domingo, 30 de dezembro de 2007

O aprendizado da despedida (da fase pós-experiência do Amor maiúsculo)

((Ou: "Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se perderam", frase de Lóri.))

As horas já não doem mais, porque,
ora, ora, ele mesmo disse:
cada um vive os dias
os dias as semanas os meses os anos os meses as semanas os dias
as horas
como bem quer.
E então não há dor nem rancor nem favor:
simplesmente virou pretérito quase recente do meu tempo presente.
E agradeço, gentil,
as preliminares, a acolhida, a breve partilha
tão suaves, suaves e efêmeras,
embora
embora eu realmente vá embora -- e talvez,
ele ainda confundido com as conjugações dos espaços,
já há distância física, já há distância mesmo,
não compreenda o que signifique "eu realmente vou embora".

Aliás, já fui --
pois se agora ele está no presente,
eu estou duas horas à frente de seu tempo,
e meu presente já não comporta seu, o dele, prenúncio de futuro.
Tornei-o pretérito já quase estabelecido do meu tempo ficando para trás.
Comprido assim, cumprido.

Quase sinto uma pena que
afasto do mesmo modo com que jogo
para trás as mechas de cabelo no rosto
que trazemos os dois,
cada qual com suas opções e porquês.
Ele na solidão de seu poço cercado de muros,
muralhas, telas e teias, grades, lanças, espinhos sem flor.
Espinhos sem flor!
(Vou até ver os novos botões de minhas violetas)

Às vezes, ele assiste ao jogo perigoso,
perigosíssimo embate tinhoso entre carência e culpa
e está sempre mudando de torcida. Alimenta-se
disso, daquilo, vício.
Troca uma dependência por outra,
Agora esta é muito mais cruel posto que interna
e invisível e disfarçada sob a capa de "meu dever".

Divide-se em dois,
O que sobrevive na linguagem escrita
E o que vive na vida falada e cotidianamente movimentada.
A-go-ta-da.
Embora, embora também esse da linguagem escrita
-- esse de leveza e determinação e poesia e emoção --
Parece que também está indo embora.
Não suporta as muralhas.
Machucou-se com os próprios espinhos.

No fundo, as muralhas são seu vício.
E por isso eu não dôo, embora quisesse ter me doado um
pouquinho mais, mas ele não quis nada de mim,
tampouco vai me perdoar -- apesar de me perder --
se souber que agora, no meu tempo presente e em seu tempo futuro,
sinto até comiseração.
Mas não peço perdão nem perdôo
Porque não nos ferimos um ao outro
-- nos ferimos nós mesmos a nós com nossas
lanças impregnadas de nossas próprias expectativas notáveis.

A mim, asas
A navegação, as ilhas desconhecidas,
às ilhas desconhecidas,
A ele, que escolheu por si,
-- couraças e espadas, por favor --
um poço escuro e grudento cercado de muros por todos os lados.
Engana-se orgulhando-se de ter uma ilha só dele,
defendida, se preciso for, com desprezo e caninos.

No fim das contas,
Sempre no solitário e vital aprendizado do não-pedir,
Construo meu momento
E já não me perco mais no meio de fumaças alheias,
Pois o Amor maiúsculo me faz companhia
Enquanto vou ganhando a lonjura da vida

Fumaças (da fase pré-experiência do Amor maiúsculo)

((Ou: "Ela não é Lóri. Nem Meryem."))

Os minutos não pareciam doer
Quando ele entrou naquele táxi rumo ao aeroporto
Para um dia, talvez nunca, quem sabe,
Esboçar um reencontro.
Havia intenções, nenhuma promessa, muitos desejos.
Foi a primeira vez. Táxi amarelo para o rapaz de cabelos amarelos.
Nuvens em caracóis sopravam a moça de cabelos encaracolados.
Era um hotel. A cidade não era dele nem dela.
Fazia frio, ela tinha luvas; ele, um cachecol.
Céu azul cintilante sob o rapaz de olhos azuis.
Beijos sabor mel dados pela moça de olhos cor de mel.
Ambos retornavam aos respectivos países.
Meses, alguns anos até, mensagens.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.

As horas não pareciam doer
Quando ela saiu bem cedo, antes de todos acordarem,
Sem lhe dizer adeus, até, quem sabe, nos veremos.
A noite havia sido de fagulhas e estrelas
Estrelas sob o mar que não era mar, seria rio
Y hablava espanhol.
Mas os dois falavam a mesma língua –
A cidade não era dele nem dela, nem o país.
No país deles, não compartilhavam a mesma cidade.
A sós, ruidosos, marotos e inconseqüentes.
Nenhuma promessa. Tesão, corrosão, explosão.
Dias, alguns meses, mensagens.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.

A manhã doía um pouquinho
Quando ele abriu a porta do carro
E achou bom que ela já estivesse com saudade,
Que tivesse vontade de esticar o tempo
Pelo menos mais um tantinho.
Ele seguiria para um banho e, depois, o trabalho.
Ela, em menos de doze horas, para outro continente
Numa viagem que duraria bem mais que doze horas.
O rapaz de olhos molhados e cabelos lisos
Falava adeus para a moça de lábios molhados e cabelos revoltos.
Nenhuma promessa, apenas bem-quereres.
Quem sabe, um dia, talvez nunca.
De vez em quando, suspiro daqui ou de lá.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.

O dia doeu quase inteiro
Porque não houve adeus. Houve silêncio.
Na praia, ele olhava para a esquerda.
Ela, para o oceano. Entre eles, a inevitável despedida.
Ele preferiu ser concha. Ela, polvo.
Não se acharam mais –
Tinha sido tão lindo, tão lindo.
Começara com um sorriso dela pra ele.
Dele pra ela. Uma folhinha seca.
Caderno de rascunhos, desenhos, outro sorriso,
O toque, a descoberta, doçura, tudo tão doce.
Indigestão, afastamento. Sem adeus.
Ela partia, ele ia para não-sei-onde.
Nenhuma promessa.
Nenhuma linha.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.

A existência desdobrou-se em dor
Quando aquela porta se fechou, ele de pijama, com sono.
Ela, com sonhos, diante do táxi.
Ele, esfinge, homem de preto, blasé,
Assediadíssimo, sem tempo, Narciso.
Ela, esfinge, inibida,
Ninfa devotada, sem tempo, colorida.
Ele quase disse o que desejava e quase usou o “nós”.
Ela decididamente não disse o que
Queria com ele. E queria tanto, meu Deus.
Perdeu-se nos nós de seus – dos dois – medos.
Nenhum deles entendeu nada.
Nenhuma promessa, contudo. Tentativas somente de um dos lados.
Do outro, o abismo.
A cidade, que outrora havia sido pequena para ambos,
Alargou-se imensamente. Tudo ficou distante.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.

A dor revestiu-se de chuva e choro –
Ambos leves, suaves e imperceptíveis –
Quando ele deu o beijo derradeiro,
Quase à meia-noite, na esquina escura
Daquela rua fria e praticamente deserta.
Ele romantizava a separação para ter direito,
Semanas depois, a um reencontro.
Ela colocava o ponto final ali mesmo.
Ele pegou o metrô, depois um ônibus,
Até hoje não se sabe se um avião, um barco, um rojão.
Ela voltou para casa, estendeu-se na cama vazia,
Respirou aliviada, suspirou carente.
Nunca falaram a mesma língua,
Tampouco compartilharam intenções.
Nenhuma promessa – mas ele sonhava com uma.
Hoje? Fumaça, apenas fumaça.

Dói ainda
Diante do mar de incertezas que separa
Continentes, nações, corações, planos,
Projetos, buscas, cidades e apartamentos.
Ele tem uma varanda e uma janela.
Ela, só janelas. Mas tem várias delas.
Ele tem meia dúzia de roupas, uns poucos livros.
Ela, um monte. Idem para os sentimentos.
Ele está no prólogo, ela no segundo capítulo.
Ele não sabe se lerá o livro, talvez não.
Ela está louca para chegar à metade, seguir até o final,
Criar o volume dois, o três.
Tudo ainda mantém o sabor do iogurte, a quentura da pele,
O som dos suspiros, o cheiro de sabonete,
A cor azul dos lençóis, dos olhos dele, da toalha dela.
Castanhos os dois, ele prateado, ela dourada.

