriam apenas eles dois. Assim, ao acaso.

5.
Dois universos momentaneamente tão parecidos cruzados por puro mistério. Quantos não se cruzam diariamente? Porém, como não conhecemos nem um 1% da população mundial, não nos damos conta. Porque se disséssemos ‘alô’ a todos que passam por nosso caminho todos os dias ficaríamos espantados com as coincidências de humanos. E com as desnecessidades e os desperdícios também. Mas só alguns, reconheço, misturam diálogo de alma e empatia e carinho. Só alguns.

6.
Na despedida, ele – mais alto, olhando-a de cima para baixo – segurou a mão dela – mais baixa, olhando-o de baixo para cima. Atitude espontânea. Afeto (sinos! sinos!)? Ela corou e acelerou seus batimentos cardíacos (embolia! embolia!). Ele deu um beijo em sua (dela) bochecha quente, despedindo-se. Ela, embriagada, atônita e ainda dentro d´água, disse qualquer coisa sem nexo. Convidaram-se a um café, mutuamente, ele perguntou o e-mail dela, ambos sabendo que ele ia esquecê-lo em seguida. E pouco importava. Então, ele deu mais um beijo na mesma bochecha quente dela. Sem largar a mão.

7.
Num desses filmes açucarados, a mocinha fica com a jaqueta do mocinho, depois do primeiro beijo de ambos, na seqüência de um encontro ao acaso. E ela diz para ele não a seguir ou procurar, por favor. Se ambos se encontrarem novamente, sentencia ela, é porque sim. E então. Aí ele terá sua jaqueta de volta. O filme pertence a Hollywood, mas isso acontece às vezes na vida real.

8.
Foi um encontro ao acaso. Simples e singelo.
Se eu fosse escrever um conto curto a respeito, diria que ela sonhou três vezes com ele: de quarta para quinta, de quinta para sexta e de sábado para domingo. Na primeira vez, ambos estavam sozinhos no sítio dele no interior. Ela precisava voltar à capital por um motivo qualquer. Ele a acompanhou até a estação rodoviária. Ambos sabiam que ela retornaria ao sítio. Na segunda vez, os dois acompanhavam um grupo de indianos em visita a algum lugar que era lugar nenhum específico. Um misto de deserto com praia e museu de antropologia. Estavam juntos, e era suave. Na terceira vez, o contexto sumiu e só o que se lembra é que, finalmente, ambos fizeram amor.

Sinos e mergulhos.
Por acaso.

iguais, mas únicos

(2009)

sábado, 14 de março de 2009

bem-me-quer, mal-me-quer

(2009)

Deitado eternamente em seu berço esplêndido, vendo ser dilapidadas suas riquezas naturais e massacrados seus recursos humanos, o país que me pariu dá de ombros à minha grandeza e aponta o sol da liberdade: "se quer ir, vai. somos 190 milhões, quem fará falta?"

Não fujo à luta, pátria, respondo, rebelde e indignada, mortificada pelo desdém, e por isso vou embora. Para lutar diferente, para buscar um futuro em que o colosso de minha dignidade possa se espelhar. E partilhar tal conquista com os demais.

O pais que me pariu, rodeado de cupinchas, uns velhos, outros plastificados, um com siglas de duas maiúsculas, outros com partidos de nomes pomposos, o país que me pariu, aconselhado por gente rica de toga e arrogância e preguiça e egoísmo, o país que me pariu segue com seus discursos antiquados e obsoletos: "Nossos bosques têm mais vida! Vamos exauri-los, então!" "Nossos rios têm mais força! Acabemos com eles, instalemos inúmeras usinas insensatas!" "Nossos campos têm mais flores! Esmaguemo-las e plantemos soja, e coloquemos gado, e exploremos inconseqüentemente os minérios abaixo do solo!" "Nossa vida, no meu seio, tem mais amores! Então, esqueçamos essa gente nojenta... esses ribeirinhos, esses indígenas, esses cidadãos honestos, os pobres, os miseráveis, os favelados, a classe média, os trabalhadores, os aposentados, as crianças, os jovens! Que vão viver seus amores à base da droga que alimenta o tráfico, que vivam inseguros, que não tenham perspectivas, que se danem!"

