sábado, 23 de maio de 2009

um turbilhão
nariz entupido
convites para um show, um jantar, um bem-estar
mas eu queria só deitar

e na grama das minhas tranquilidades
adormecer na proximidade
da trilha recém-descoberta

novidade imberbe, ah,
a terra vermelha desse chão.

gosto desse:

http://diariodeloricapitu.blogspot.com/2008/03/encontro-e-desencontro-ou-bela-e-fera.html

terça-feira, 19 de maio de 2009

pequenina historieta de amor miúdo

(MFV, 2009)

Airam, quando se deu conta, percebeu-se com um sentimento de que estava do avesso e já fazia um bom tempo. Não só do avesso, como também numa fauna à qual pertencia em parte. Airam carregava nos grandes olhos e no coração a estranheza daqueles que constatam pensamentos largos e solenes muito cedo. O que fazer com aquilo tudo, perguntou-se, logo no início. Depois, aos pouquinhos, aprendeu a evaporar os excessos e a condensar os pormenores sem que nada fosse a mais do que realmente era. Viver era complicado, porém lhe fascinava. Não havia como desvirar Airam e fazê-la como todas as outras mulheres, pois seu avesso já lhe combinava e era habitual, e naturalmente um lugar no mundo havia surgido um tanto aos trancos, outras vezes aos prantos, de tanto que Airam se movia. Aliás, a inquietude dela não encontrava mais limites e o engraçado é que a realidade, em todas as suas contradições, parecia mimá-la – ou, talvez, reforçar seus disparates tão saudáveis. E assim, um tanto torta e um tanto endireitada, avessa a mecanismos enferrujados e padrões vendidos em sacos etiquetados e cristalizados, porém desde sempre do avesso, Airam suspirou tão fundo e decidiu prestar a atenção no universo ainda mais minúsculo de bem-quereres a fim de, quem sabe, fazer coincidir seus grandes olhos e seu coração com os de um possível companheiro passível de aceitá-la em toda a sua incongruência e esplendor de humana. Pois assim, quem sabe, novas outroras plenas de auroras seriam geradas e semeadas.

sábado, 16 de maio de 2009

[preâmbulo]

Aspas
Escuto atentamente o que
Clama meu impulso além alma
Transcendo

E vou direto ao travessão

Atravesso
Sem chios, sem chavão
Avessos

Conexos? Abra aspas
E eu recolho os pedacinhos da canção
Além alma que lhe acendo
Nesse aceno

Obsceno.

passos, paz, sopas

Parece sempre inevitável empreender mais uma etapa dessa travessia que não tem fim, que é eterna. Travessias se completam, mas não terminam e, quando compreendi isso, atingi a outra margem do rio. Uma epifania.

As reverberações se acumulam como camadas de um doce de distintos sabores delicadamente combinados para uma experiência sensorial inigualável. As vivências ganham vida a cada sono meu, quando se nutrem de lembranças e inconsciências registradas, e aí saem para o mundo sob a forma de, sob várias formas. Eu vou sendo cada vez mais, quanto mais estou, sou, e se sou bastante estou ainda mais larga e grande, sempre um pouco mais.


A menina queria ser escritora, a adolescente queria desbravar o mundo e a junção das duas resulta numa mulher de oceanos e sertões, de desertos e florestas, de riachos e pássaros, de casas e prédios, pés e asas, ventre, ventre, ventre, sangue, sangue, sangue e sonhos de luz. Muitíssima luz.

Não acho que precise entender tudo milimetricamente em termos palatáveis e vendidos em saquinhos lacrados. Me fiz amiga do mistério e do imprevisível e, enquanto não sei ainda quais serão meus tons na antemanhã, aventuro-me simplesmente em mais um bocadinho de travessia que se apresenta, que invento ou que a vida mesma arrebenta em minha frente, como pipoca. E eu desfruto, claro. Com gosto.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

A minha "Budapeste", releitura (1)

(caderno de viagem n.° 2, 2008)


Não sei bem como esse fascínio apareceu, começou ou se instalou aqui dentro. Certamente não foi nos primeiros dias, eu ainda às voltas com Partizan X Fenerbahçe e preconceitos alheios grudados em meus pensamentos. Passado o susto com tudo -- estar na Sérvia era um misto de curiosidade e auto-surpresa --, veio o enamoramento: eu queria porque queria entrar no mundo do alfabeto cirílico, compreendê-lo, decifrá-lo, devorá-lo, regurgitá-lo, desenhá-lo. E pirar com seus sons e formatos. Eu queria falar sérvio e, depois, escorregar para uma tentativa em russo, croata, bósnio. Autobuska stanica. Ja sam radio. Ko? Gde? Kada? Registrava como ouvia: velma stê liubasni. Dali mojetê da mi kajetê malo ossivom jivôtu? Delirava. "Kakoste!", dizia. "Previ put sam u Srbije. Ja sam novinarka." Oi, minha primeira vez na Sérvia, sou jornalista. Fiquei grande amiga de uma polonesa que vivia na República Checa. Voluntariamos nas montanhas próximas à fronteira com a Bulgária. Misturando seus dois idiomas, a amiga se fazia entender pelos sérvios. E resolvemos montar, as duas quixotescas, uma peça de teatro para a comunidade local. Em sérvio. "Hvala!", me agradecia a feliz platéia. Ah... Brat, sestra, kasnije... minhas adoráveis palavrinhas foram ficando para trás. Passou mês, virou ano, cabeça cheia, puxa, o português!, até ontem. Assistia a "Alexandra", filme russo do russo Sukorov, e algo se passou: COMPREENDI algumas palavras! Houve instantes em que me distraí da película, e fui a meu mundo repetindo a palavra reconhecida de significado reconhecido também, como se fosse um segredo, um mantra, um termo mágico. Experimentei novo delírio, uma rouquidão interna-interior de tanto gritar de prazer idiomático. Os créditos finais, em cirílico, me levaram a uma dimensão orgástica. Passeei com imensa satisfação pelos símbolos do meu fascínio. E decidi algo extravagante: que eu ainda aprendo esse alfabeto do caramba. Por meio do russo ou do idioma sérvio. Mas eu aprendo!