Não pense você que se trata de história inventada,
De encontros propositalmente desfeitos
Para resultar literatura.
Ela e eles existem.
Porém, por algum motivo,
Ela nunca consegue dizer tudo. Ou dizer exatamente. Ou dizer.
As oportunidades se esfumaçam – e ela fala sobre um punhado de
Coisas interessantes, divaga, tece considerações.
Mas não diz tudo. Exatamente. O que sente.
Ela também não faz promessas. Mas se disporia a ouvir uma e, quem sabe,
Aceitá-la.
E assim, no solitário e vital aprendizado do não-pedir,
Ela fica à espera do momento
Em que a dor vai aparecer no meio de tanta fumaça
Para lhe fazer companhia
Enquanto eles vão se perdendo na lonjura da vida.

sábado, 29 de dezembro de 2007

Self-shake

Tudo dentro de mim saiu do lugar
Tudo se embaralhou
Só os intestinos ficaram onde sempre estiveram
– ao menos, me resta uma válvula de escape

O engraçado é que o mundo, em si,
Não chacoalhou
Prédios, pessoas, padrões e estatutos permanecem
Onde sempre estiveram,
Como os intestinos
Fui eu que centrifuguei e centripetei

Chicabum
Trinta anos se passaram na minha frente
– ou seja, todo o tempo da minha vida –
mas não só com minhas desventuras sentimentais
profissionais sexuais intelectuais e artísticas, ah, estas;
também com toda a história humana
vivida ouvida saboreada mastigada esmigalhada

Do atropelamento daquela senhora na Avenida Paulista
Numa morna manhã de maio
Carregando incidentalmente tantas vidas interditas e interditadas
Aos muros e discursos e bombas que caem
Sobre todas, todas, todas as nossas cabeças (abstraia, temos mais de uma)
De modo intermitente

Regurgitei a ditadura (os intestinos protestam),
Mas vi
A oligarquia velhusca subir ao poder
A intelectualidade brasilis chegar ao poder
O proletariado católico-trabalhista estar no poder
Vi muita coisa e me cansei
Vomitei (os intestinos que não agüentam mais)
Dane-se o poder

Vi filmes, muitos filmes, sala tela luminosa e escura
Como voei, viajei!
Sacrilégio transcendência ou o quê: realidade
Vi arma na mão do garoto nervoso no ônibus apontando para
Todas, todas, todas as nossas cabeças (éramos oito, mas dava na mesma)
Eu já nem tenho mais cabeça, caramba!
Tenho um coração e um útero dando ordens
Para um fígado surpreso e uma coluna assoberbada
Ah, céu nublado me faça um favor: pare de pingar
Em vão, ninguém dá mais bola

Com tudo fora de lugar
Me senti tão presente na vida presente no tempo presente
Estou taciturna, mas nutro grandes esperanças

E que venha a descarga
Agora que os intestinos funcionaram
(alívio)

Calor. Daqueles. Um dia.

Daqueles dias quentes em que os corpos não vencem naturalmente a pressão do ar. Daqueles dias, portanto. Quentes. Corpos inertes e imóveis, mas corpos. E corpos ardem no calor. Há ainda a pressão. Dias de uma leveza infinita e uma pressão intensa, imensa. Dias de corpos ardentes sob pressão. Dias quentes de intensidade. Dias quase imóveis. Dias, daqueles.
Nesse dia, um senhor de mais de 90 anos morreu. Sentiu falta de ar, pediu a pastilha de controle da pressão ao neto, foi repousar. Lá pelas cinco da tarde, chamaram-no para um café com biscoito de povilho. Ele estava inerte, mas ainda quente. Quase nenhuma ruga na colcha sobre a cama, que ele não tirou antes de deitar. No mesmo dia, uma jovem de vinte e tantos e um homem de quase quarenta se amaram pela primeira vez. "Se amaram" é eufemismo. Olhos castanhos-esverdeados e cabelos grisalhos misturando-se a suor e sonho. Depois do sexo, inertes os dois. O ardor foi vencido pelo calor. Fiquemos assim, ele pediu, suado e pesado, estendido sobre o lençol amarrotado, mãos afagando os cabelos castanhos. Também naquele dia uma mãe caiu de febre na cama. Literalmente. Tonta e ardente, tentava tirar a caixinha de remédios do topo do armário (escondida para o filho caçula não mexer e a filha mais velha não se automedicar). Tropeçou no sapato de salto esquecido por ali. Caiu em diagonal, que sorte, sobre o colchão -- e do lado do marido. Lá ficou, inerte, febril e delirante, ardendo de tontura e de um inusitado desejo que surgiu ao sentir o cheiro do marido na roupa de cama. Igualmente naquele dia, uma senhora gorda decidiu tirar uma soneca à tarde e, fraca diante do calor e da pressão do ar, sucumbiu a sonos profundos. Ela teria um compromisso às 15h, mas não colocou o alarme. A campainha tocou, era o porteiro com um Sedex na mão, porém ela nem ouviu. A máquina de lavar terminou seu trabalho, a cortina da sala derrubou o vaso de violeta sobre a mesinha lateral e folhas de papel voaram pelo quarto. No entanto, inerte e entregue à ardência de seu sono, ela se manteve isolada do mundo dos vivos. Foi o dia também em que o time de futebol amador em que o garoto jogava perdeu uma partida importante, e ele entrou em casa bufando, lançou longe os sapatos, nem trocou de roupa ou tomou banho, suado, trancou a porta do quarto, não deu ouvidos à mãe, ligou o som no último volume e se estatelou na cama, ainda quente de todos os movimentos, ainda quente de raiva, ardendo. Manteve-se imóvel, quase sem respirar, repassando mais de 90 minutos de dribles, passes e chutes por incontáveis instantes, quem sabe até horas. Naquele dia então, a moça grávida sentou-se no sofá porque não suportava ficar em pé nem mais um minuto e começou a sentir as contrações fortíssimas. Deitada, não tinha forças nem vontade para buscar o celular com as mãos e chamar a mãe, o marido, a vizinha. Ardia de dor, pesada não se mexia, o ar denso entrava em seus pulmões a golfadas. Talvez tenha dormido, talvez tenha desmaiado, não se lembra bem, mas abriu os olhos e um bebê estava pendurado nas mãos de um médico suado, ofegante. As enfermeiras também suadas e ofegantes. Ao lado, numa cadeira, parecendo um cirurgião, com uniforme verde-claro, estava o marido. Suado, dormindo, imóvel embora roncasse, completamente entregue a um recém-delírio paterno.
Num daqueles dias em que o ar dá as cartas no jogo do ir-e-vir e torna-se fardo pesado para a excessiva leveza das gentes, das gentes que são ou estão leves, os corpos ardem, ardem de todos os jeitos e com todas as sensações, presos a um tempo e a um espaço que jamais lhes pertencerá. Daqueles era dia. Dia de muito calor. Muito.

mea-culpa

eu também não espero muito antes de pegar meu violino e (tentar) ir embora.

o mar apaga todas as pegadas da praia Chesil ou não?

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Lágrimas para a moça de violino

1.
Terminei a leitura de “Na Praia”, de Ian McEwan, e de “Jerusalém”, de Gonçalo M. Tavares. Gostei de ambos. McEwan escreve um livro classudo, apoiado em digressões e no delineamento dos personagens, sem no entanto dissecar suas emoções explicitamente (mas acho que, talvez por isso, ele consiga criar uma linha tênue entre o micro e o macro, o particular e o universal). Seu estilo segue refinado e polido. E eu chorei no terço final. Fiquei com um baita nó na garganta e daí para as lágrimas foi bem fácil. Florence e Edward – seja outra a década, seja outro o século, outra a relação com o sexo e outras as questões íntimas que criam grumos nas relações amorosas, eles estão vivos e respiram. Posso ser Florence (com as ressalvas acima).
Gonçalo, por sua vez, enche sua história de frescor estilístico e temático e elabora uma bela, pungente e espinhosa metáfora de nossos tempos. Não sei a intenção do escritor ao chamar o livro de Jerusalém, mas a associação ficou deveras clara para mim, eu que estive lá e passei do encantamento à decepção, engolindo abruptamente cada uma das contradições dessa cidade única. Hipócrita e santa, desejada e repugnante, bela e dolorida. Jerusalém-cidade como emblema do mundo, como metáfora do mundo. Jerusalém-livro como metáfora de Jerusalém-cidade, como síntese do mundo.