Não, isso não é ser uma mãe gentil.
O país que me pariu já nem me ouve, fascinado com a própria foto na coluna das estrelas em ascensão: "Sou o florão da América!"

Até o Cruzeiro do Sul balança a cauda, envergonhado, o Ipiranga não existe faz tempo.
E eu, dona de um sonho intenso e de raios vívidos, ainda arrisco uma nova oportunidade. Mas... mal-me-quer. Então, vou a quem me queira. E que me respeite de verdade, como ser humana.

quinta-feira, 12 de março de 2009

obituário

(2009)


Diziam que tinha sido jornalista, idealista, quase comunista, artista de brilho fosco, anjo da cara suja, boa amante, namorada desajeitada e fujona, ser espiritual e romântico, simpática e afável, pacífica e pavio curto, confusa e difusa, tudo ao mesmo tempo, tudo durante todo o tempo, tudo. Toda. Inteira.

Tinha sido uma mulher faceira.

Era o que diziam. Mas quem sabe? A essência, no fundo, talvez jamais seja sabida – e ninguém nunca essa certeza terá.

Foi encontrada invisivelmente estatelada no chão de todas as desesperações humanas, no duro chão de todas as agonias e de todas as dificuldades existenciais, estatelada, estatelada sem estar estraçalhada, porque se manteve inteira até esse fim.

Essa mulher teve um fim. Um fim! Uma mulher assim!

Diziam que morrera de tristeza. Que fora suicídio induzido, ou que gentes mesquinhas vinham-na matando aos pouquinhos, diziam também que poderia ter sido homicídio cometido pelo Bandido Capitalismo, esse morto-vivo gosmento, ou então um acidente terrível: ela havia desabado no abismo entre sua vida alada e o cotidiano maçante. Quem saberá? Meras especulações.

Deixara um testamento, dividindo seus sonhos, seus momentos e seus experimentos entre as pessoas que realmente partilharam partes de sua caminhada nos últimos tempos, no tempo todo, durante os temporais, nos dias de têmpora franzida ou esgarçada.

Diziam muito, mas pouco falavam de fato: essa mulher não foi um mero acidente histórico. Veio, viu, vomitou, viajou, vacilou, venceu, viveu e voou.

terça-feira, 10 de março de 2009

segunda-feira, 9 de março de 2009

fora

(2009)


Tudo fora do lugar. Ela. Seus sentimentos. Sua presença. Sua ausência. Suas vontades. Suas desvontades. Seus sapatos. Suas malas. Suas asas. Fora de lugar. O que devia estar aqui estava lá. E o que talvez fluísse melhor ali estava acolá ou aqui.

Tinha de ser assim, talvez, quem saberia? Mas é que doía. Doía e cansava. Cansava e irritava. Irritava e secava. E, seco assim, não respirava com prazer. Respirava com um certo ar de enfado e ansiedade misturados à poluição e às lágrimas evaporadas, dela e de outros. Sua vida enrijecia devagarzinho, com câimbras e enxaquecas. Não, isso não!

Um, doze, mil e sete... Porque deu, então, para contar as lágrimas quando a obviedade diária a entediava, obrigando-a a ser cotidiana também. Ela não era cotidiana – e nem por rebeldia ou precaução. Simplesmente não era, e isso igualmente doía muito. Abstraía, contava as lágrimas, lembrando-se até daquelas que rolaram em 1987 ou 2003. Então, vinha um sorriso, assim, desprevenido e inteligente. Ela caía em si, seus sentimentos, sua presença, sua ausência, vontades e desvontades, sapatos, malas... tudo no lugar, mas. As asas. As asas não mexiam de todo, porque ainda não era hora de novo.