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Eu, menina de lá, de cá

('A Menina de Lá' roseana, do Morro da Garça)


Menina pequena, ela tinha seus companheiros imaginários. E criava histórias sem-fim, onde as fronteiras não existiam e todos os mundos do mundo faziam parte de uma mesma trajetória, a dela. Pensava em passarinhos verdes e borboletas grandes e azuis e, embora não desejasse arco-íris, sabia fazer chover às vezes. Subia em jabuticabeiras, pés de pitanga e criava experimentos com formigas no quintal da avó. Criança criação criatura... No playground paulistano, inventava brincadeiras que recebiam logo adesões. Caça ao tesouro, show de calouros, nave espacial e, no comando de uma bicicleta, imaginava travessias e longas jornadas: carregava leites de caixinha e frutas para sobreviver fantasiosos longos períodos, caminhando num esmo de rumo certo.

Menina grande, ela lia e escrevia, escrevia e lia, observava a chuva da janela com aperto no coração e sonhava beijos em rapazes quase sempre impossíveis. Sonhava asas também, caminhava sozinha por suas florestas escuras de castelos embolorados. Aprendeu as rotas quase todas e desse convívio consigo mesma surgiu uma amizade duradoura e dourada. O inóspito do externo não atemorizava tanto, só a sofria muito, mas suas invenções continuavam a inspirá-la: suspirava nos infinitos de seus cheios e acampava em seus vazios, quando a lua chegava cheia e o sol se despedia gentil.

Mulher, ela redescobriu as veredas e os buritis que intuía, porém não apalpava. A travessia virou verdade e ela mudou seu compasso na hora de atravessar o tempo. Já sem agitos ou delitos contra si mesma, já bem mais favorável às temperaturas de si e do vento, do mar e do momento, das miudezas todas. Grande, grande, enorme, se tornou mais pouso para passarinhos verdes e passou a enxergar mais borboletas, de todas as cores, especialmente as azuis.

Enamorou-se dos primeiros cílios longos em Belém, compreendeu o desapego no Nada Yoga Ashram, chorou o chão de El Mosote, fez um trajeto noturno e mítico na Sierra Nevada. E, à beira do Córrego do Onça, reconheceu sua versão para “A Terceira Margem do Rio”. Chegou à outra margem, tendo passado pelo período de ‘dúvida pedrina’, quando andar sobre as águas exige uma coragem daquelas (como a dos castelos bolorentos e profundos), sob tormentas e escuridões, e pisou chão firme no desconhecido. Madrugada, quase manhã. E agora?

“Tant sols cal que entenguis realment el significat d'aquests versos grecs... No es fàcil... Jo encara ho intento... Quan ho entenguis, estaras més tranquila ja que sense saber on, sabrás perqué hi vas”, ele surpreendeu-me.

Sense saber on, sabrás perqué hi vas.
Está quase.

(A menina já do lado de cá)

Se tenho um destino?

Quando apareceu, veio na hora certa. E sugerida pela pessoa mais improvável (um querido, ele). Que coincidência, meu Deus.
Ouço de novo para não esquecer.


domingo, 10 de maio de 2009

sonhação sonhalinda sonhaminha

(Vereda de Cordisburgo, MFV, 2009)

Às epifanias de Cordisburgo, ecoantes


Tem um silêncio antigo,
Antigo,
Guardado no meio do mato
Na vereda escondida, escondida,
Sob a boiada que atravessa o sertão.

Pare, escute,
Ai, Zé, opa! -- disse o Guimarães.
A poesia
-- uma moda de viola na barbearia
Uma prosa saborosa na nova loja do Brasinha
Um caldinho de sonhação.

Trem bão, trem bão...
Um grande sertão...
De veredas cristalinas
E um monte, monte, monte de histórias não-ditas
Como aquela do Preditão.

Tem luz que a gente não sabe origem
Que desconhece quem acende ou quem apaga
Um brilho que acompanha o rumar na floresta escura,
Ué, ué, ué?

Querer? A gente paaaaaaaaaassssssaaaaaaaaa
Pelo tempo, parado esse tempo,
Que nem boi no pasto. Laaaaargo...
Queira, não, viiiiivaaaaa...

O quem das coisas, é o que é,
E não as coisas de quem:
São falas de todos os jeitos
Contações contadas sonhadas carameladas
De todas as gentes, mesmo dos mais miúdos,
Pessoações.

E o silêncio antigo, dos mais antigos,
Do tempo de quando o sol apagou e foi noite todo o dia, todo dia,
esse silêncio
Acompanha a vida, os grilos, o ziguezague do ribeirão,
Corda, corda, mais corda,
Avance os trilhos!, eia, coração.


Era uma vez um burgo
em que se contavam histórias
e nesse burgo havia eu.

Poema às brisas, às sereias e a Ulisses

(tem som!)