2.
Essa vem de Ian McEwan, em “Na Praia” (On Chesil Beach), parece que pensando em mim. Quem fala é Edward. Podia ser o moço que hoje vive em Túnis. Ou aquele de Istambul. Ou o de Belém. Ou, então, o da Cidade do México. Ou o de Viña del Mar. Ou o de São Paulo, o que mora(va) no Brás. Não importa, qualquer um.

“Quando pensava nela, parecia-lhe surpreendente que tivesse deixado aquela garota com seu violino ir embora. (...) Tudo o que ela precisava era da certeza do amor dele, e de sua garantia de que não havia pressa, pois tinham a vida pela frente. Amor e paciência –se pelo menos ele tivesse conhecido ambos ao mesmo tempo – certamente os teriam ajudado a vencer as dificuldades.”

Eu me emociono muito com esse trecho. Demais.
Não me lembro de ter ouvido meu nome quando me virei para ir embora, afastando-me numa tentativa de me aproximar.

“Na praia de Chesil, ele poderia ter gritado o nome de Florence, poderia ter ido atrás dela. Ele não sabia, ou não teria querido saber, que, enquanto ela fugia, certa na sua dor de que o estava perdendo, nunca o amara tanto, o mais desesperadamente, e que o som da voz dele teria sido seu resgate, e que ela teria voltado atrás.”

Talvez seja o sinal.
Quando eu ouvir meu nome, na praia de Chesil.

Uma lágrima, duas ou muitíssimas...

... para Benazir Bhutto, mulher, muçulmana, dona de uma história trágica de idealismo. Se seu pai ou seu marido eram ou não inocentes, não sei, mas não vem ao caso. Tampouco falo de seu partido político. Aqui não vou dar margem a intrigas da oposição. Benazir lutava porque acreditava e acreditava na causa pela qual lutava.

Reafirmo aqui minha indignação contra os extremismos e radicalismos de quaisquer ordens – religiosas, políticas, sociais, ecológicas, econômicas.
Reafirmo aqui minha indignação contra atentados terroristas como solução, penas de morte como solução, torturas como solução. Isso é balela.
Reafirmo aqui minha fé fervorosa no amor e no perdão, na honestidade e na partilha, na paz e na firmeza de espírito, na coragem e na generosidade.

Mais lágrimas por todos os outros paquistaneses que morreram, vítimas inocentes.
Lágrimas por todos os que morrem diariamente no mundo por conta de ódios alheios, de egoísmos de terceiros e de maldades praticadas a torto e a direito. Injustificáveis.

Como vencer os cains? Como evitar que os cains ganhem o mundo, as sociedades, os governos? Como?

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

musas? somos todas!

Depois de um giro pela cidade, tendo encontrado amiga Barbarella-sempre-bela e palhaça total, partilho pensamento bonito de amiga bonita, mais palhaça do que ela mesma se imagina, e que também se despede de seu Ulisses de agora (embora, no meu caso, tenha havido soprinho de vida no Mar Morto!):

"E um dia o seu tempo acabou: a coisa boa separa-se de mim, não como algo que me repugna - mas pacificamente e de mim saciada, tal como eu dela, e como se devêssemos gratidão mútua, estendendo-nos a mão em despedida! E algo de novo já espera na porta, e igualmente a minha crença, - a indestrutível tola e sábia - de que esse novo será o certo, o certo e derradeiro. Assim é com alimentos, pessoas, idéias, cidades, poemas, peças musicais, doutrinas, programa do dia, modo de vida."
Nietzsche

excessivamente Lóri

Sina, boa sina, a cada novo Ulisses... um novo universo a ser desbravado, tocado, apalpado, sentido, desfrutado, mar que pede meus pés, mundo que pede meus pés, pele -- um horizonte de pele e poros e pêlos -- que pede minhas mãos.

Lóri-em-gênese-constante. A cada instante. Uma atrás da outra, às vezes duas ou três coexistindo no mesmo espaço-tempo dos mortais, como agora, mas em tempos e espaços diferentes dentro do meu coração. Chamava dispersão, agora sei que faz parte do mundo onírico de Meryem multiplicar Lóri. O Planeta Terra precisa da Lóri que sou.

E agora que o filme do Crialese finalmente está em cartaz, vale a pena lembrar...
Nuovomondo, de Crialese, ou A Gênese de Lóri
, o primeiro post. O que a gente não esquece.

O muso inspirador foi um, com nome, sobrenome, rostinho, leituras, barbicha, sonhos e suor. Mas esse espaço tem muitos donos.
Muitos os musos, com a morenice lato sensu em sentido amplo na aparência e alma disponível.
Ulisses, todos. Com um mundo onírico de Meryem inteiro a navegar.
Pois navegar é preciso. E viver em mim também é preciso.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Chá requentado, Mar Morto

1.
Putz, como dói. Saudade dói. Desapego dói. Pausa dói.
Estou me sentindo sozinha, mas não quero encontrar ninguém.
Daí escrevo, escrevo, escrevo – e o pulso esquerdo lateja tanto que parece querer independência da minha existência coesa a fim de ser livre para acariciar cabeças masculinas. Ou digitar desejos escusos. Ou desenhar no espelho embaçado depois do choro.
Sou destra, mas meu olho direito se esforça para enxergar além da miopia da saudade, já que todos os óculos de grau estão com a haste direita quebrada e sem lente desse lado. De novo: esquisito isso.
Ligo o rádio para não ter o controle sobre as músicas. Todas me transportam para acolá. Estou presa à vida, mas não a esse espaço. Busco meus companheiros.
Vôo.


2.
Nada nele me chamou a atenção no primeiro momento, embora hoje eu o ache lindo, uma obra de arte da natureza humana. Tão coerente na aparência em relação à paisagem de onde vive. As casas de pedra cor creme, as oliveiras e suas folhas cor verde-queimado, uma paisagem árida por definição mas deliciosamente viciante – morros e pedras e vegetação rasteira em tons que variam entre o marrom e o cinza, o amarelo e o verde, o azul do céu e o branco. Ele e sua pele morena. Não muito alto, mas não mais baixo que eu. Distribuição perfeita de quilos. Um moço atraente, inteligente e maduro.

Começamos a conversar assim, distraidamente, quando perguntei o significado de uma palavra. Estávamos no centro da cidade, íamos a pé ao campo dos refugiados, vimos o muro da separação, o horrível muro da separação, e começamos a falar de segregação. Ele me contou sobre o preconceito que sofreu no Aeroporto Charles de Gaulle, quando um vôo da Air France foi cancelado e os passageiros foram encaixados num outro, marcado para o dia seguinte. Eu nem sei do que falei, mas falava algo, era um diálogo. E aí, durante o resto da tarde, estivemos sempre mais ou menos próximos, trocando idéias e impressões. À noite, depois do jantar, sentamos juntos novamente, porém com outros amigos, para continuar com minhas “aulas de idioma”. Por algum motivo, brindamos com chá e eu treinei a saudação na língua dele. Disse: precisamos olhar nos olhos ao fazer tim-tim. Lindos olhos os dele, negros, grandes, míopes como os meus. Da última vez não olhei nos olhos quando brindei, eu brinquei, e tive um azar... foi por isso, agora sei, foi porque não olhei nos olhos... Risos. Poderia passar dias olhando nos olhos dele.

A conexão entre nós era evidente e começou a ser notada. Ele tratava a todos com elegância e amizade, porém me dedicava olhares e sorrisos mais largos. Comecei a investir nessa conexão também – mas, talvez sem compreender a paisagem e, conseqüentemente, o diferente modus operandi de sua cultura marcada por diferenças importantes, passei do tom em algum momento. Usei magenta demais, me excedi nos vermelhos quando podia ter sido mais suave ou esverdeada. Mas sou rosada, o que posso fazer?