Ah, janela. Nuvem. Cortina. Céu. Oceano, oceano. Momento de atravessar o muro, de arrumar a cama bagunçada, bagunçadíssima, pela lembrança dos amores todos. De frente para a vida, tinha o braço direito esticado para a Espanha e o pé esquerdo puxado pelo Chile. Mas essas eram meras abstrações de um passado que ia passando devagarzinho enquanto bem-quereres se acumulavam nas gavetas e em pontos epidérmicos estratégicos.

Assumia-se, portanto, uma pilha desorganizada e quase deliciosamente desequilibrada de vontades, interesses, sonhos, digestões, fotos, suspiros, calcinhas, vestidos, dicionários, e-mails, amigos, emoções, vazios, cheios, quilos a mais, saudades e dores. Três mil, cento e catorze, um milhão, quinhentos e dois... Ah, as lágrimas. Pois é.

Numa madrugada qualquer, sem saber se vinha ensolarado ou aguado aquele próximo dia, um silêncio acolhedor e um friozinho erótico, ela sentou-se sonhada e sonâmbula na beira da cama, como que se estivesse preparada para partir. A seu lado, a bagagem leve cheia de perguntas e frases ainda por começar.

E as asas bateram, ritmadas como no sexo, elevadas como na meditação, embriagadas como num brinde, brisas como no amor. Ela, então, voou. Para fora daquele lugar.


domingo, 8 de março de 2009

Numa tarde dessas

(MFV, 2009)


Era uma dessas tardes de outono paulistanas, em que o coração às vezes para indeciso entre um suspiro e um abafado grito de solidão. Eu buscava, nos livros expostos do balcão da livraria, companheiros de aventuras para as noites em claro ou as manhãs tristes. Algo faltava em minha vida naquele momento e, quando meus olhos se desviaram para as prateleiras, constatei o que queria: alguém como ele. Que me observava, curioso e reticente. Acompanhado, mas interessado. “Você por aqui?”

Foi um reencontro depois de anos. Fazia tempo que não nos víamos e, por mero capricho do destino, estávamos os dois ali, entre livros e leitores, narradores silenciosos e personagens vivos. Trocamos sorrisos e palavras e nos despedimos sem qualquer convite, número de telefone alheio, plano de ir ao cinema. Segredamos apenas, com o olhar, o desejo recíproco de estarmos juntos uma vez mais, assim, casualmente.

O destino esteve ao nosso favor em muitos outros momentos, unindo-nos na fila do cinema, na entrada do museu, na locadora de vídeo e algumas outras vezes naquela mesma livraria. Víamos os mesmos filmes, ainda que nem sempre juntos, e encontrávamos sintonia nos livros que nos faziam companhia e nas músicas que nos perseguiam. O tempo havia conquistado outra dimensão, e a própria cidade se manifestava encantada com nossas peripécias. Porém, quando quisemos escapar daquela distração sobre a qual fala Clarice Lispector (“por não estarem distraídos...”), algo saiu fora dos eixos. O contato se tornou áspero, as manhãs voltaram a ser tristes, ainda mais tristes, e as noites em claro carregaram choros e desesperos. Os lugares perderam sua magia, e São Paulo virou um conjunto de ruas, prédios e esquinas desesperançadas.

Tempos depois, quase-outono de novo, o coração às voltas com a dor da despedida, fui à livraria – ampliada, menos ninho de afetos, mais intempérie coletiva – em busca de um companheiro de viagem: um guia, um romance, uma biografia, um CD. Entre uma estante e outra, um susto: vislumbrei um rosto conhecido. Era ele, sozinho, taciturno, entretido com um livro qualquer. Por um segundo, fiquei indecisa entre me aproximar ou não. Mas, reluzente na prateleira, outra Clarisse, a Abujamra, sussurrou: “Excesso”. E nunca mais eu soube dele.

Auto-retrato






Sentidos
Sextos quíntuplos diversos imersos
Sentidos
Sensações e significados
Partes e todos


Sentidos
Inteira
Grande grande grande
Por fora e por dentro
Inteira -- e imensa

Assim:



>>> um olhar sobre mim sob meu próprio enxergar

quarta-feira, 4 de março de 2009

breves & profundas

(O Rio das epifanias. Presente de aniversário. MFV, 2009)



O longe que faz estar perto, tão perto.