Mar Morto, tarde de domingo ensolarado. Eu flutuava, contente, e o via flutuar também, lá na frente, com outros colegas. Nossos olhares se buscavam – e, mesmo distantes, sempre nos mantínhamos um na mira do outro. Até que, obviamente, nos cruzamos. Quer ajuda para passar a lama? Sim, e você? Também. Então, um ajuda o outro. Feito. Toque, toque, quase massagem, meu indicador travesso marcando todo o caminho da coluna, um arrepio do lado de lá seguido de sorriso, mãos sobre os ombros, mãos delicadamente acariciando a lama nos braços, mãos nas mãos, e as costas, e o rosto, toda a minha ternura no contorno daquele rosto lindo de olhos fechados. Também houve dedo travesso marcando o contorno da minha coluna, arrepio igualmente seguido de sorriso, o tônus dos dedos, um carinho, um cuidado. Ambos lambuzados. Uma mulher pergunta se somos marido e mulher. Trocamos olhares: não ainda! E, depois, a brincadeira de marido e mulher rendendo ainda piadinhas entre nós daqui e dali.

Mas ele tinha uma namorada.
Tem outra religião.
Ele tem uma causa pela qual lutar – e o respeito às tradições lhe dá força para seguir em busca dessa causa.
Uma causa que apóio, mas não é a minha. Porque minha nacionalidade me protege de muitos males, mas ele é totalmente exposto. Porque, às vezes, isso faz diferença. Ele não é europeu, latino-americano, anglo-saxão. Porque nasceu por lá e tem orgulho disso. Mas não pertence – ainda – a uma nação. Porque precisa provar o tempo todo que é do bem, que não porta armas, que não vai explodir nenhum ônibus. Porque a causa precisa dele, aquele povo sofrido precisa dele.

Sou uma brasileira e carrego outras tradições, umas porque quero, outras porque fazem parte de minha essência, nossa essência. Faria concessões, mas há impossibilidades que envolvem governos, fronteiras, livros de história, acordos. Doeu quando ele compreendeu isso antes de mim. Doeu quando compreendi depois dele. Doeu porque estava fascinada.
Ele viu a mulher que sou – e me dei conta disso tempos mais tarde, já longe. Aparentemente gostou dela, porém entendeu que essa mulher estrangeira jamais seria uma opção à história dele e de seu povo, a história que ele carrega na pele e nos lindos olhos negros, que carrega no sotaque de “rrr” em seu inglês impecável e voz quase rouca, a história que flutua com ele no Mar Morto. Não havia duas opções para ele. Eu simplesmente não fazia sentido no contexto em que ele se encontra; se o mundo fosse outro, a política internacional, as lideranças, os interesses econômicos fossem outros, quem sabe. Eu não podia com ele, pelas mesmas razões e também por conta de meu coração ainda disperso.

Enxerguei o homem que ele é e me encantei. De tanto respeito, pus minha fêmea magenta para hibernar. Eu me deixei revelar no todo, e não apenas na minha parte sedutora-sensorial, deixei-me revelar em todas as minhas contradições femininas e sul-americanas, em minha alma nômade e carente, afetuosa e indignada.

Foi uma linda história de amor, foi sim. Embora nada usual, com essa capa de incompletude. Um amor de outro jeito, um outro jeito de amar. História viva em pleno Mar Morto, onde deixamos todas as escamas de nossos corações sob a lama a fim de que fôssemos puros e sinceros. E flutuássemos, sem o peso das cobranças e dos preconceitos.

RESSACA (ou o impacto da pausa sobre o movimento)

Eu tive muitas vidas em muitos mundos diferentes por um tempo que pareceu longuíssimo, mas jamais cansativo ou pesado, pelo contrário. Tão prazeroso experimentar novos caminhos, desconhecidos e selvagens, e também trilhar rumos aparentemente já delineados. Vida invisível misturou-se à vida de fato e às outras vidas que eu carregava em minha gestação da alma naquele momento. Foi um tempo mais fluido e mais comprido que o tempo do cotidiano, habitado por pessoas lindas e diferentes, rasas ou profundas, e daí?, puros oceanos ou rios efêmeros, em idiomas inimagináveis.

Pois a chegada, depois de todas essas aventuras, nem foi tão abrupta.
Cheguei suave e sorridente, tomei banho, driblei o fuso e reencontrei amigos, cantinhos, comidas, colos, carinhos antigos.

Mas hoje, nesse dia de verão irreconhecível, nesse dia de recolhimento necessário para balancetes de todas e quaisquer ordens, nesse dia em que um CD do Legião Urbana gritou para ser ouvido, misturando “Quase sem Querer”, “Tempo Perdido” e “Índios”, qualquer coisa de muito tempo atrás veio à tona, nesse dia me bateu uma ressaca. Me bateu saudade doída, saudade doida, saudade de tudo e de todos e dos caminhos e do espírito daquelas vidas todas naqueles mundos todos em todo aquele tempo.

Me dói o pulso esquerdo, parece que tem princípio de tendinite, alguém me liga muito no celular, eu não atendo, eu espalho as roupas sujas e quase limpas da mochila pelo chão, eu misturo roupas e pó, como se ousasse ousar ainda mais e usar disso para protestar. Já piquei cebola, piquei muita cebola, para disfarçar o choro de saudade e misturar as lágrimas verdadeiras com aquelas criadas para o momento presente.

Eu quero esse dia nublado de balancetes diversos e de todas as ordens, eu o quero com meus pulmões e com a música da minha alma, eu quero com meus pés que se mesclam às roupas e ao pó do chão, quero tudo e todos porque era assim que eu vivia no tempo fluido de todas as vidas possíveis nos mundos de tanto tudo, onde eu estava quase antes. Eu preciso desse dia, eu preciso da experiência do retorno, de compactar todas as vidas e todos os mundos e todas as gentes numa de mim compacta.

O poço é fundo, e a fonte não seca. Não vai secar. Jorra tudo de todas as formas – e eu sigo espalhando as roupas pelo chão, espalha, espalha, espalha. Contudo, não me espantalho.

É que hoje, me perdoem os leitores e os carteiros, os leiteiros e os camareiros, os amigos e os falidos, me bateu a ressaca da volta. Mesmo que essa volta seja uma passagem e mesmo que eu volte para algo que não existia antes – o que é lindo, muito bom, assustadoramente encantador e fascinante. Novo, estupendo de novo.

Parada para reabastecimento, quando o carro ainda está meio em movimento e tem ainda algum combustível, ou pensa que tem.
Vejo algumas fotos, relembro algumas gentes e algumas trilhas, sinto a vida numa torrente mais forte que qualquer força que movimente as máquinas deslizantes sobre o asfalto chuvoso dessa cidade-que-só, onde não sofro, mas dôo. Dôo de dor e de doação, porque não sou só para mim, sou também para todos que são.

Não sei se quero voltar aos mundos em que estava, talvez eu queira continuar desdobrando-me em pessoas diversas em tantas vidas possíveis num tempo que não está sob o jugo de nada. E experimentando a transcendência na mais alta potência – em história e verdade – em realidades, mais que uma.

Talvez hoje eu esteja no aprendizado do parar, sentar, respirar, observar e descansar. Antes de seguir. E parar, sentar, respirar, observar e descansar também traz avanços e descobertas. Centrar-me. Sóbria e equilibrista. Com os três óculos de grau quebrados na armação direita e na lente do mesmo lado. Com os três óculos de sol quebrados também do mesmo jeito. Não pode ser coincidência apenas; deve ser aprendizado. Algo relacionado ao olhar, ao modo de olhar, à luz que quero ou posso enxergar.

Paro.
Sento.
Respiro.
Observo.
Respeito. Respeito a mim mesma nesse momento de pausa, talvez não desejada, mas necessária.

Olho, com ternura, para o dia que também me olha com ternura, do lado de lá da janela. Um pouco cansada depois dessa explosão de saudade. Suspiro fundo e calmamente, adormeço. Toda chegada também é uma partida, todo encontro é também despedida.

Já me sinto mais tranqüila.
E me dou as boas-vindas, aonde quer que eu vá. Ou se fico.

The Magnificent

Prólogo
É mais que um beijo. Identifico uma entrega. Um enlace dourado, uma costura de retalhos dele e dela, uma fusão de partes, dois inteiros formando um todo luminoso e colorido, uma experiência orgástica e cósmica.
Não sei quando me deparei com a tela de Gustav Klimt pela primeira vez, num livro ou num postal. Mas me lembro quando a vi no museu em Viena, ao vivo. O dia estava nublado e um pouco friorento, como hoje. (Olho meu verão pela janela e não o reconheço. Chove chuva fina nesse dia de céu cinza esbranquiçado sem vontade de sair lá fora, vento úmido e frio contrastando com o calor do apartamento e do ventre quente e sanguinolento, que lateja feminilidade biológica. Não reconheço meu verão! No toca-CD, Concierto de Aranjuez segue firme e embriagante, nas mãos de Alexandre Lagoya e da Monte-Carlo National Opera Orchestra, em três atos – ao contrário da versão de Miles Davis, que vai numa tacada só). Klimt, então, volto a Klimt, e ao dia em que vi O Beijo ao vivo. Frente a frente, encontro quase inesperado, embora anunciado, não tinha expectativas. Apenas entrei na sala e vi. A tela reluzia, linda e envolvente, trazendo-me uma ponta de tristeza por admirá-la só, sem ninguém ao meu lado, sem nenhum homem que me enlaçasse e me beijasse. Entrei na tela e fui beijada. O inesperado da entrega. Eu me entreguei.
Isso aconteceu em 2003, creio. Verão europeu de 2003, mas como o verão brasileiro de 2007 de céu cinza esbranquiçado, chuva fina e algum frio. Sozinha, embora tão emocionalmente acompanhada. Onde estão todos?

Nesse momento, me recordo de apenas um. E ele basta.


J.
Reprodução de O Beijo, tamanho real, na parede rubra, vermelho cor de vinho tinto olhado através da luz. Vermelho do sangue que me percorre e que jorra hoje de mim. Era a segunda vez, pois a primeira foi em outro lugar, em outro quarto, não dele, não nosso, já que era o caminho natural dos sentimentos e dos desejos e estávamos longe das paredes rubras. Se já não tínhamos a novidade da primeira vez, tínhamos a intimidade da segunda. O Beijo, os beijos, o enlace, as entregas, Caio Fernando Abreu sempre definindo tão bem as coisas: esses pedacinhos desconexos de nós mesmos que fazem sentido quando o Outro nos enxerga.

Ele compreendendo sua energia masculina, eu em reconhecimento de minha energia feminina, fronteiras de idade e de nacionalidade totalmente diluídas num mar de puras descobertas. Havia doçura e selvageria, havia respeito e firmeza, havia um deslumbramento de ambos e por motivos diferentes. De relance, quando os olhos se desviavam daqueles olhos escuros de sombrancelhas grossas, eu via o Beijo. Eu dava um beijo, eu recebia um beijo. Reluzíamos os dois.

Faz pouco tempo e já tenho saudade.
Uma história que começou Jules e Jim, por uma necessidade mútua e tripla de partilha e troca e entrega e fusão e doação, mas que virou eu e J. apenas.
Ele mais alto e mais delgado, ele delicado, ele incomodado com as vozes de seus julgamentos internos, ele em franca aprendizagem do Amor. Aquele Amor, das maiúsculas.

Hoje vi uma fotinho dele, sorriso largo no rosto, asas de anjo.
Foi o Amor que o mandou a mim?
Dói pensar que ele possa ter sido mais um instrumento do Amor para me preparar para a partilha definitiva com um homem, para o amor aqui e agora. Mas é esse o exercício do desprendimento, do desapego, que o Amor ensina. Deixar livre para reencontrar – e no reencontro a resposta se é ou não.
Sinto a dor, porém não sofro. Amo com os suspiros mais delicados que encontro.
Era ele um anjo do Amor?
Ou beijei o Cupido sob os olhares desnudos dos amantes de O Beijo?

A chuva engrossa lá fora, pois não choro externamente. Choro aqui dentro. Não choro por posse frustrada, choro pela felicidade do encontro, dos retalhos de mim mesma fazendo sentido quando costurados com os retalhos dele, tinta dourada, brilhante. Reconheço o brilho no meu olhar, o beijo da memória e da parede e do quadro e do postal que procuro no meio de tantos, tantos recuerdos de viagens, e o vermelho do sangue que confirma a mulher biológica que sou. Pois a mulher-humana, a mulher-Maria-e-Lillith que está em minhas entranhas, foi ele quem me fez lembrar.

Com ternura.
Com mãos ágeis e corpo disponível.
Acordes mais profundos e dilacerantes da música.
A chuva não vai parar tão cedo!

Temos muito em comum

Há coisas que não se explicam. Não se explicam por elas mesmas, o universo não as explica. Quiçá, se temos muita sorte, o futuro – como uma reconstrução de quebra-cabeças – as explique.

Nos conhecemos numa tarde quente de um domingo em janeiro. Havíamos nos falado por telefone um dia antes – ele me telefonou à noite, depois das dez e meia, dizendo que fazia parte da mesma organização internacional que eu, se poderia me encontrar, etc. Contou também que, segundo meu perfil na apresentação dos membros da ONG, tínhamos muito em comum. Ele também gostava de cinema, poesia, literatura, teatro. Voz bonita. Meu sotaque preferido no mundo. Ele me telefonava de outro país. Vizinho.
Ele vinha com a namorada, avisou.

Ok, sem problemas.
Ele telefonou tarde, mas eu estava acordada suspirando e olhando a lua e as estrelas da minha janela, deitada no futon.
Naquele momento, meu coração batia por alguém. Acelerado. Não de paixão, de puro tesão. E admiração. Eu não sabia, mas nos aproximávamos do átimo – daquele instante diminuto, minúsculo, em que nossas trajetórias opostas iriam se cruzar. Eu, largando a razão rumo aos chamados do coração. Ele, abandonando o mundo das emoções rumo aos imperativos da razão.

Na manhã do domingo, fiz o que tinha fazer.
Precisava de um CD de músicas românticas, dessas pop-melosas, que ajudam a gente a sonhar acordada. Que parecem um narguile auditivo. Pois fui à Fnac e o comprei. Lembrei-me do moço, da namorada, comprei para ele um livro do Carlos Drummond de Andrade, tendo o cuidado de escolher a edição com os meus poemas favoritos. Para a namorada, um CD do Rômulo Fróes (que descobri graças a outra fonte de suspiros, que logo aparecerá em outra crônica). Não precisava comprar nada, nem para mim (a libido e o calor se encarregavam de me entorpecer), mas resolvi presentear o mundo com sentimentos. E assim foi.

Nos encontramos, os quatro: eu, ele, a namorada e um amigo em comum, também da organização.
A voz e o sotaque, lindos. Ele, maravilhoso. Namorada bonitinha, novinha e simpatiquinha.
Ele, de novo, maravilhoso.
Libido confusa. Um certo instante de mareação.
Dei os presentes, ambos contentes.
Tomamos uma cerveja. Falei da vida, da minha vida. Planos, mudanças, sonhos, loucuras. Ele falou dos dele – planos, vontades, sonhos, loucuras. Faltavam as mudanças de fato, que existiam em minha vida e não (ainda) na dele. Alguém falou, ele, acho: temos muito em comum. Olhei a namorada, novinha, anos-luz atrás da gente, sorrindo, olhos esverdeados atentos, mãos dadas (com ele) embaixo da mesa. Temos muito em comum.

Eu me perdi na volta para casa. Não no caminho, que posso trilhar até de ponta-cabeça. Me perdi dentro de mim, a música pop-melosa do CD recém-comprado ecoando na cabeça, os pontos de sensibilidade do meu corpo latejando, Drummond, Drummond, Drummond, a voz dele, o sotaque preferido, desejos, desejos.

Cheguei em casa quente. Naquela madrugada, depois de uma conversa maluca por um desses programinhas de mensagens instantâneas, o homem do átimo apareceu em casa. Tomamos vinho, comentamos os azulejos azuis – quase sempre azuis – das cozinhas dos apartamentos alugados e fizemos amor. A história se desenrolou sem desenrolar, pecados íntimos, razão versus emoção, o tiro da roleta-russa, o luto das begônias, deixe ir.