>>> México DF, 05/08/2007:
"E me bateu uma solidão do tamanho do mundo, mas uma solidão não carente nem de falta de atenção de terceiros, tampouco solidão por minha brasilidade no meio desses incontáveis mexicanos. Solidão existencial pela constatação de minha unicidade e individualidade, eu em minha particularidade de ser eu mesma. Daí que senti meio à parte porque ainda dói ou porque sempre dói constatar o que queremos supor que sabemos e sentimos -- o fato de sermos únicos -- quando, na verdade, trata-se de um achismo superficial. (...) Um sentimento de dor suave, de espera, de quase-concretização, de busca de horizonte, de inquietude serena. Eu única. E o Outro."

>>> Sfax, Tunísia, 28/10/2006:
"Daí que me sinto numa solidão do tamanho do mundo ao constatar que a gente toda aparentemente tem planos traçados, tem os anos seguinte razoavelmente planejados e eu não. Já tive, acho, mas sempre de uma maneira confusa. (...) a vida é viva, movimenta-se, parece o mar -- vai e vem, vai para muito longe, mistura-se com outras águas, alterna momentos de placidez com outros de turbilhão. E eu aqui, então, nesse mundo de gentes e seus planos traçados, eu superporosa e aberta, medrosa talvez, ansiosa com certeza... eu aqui com vontade simplesmente de viver."


>>> Ollantaytambo, Peru, 13/12/ 2008:
"Existe também um vôo mítico em curso dentro de mim, condor prestes a alçar vôo para carregar a alma daqui para outro mundo, reflexões maduras pedindo para serem confiadas e partilhadas, e prosseguimento. A vida agora é puro fluxo."


>>> San Salvador, El Salvador, 27/11/ 2008:
"Tempo de botar o ouvido no chão e escutar a terra recém-sembrada. Ouvir o espreguiçar das sementes, o alongamento das sementes. (...) Desejo simplicidade e miudeza, seja lá o que isso signifique na prática. Sempre valorizei a preparação da terra, a semeadura, a colheita etc. Agora é a primeira vez em que presto atenção nesse momento mágico antes do broto, quando começa a agitação e o burburinho sob o solo. Um mundaréu de promessas! Muitas vingarão, outras se perderão, definhando com gentileza, e algumas se adaptarão a outras condições a fim de contribuir para a força comunitária."


>>> Madri, Espanha, 13/12/2007:
"Tem algo começando a acontecer. Agora me refiro à minha relação com o mundo."


>>> Selçuk, Turquia, 06/ 12/ 2007:
"Desapego. Eu me reencontrei, me encontrei, me achei, me alcancei e não é para esconder essa peça perdida num cofrinho. Eu me achei para me partilhar.
Salto no Amor. Flutuo no Amor."


>>> Veracruz, México, 15/08/2007:
"Hoje, antes de sair de casa, pensei no futuro e não soube. Esta é a frase: pensei e não soube. Ainda não sei."

segunda-feira, 2 de março de 2009

atemporalidade

-- ...
-- (um suspiro)

-- Sonhando?
-- Acordando.

-- (sorriso)
-- Voraz?

-- Não, apenas satisfeita.
-- Eu também.

-- Sem amarras, certo?
-- Sem o tempo condicional. Se.

-- Hmmm-hmmm.
-- Sem o subjuntivo.

-- Tivesse sido.
-- Se eu for...

-- Presente, apenas.
-- Você, aqui, agora, é um presente. Um presente presente.

-- (sorriso)
-- (suspiro)

-- Com.
-- Aqui.

Cenário?
Arpoador, a lagoa, Santa Teresa, Ipanema de fim de tarde.
Praia do Boldró,Cacimba do Padre, Sancho, Leão.
Mucugê no pôr-do-sol, Tiradentes ao amanhecer.
Da janela do meu coração.

-- Sempre.
-- Agora.

Aqui.


(diálogo com http://didoneante.blogspot.com/2009/02/infinito-agora.html)