E faz alguns dias, o ano já acabando, dezembro, meses e meses e vivências e viagens e experiências e declarações e descobertas e pensamentos e sentimentos depois, a lembrança do homem maravilhoso de sotaque sedutor e voz linda apareceu com uma força gigantesca que quase caí sentada. Ficou latejando na cabeça. Primeiro, veio seu nome. Depois, seu rosto. Depois, sua voz. Depois, a frase: temos muito em comum. Depois, a recordação do livro de Drummond. E o poema que ele me mandou e eu jamais comentei. Quem é ele, então? E por quê?

Ele não sai de minha cabeça. Em meu ser, um imperativo para ir atrás dele. Ou ao encontro dele, o que acontecer antes.


Descobri que parte em menos de duas semanas para a Europa. Ficou mais longe. Eu até iria ao país vizinho, mas... Europa?


Eu lhe escrevi. E agora, como adolescente, confiro minha caixa postal eletrônica diariamente para ver se há alguma resposta, se ele se lembra de mim, se eu de algum modo também comecei a latejar lá do outro lado.


Respeito minha intuição, mas ela é misteriosa e suas motivações são mais complexas que os oráculos de antigamente. Estive no antigo templo dedicado a Apolo, com o oráculo de Dydima. Dydima, diga-me: o que é que é? Quem é esse homem? E por que não me deixa mais em paz?


Menos libido, mais o imperativo, isso é que é estranho. Ecoando: temos muito em comum. Temos muito em comum. Temos muito em comum. Ele vai à Europa para tentar estudar algo de teatro, de artes, me contou um amigo. Ele não sai da minha cabeça. Ontem à noite pensei que, depois das dez e meia, ele fosse me telefonar. Como fez um dia. Há coisas que não se explicam. Não se explicam por elas mesmas, o universo não as explica. Quiçá, se temos muita sorte, o futuro – como uma reconstrução de quebra-cabeças – as explique. Mas já não sei se quero a explicação ou a história de fato, acontecendo em tempo real, comigo como protagonista ao lado dele, do homem maravilhoso, de voz linda e sotaque preferido.
Temos muito em comum.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

rumos

Não sei por que a vida está me levando para esses cantos do mundo,
mas trata-se de um encanto que canto,
toques de suave pranto,
com sublime energia e fé.

Eu já não volto,
porque volto outra.
Outra que já sou mas serei mais,
Acrescentada de novos ares, demais.

Serena na minha inquietude
Quieta no deserto pacífico de minhas buscas
Viva em Mar Morto, móvel em Petra
E quando eu também vir Ramallah.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Vertigem

Entre tosses tosses tosses
coff coff coff coff
Me pergunto onde estou, para onde vou


Faz tempo que não entendo nada.


Alguém me chama de "voc"
-- O "ê" engolido com o atchim
Ou o jasmim de versinhos vespertinos
(Não assumidos, postados de madrugada)


Sem ar, três quartos de mim, bamba no eixo sem corda
Rodando, rodando, rodando
Zumm Zumm Zumm Zumm
Tudo troca de lugar enquanto eu troco de mundo
(ou de país, ou de cidade, ou de otredad)


Me dizem coisas bonitas e sinceras,
a todo o tempo, agora escuto.


Escuto, sim, mas não posso olhar
Porque tudo gira gira gira sem parar
Uuuou Uuuou Uuuou
Embaralhei até minha consciência.
Quem mesmo?


Sonha comigo, vai, ao seu lado na cama.
Sonhei foi com o outro.
... sentia dor e ganhei abraço.


Temo estar adicta de epifanias
!!! !!! !!!
Explosões! Explosões! Explosões!
E não suportar mais o cotidiano diário do dia a dia
Tão ensimesmado quanto um peixe beta em seu aquário espelhado.


Preocupação a médio prazo,
Então vamos, por ora, tomar xarope e chá de pólem.


Tenho medo de morrer de tédio.
Atchim!

domingo, 7 de outubro de 2007

Hoje me despedi de um tio da infância.
Houve roupas de cor preta, choros, orações e velas. Houve reencontro de laços e muitos abraços.
Somos finitos. E a finitude às vezes desespera porque inexata. Não a creio insensata, mas admiti-la revolve o fundo dos fundos e deixa a água turva, turva de verdade.

Hoje fiquei ainda mais longe da infância. E de meu tio, cujos contornos repousavam serenos acompanhados por flores e véus. Vestia o terno do casamento, tio viúvo, porque da tia já havia me despedido faz tempo, levava sua vara de pescar e seu chaveiro do São Paulo. Hoje me lembrei, novamente, de que não só os tios envelhecem. Eu também envelheço. Não sou mais a menina daquela infância povoada de tios. Parte da areia da minha própria ampulheta já mudou de lado.

Pouco a pouco, os tios vão se despedindo. Outros tios da infância se foram antes, e sei, com aperto no coração e olhos nada enxutos, que outros, os outros todos irão. Sinto saudade dos tios todos e saudade da memória que eu tinha com os tios.
Sinto saudade do meu pai.

Por que dói tanto a despedida? Com ou sem fé, por que dói?

De tempos em tempos, a finitude vem nos recordar de que deixamos muitas coisas para depois. Que, por motivos frouxos e roxos, não dizemos "eu te amo", "me desculpe", "eu preciso de você", "te perdôo" na hora certa. Colocamos baterias incansáveis nos relógios com a doce enganação de que eles nunca vão parar de funcionar. Eles talvez não. Nós... nós sim.

A finitude nos pergunta: a quantas anda sua existência?
Minha resposta me acalmou.

Hoje, quando me despedi de meus tios, revi meus primos de segundo grau, filhos dos primos que são os filhos dos tios. E pensei que, um dia, talvez os filhos dos primos se lembrem de sua infância povoada de primos-tios. E eu esteja entre eles, sobrevivendo nas recordações, em instantes fugidios, em breves flashes de sorrisos e carinhos.

Vi minha mãe caminhando pelas veredas.
Vi irmão, cunhada, outros tios, primos, filhos de primos caminhando pelas veredas.
Imaginei todos meus conhecidos e amigos e queridos caminhando pelas veredas.
E, mais que a despedida do tio, talvez o que realmente doeu hoje tenha sido a aceitação do exercício do desapego. Senti saudade por antecipação.

Senti vontade de cabê-los todos no meu abraço, num grande abraço carinhoso. Senti vontade de que partilhássemos ainda muitos e muitos momentos.
É a vida que me emociona, no fim das contas.
É a vida de cada instante de carinho, de cada pequena disponibilidade, de cada oportunidade de partilha, de cada poema colhido junto no mundo -- que quantas vezes deixamos escapar, meu Deus, por motivos bestas.

Não temos tempo.
Não temos dinheiro.
Não temos paciência.
Não temos compreensão.
Não temos coragem.
Nos falta sensibilidade.
Nos falta atenção.
Nos falta disponibilidade.
Nos faltam veredas para caminhar.

Infinito enquanto dure. Mas somos finitos, não custa recordar.

sábado, 6 de outubro de 2007

Duas horas

Impossível preparar o futuro. Impossível deixar a casa arrumadinha, porque tudo se bagunça de modo inexorável, porque basta respirar e...! Um punhado de partículas se desloca daqui para lá, desorganizando a pseudo-ordem, dando início a uma ecatombe no microscópio e no microcosmo. Isso é só o começo. Linha longilínea que liga o farfalhar de borboletas no quintal da casa de minhas tias no interior geográfico até monstros marinhos que engolem Jonas no interior da consciência. Em ondas.

Eu vivia duas horas à frente.
E, com todo o carinho e alguma pretensão,
Dava uma ajeitadinha no mundo
Para que, quando meu agora fosse o agora dele,
Quando daqui a duas horas ele vivesse o que vivo agora,
Ele pudesse encontrar flores no vaso,
Água no filtro, a prateleira sem pó,
Eu sendo eu mesma, já descansada de todas as cascas e mantas,
Desobrigada de tudo, de tudo, de todos.
Deitada no sofá. Ou na cama. Ou no tapete.

Impossível preparar o futuro, mesmo vivendo duas horas à frente dele. Quando eram duas horas em seu relógio, eu já estava nas quatro. E não tinha mais o mesmo frescor das duas. E mesmo que eu o encontrasse todo faceiro às duas, eu não saberia quem ele seria às quatro. Porque duas horas mudam a gente, em duas horas o mundo muda, de duas mudas podem brotar flores ou vermes, a gente emudece ou amadurece.

Eu brincava de atrasar o relógio
Só para experimentar a sensação de estar no mesmo tempo que ele.
Esse é o nosso tempo, até parece que tem gosto!
Mas ele fugia sem querer do meu abraço, pois meus braços cansavam
E, quando ele chegava ali, eu já estava pagando contas, trabalhando, xingando o governo, passando na padaria, colocando as toalhas molhadas no varal. Eu já não estava mais disponível.

Por que eu era tão assim-como-sou a ponto de estar duas horas à frente? Se eu pudesse ficar duas horas na frente dele... De acordo com o manual de fusos horários, poderíamos buscar algum ponto onde fosse possível acertar os nossos tiques e taques. Um lugar onde as horas fossem iguais e, enfeitiçados, vivêssemos sob o mesmo ritmo. Eu não me aborreceria mais ao vê-lo, duas horas antes, já abandonando o barco, enquanto eu seguia tão entusiasmada em navegar nas duas horas seguintes. Nem me sentiria culpada quando, duas horas depois, percebesse que, de tão esquecida dele, não havia deixado rastro de minha passagem ali duas horas antes.

Quando líamos o mesmo livro e combinávamos de começar a leitura juntos, eu sempre estava dois capítulos à frente. Porque ele nunca admitia levantar mais cedo para estar de acordo com a minha hora. E eu me indignava em ter de atrasar meus afazeres só para abrir o livro segundo a hora dele. Não queríamos desorganizar nossas agendas.

Mas eu fingia distração,
Embora quisesse deixar o futuro ajeitadinho
Para quando ele chegasse.

Ele fingia desprezo,
Embora se lembrasse de catar sua sujeira
Para que, duas horas depois, não pusesse equivocadamente a culpa em mim.

No fundo, ambos tentavam controlar a vida, duas horas adiante ou atrás. Nos momentos em que suspirávamos e nenhum dos dois pensava em nada, coincidíamos. Ficávamos tão juntos que era impossível distingüir dois seres ocupando o mesmo espaço. Mas esses eram momentos, pequenos e passageiros.

Duas horas. Às vezes, quando a pilha do relógio acaba, eu tenho a ilusão de que ele me alcançou. Ou de que eu realmente o esperei, sem tanta pressa.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

DONA DE VIDA

Os dias têm sido estranhos. Favoravelmente estranhos, como um prato novo e desconhecido e saboroso. Assim têm sido meus dias.

Pontas diversas de uma vida diversa atando-se à revelia, mas com harmonia, divertindo a dona da vida: eu.

Dona de uma vida, eu? Que responsabilidade. Quem é dono de cachorro sai com ele para passear. Quem é dono de gato não descuida da areiazinha. Quem é dono de planta busca sol, busca sombra, rega. Quem é dono de vida não pode descuidar. Mas são os donos que mais descuidam, os donos de vida, segundo estatísticas informais. Donos de peixe, de cachorro, de gato, de periquito, de plantas e de jardins inteiros aparecem como responsáveis, ativos e atenciosos. Donos de vida muitas vezes nem se dão conta de quem têm uma vida. E vivem olhando para a parede em vez de mirar a janela. E não passeiam suas vidas, não regam suas vidas, não alimentam suas vidas, não oxigenam suas vidas. Muitos ficam aborrecidos diante de suas vidas, apenas lembrando e recolhendo as cacas todas. E não são poucas.

Dona de uma vida que faz caca às vezes, mas que me entretém muito. Uma vida que, então, como dizia, tem se descoberto cotidianamente. De descobrir-se: tirar a coberta e fazer descobertas, as duas coisas. Minha vida deu para correr um tantinho na minha frente e me levar assim, quase voando, aos cantos e aos barrancos e aos encantos do mundo. Gracinha essa vida.

Aprendi a pegar a vida no colo e suspirar junto com ela. Ela se nutre de meus sorrisos e de meus desesperos. Quando se acomoda embaixo das cobertas, rouba um pouquinho a mais de lençol, mas eu não ligo. Pois, na hora do banho, quem sempre gasta mais água sou eu. A vida... a vida sabe das coisas.

E nesses dias estranhos a vida tem farejado um monte de gente. Estou distraída e, repentinamente, surpresa: alguém. Alguém que a vida farejou no meu passado recente, no meu passado remoto, no meu presente ambíguo, no fundo do pensamento, no lapso de um espirro. Essa gente que me reencontra e que eu encontro de novo. Depois de pouco ou de muito tempo. Donos de vidas essas pessoas também. De vidas que se farejam, pois as vidas farejam. Vidas ronronam e semeiam. São vidas, enfim.

Eu brigava muito com a vida. Não aceitava suas intuições e tentava impor-lhe meus caprichos. Depois a vida revoltou-se comigo. Ficou arredia e ardida. No início desse ano, depois de uma explosão de energia, ela se encolheu, amedrontada. Aos poucos, foi revendo os ares lá de fora e me puxou para o mundo. Me puxa de novo agora, para outro lado. Quer seguir os passos dos profetas. Essa minha vida tem sede de um monte de coisa que nem sabe o nome. Escuta sons de que eu às vezes duvido. Sonha melodias que ninguém cantou ainda, mas já tem quem saiba. Minha vida gosta de mar.

Os dias têm sido bonitamente estranhos, porque a vida da qual sou dona anda travessa que só. Dona é modo de dizer; sou guardiã, benfeitora, tutora, madrinha. No fundo, talvez, seja eu a mascota da vida, a afilhada. Estranho os dias cheios de travessuras começadas porque são surpreendentes e inesperados. E essa gente toda querida farejada por vida.

Um prato novo e saboroso. Ah, vida está se alimentando direito. E fica doce depois, quando eu a acomodo aqui juntinho a meu coração.

sinapses de quarta-feira

Partilhei com um amigo:

O mundo pesa às vezes, mas em outras vezes reza e, depois, se reveza com uma sensação de infinito desafiando nossa humilde finitude.

E a melhor coisa é o mergulho, mesmo no frio, para um olhar renovado à tona. O azul do fundo do mar sempre renova o azul da ponta do céu. O azul do fundo em fluxo com o azul da ponta.

E nesse trajeto todo -- pés, joelhos, sexo, umbigo, coração, tireóide, boca e lábios, olhos, neurônios -- o ser se junta e se recaminha, trilhando novas percepções.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

*** farewell ***

Seus olhos tão bonitos naquele dia
Seus olhos, os mais bonitos
Olhos que já encontrei
Seus olhos nos meus sorrisos de agora
Seus olhos e o tanto de tudo
Tudo que já senti


No aeroporto
Foi dos seus olhos que me despedi
Despedida em seus olhos
Eu que já tantos olhos vi
E que por tantos já fui inclusive enxergado
Mas foram seus olhos que me disseram
Disseram, exagerados,
Tudo o que eu precisava
Saber
Naquele momento, saber
Sentir, sorver, ser


Quero mergulhar em seus olhos de novo
Certo dia, certa feita, data incerta
Incertitude
Me enxergue, por favor,
Veja-me e me deixe ficar
Impregnado de seu caramelo,
Do caramelo de sua íris
Impregnado em sua retina
Seu.

chamado, achado

"O Senhor disse a Abraão:
'Sai de tua terra, do meio de teus parentes, da casa de teu pai, e vai para a terra que eu te mostrarei.'"

Agar, mãe de Isaac, diz:
"Tu és o Deus que olha para mim."

domingo, 30 de setembro de 2007

Cinestesia

Esses pistaches que agora como
Na frente da janela, cortina esvoaçante,
Nuvens afetuosas,
Têm o gosto de você.

Mas você também está no mel do chá,
Água esquentada na panela,
Xícaras gêmeas, vermelhas,
Mel que vai adoçando devagar.

Tem você na cerveja e água com gás
Misturadas à saliva e às solas dos nossos pés
Na quentura de uma madrugada bêbada e pueril,
Que tem sua temperatura.

Tem você quando eu fecho os olhos
Tentando dormir e você me povoa,
Tapando meus poros e me fazendo ofegar.

Você reaparece na letra de tango,
Um tanto alegre e rebolada,
E preenche o palco com seus trejeitos
Que me seguram, leve,
Junto ao seu corpo.

O som de todas as canções do mundo,
Nesse momento,
Carregam você de lá pra cá e de cá pra lá.

Então me resta aceitar
A eternidade de você
Você na minha existência
Existindo o tempo que tiver de durar –
Esse é meu presente,
Repetitivo que seja,
Permanente e instantâneo.

sábado, 29 de setembro de 2007

...

Queimei uma lâmpada
E estou às escuras
Tateando a saída
Do meu próprio labirinto

Poft!

Mas aqui dentro
tem mel e frutas
E insondáveis presenças
que me transpiram ar quente

Nhannnnn!

Hora de atravessar
As grandes águas
Num equilíbrio sonoro
Sobre o fio de Ariadne

Ssssssss...

Parece que dou voltas
Mas são caminhos não trilhados
Retomando pegadas
E abrindo novas nuvens.

Plim!

Sujeirinha

Era uma vez uma abelha
Que enjoou do néctar
E foi comer capim

Um dia
Alguém descobriu o mel verde
Matou a abelha
Cortou o capim
E foi comer hambúrguer do McDonald’s
Porque assim
O perigo passava mais rápido

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

CONCIERTO DE ARANJUEZ (ou Aranjuez, mon amour)

I.
Allegro con spirito


Foi numa noite de lua crescente, quente, mas refrescada por uma brisa suave e cheia de picardia, diante de uma praia, voltando de um jantar muito agradável com amigas e já de partida para outro destino. Foi naquela noite de lua virgem e crescente e estrelas crescidas e veteranas, olhando o mar, que eu disse sim. Eu disse sim ao amor. Assim: sim.
Amor, eu lhe digo sim.
Amor, entre em minha vida.
Faça as arrumações que julgar necessárias, mesmo que me tragam dor. Que me surpreendam. Que me amedrontem.
Amor, venha, por favor. Venha.
Eu disse, mas não entendi porquês ou repercussões quando disse. Foi a alma que sussurrou no silêncio daquele instante. Por isso, minha voz inaudível repercutiu tão alto, tão alto. Estremeceu as ondas todas. E me emocionou de suspiros. Dormi sem sonhos naquela noite, uma noite de passagem e de viagem. Havia apenas o frescor de um sim, a serenidade de uma decisão. Não voltaria mais atrás – seriam outras a lua e as estrelas, seria outro o mar, outros a areia, as pegadas, os entardeceres, os choros e os coros. Os coros dos grilos. Os meus choros. As pegadas. Seriam as pegadas dele. Ele, amor.
Eu tinha dito sim ao amor. E não sabia o que isso significava, assim, de pronto, de prático, em minha vida. Intuía que seria uma revolução – e que as barreiras todas, construídas em anos de interpretações equivocadas e esconderijos confortáveis, iriam ruir. Doeria muito, já imaginava. E o que viria depois? Não fazia idéia. Queria experimentar.
A lua sorria. Alegre em espírito. Eu também alegre, com espírito.

II.
Adagio

Antes de eu o conhecer, já o sentia. E estava próximo, e era irresistível, e sabia usar a razão e brincar com as palavras, e sabia deixar escapar bocadinhos de emoção, e partilhava. E me via, de algum jeito, já me enxergava, antes mesmo de me conhecer. Estávamos à espera um do outro. À espera, apenas, sem qualquer continuação, locução nominal ou objeto indireto (pura subjetividade direta, isso sim). Sem o conhecer, já havia me encantado com a pessoa que ele era. Sem me conhecer, ele já precisava de minha presença.
Ele era e eu estava. Quando eu era, ele estava. Fomos juntos em muitos momentos e estivemos em outros tantos. Mas esse jogo com ser e estar pareceu muito perigoso, e as muralhas começaram a ser levantadas. Cada qual à sua maneira. Puxamos um mapa do bolso e estabelecemos uma fronteira. Para cruzá-la daqui para lá ou de lá para cá, era necessário passaporte, apesar da relação tão cordial. Ele se tornou distante e espinhoso, mas jamais deixou de ser cordial. Eu continuei afetiva e achava que havia erguido apenas uma mureta desta vez. Que nada, era tão muralha quanto a dele. Mas a minha disfarcei com trepadeiras e também fui cordial.
Queríamos ter sido ousados, isso sim.
A energia era tão forte que não conseguíamos dormir. As muralhas estavam lá, seguindo a linha da fronteira. E nós, insones, tentando dizer a nossos corpos que tudo não se passava de uma grande bobagem. Eu repreendi com dureza minha alma, dizendo-lhe que havia se equivocado inexplicavelmente. Contive gestos de carinho – vontade de ajeitar sua franja, de abraçá-lo, de roçar suas mãos. Ele falava tanto e tanto sobre assuntos tão díspares e nada nossos que eu me sonambulizava para escutá-los. Os grilos, à noite, faziam uma sinfonia, reproduzindo com metais e sopro, os acordes daquele concerto de Joaquín Rodrigo (ele escutava na interpretação de Miles Davis). E, no quarto, o teto era feito de janelas. Eu dormia olhando o céu. Ele talvez dormisse imaginando o céu que eu via.
No último dia, lhe comprei flores. Atemóias.
Quando parti, pela primeira vez, eu ainda não havia dito sim ao amor.
Quando parti, pela segunda vez, ele estava bem mais leve. Com uma leveza estranha, achei que havia ficado feliz por eu estar partindo. Para mais longe, sem previsão de volta. Ele sorria e vestia camiseta branca. E me abraçou forte. E abraçou de novo. E falou para eu ser feliz aqui, aqui onde estou hoje e agora. Aqui tudo ficaria mais claro. Estava tão bonito ele. Estava e era naquele momento, justamente quando eu partia.


III.
Allegro gentile


Racionalmente, estava conformada com a frustração do equívoco de minha alma e me desenhava possibilidades alheias feitas de pura fantasia como conforto e reparação. Eu havia perdido aquela batalha.
Por outro lado, tinha dito sim ao amor.
Por isso, os sentidos estavam mais aguçados?
Por isso, me sentia mais serena?
Racionalmente, eu já havia dado como encerrada essa história. Continuava mandando meus sinais de fumaça – e não eram muito mais que isso, sinais de fumaça, com carinho e mel. Ponto.
Por isso, me surpreendi naquela tarde esquisita. Racionalmente não entendi nada, mas meu coração tudo captou e começou uma dança de espasmos e contrações. Primeiro, me defendi. Depois, aceitei a invasão.
Hoje, sem lua e sem grilos, teto de concreto, apenas uma janela com rasgos de horizonte, capitulei. Foi num instante de silêncio.
Silêncio e sentimento.
Minha alma se equivoca de novo? Uma vez mais?
Ele escreveu sobre maré de solidão. Portos próximos ao coração. Chamados amorosos que acontecem sem qualquer previsão. Hora de baixar as defesas e relaxar um pouco.
A razão leu: só agora ele decidiu baixar as defesas. Bom para ele. Pena para mim. Que azar o meu.
Eu tinha dito sim ao amor, não posso esquecer. E o aprendizado de abaixar as muralhas e guardar os canhões dói. Parece tolice a princípio, mas não é.
A alma leu: estou enfrentando meus momentos de solidão. Não tenho ao meu lado quem gostaria de ter e, no inesperado desse sentimento, então aproveito para baixar minhas defesas e relaxar um pouco.
Tomei um susto, confesso.
Achei uma bobagem, um novo equívoco da alma.
Não sei mais o que pensar. Pensar? Não aprendo mesmo. Quis dizer: sentir. Mas eu sinto sem querer. Tenho medo.

Estou cá com um amor entre meus braços e não sei o que fazer.
Procuro na minha papelada: Plano de fuga. Sabotagem. Esconderijos.
Amor miúdo ainda. Deixo ressecar?
Medo e dúvida. Patético supor que ele esteja falando para mim. Está falando do futuro e não do presente.
Por que então o coração se perturbou todo naquela tarde? Por que deu pane no circuito interno de defesa?
O que faremos não é uma questão. Não ainda, talvez não seja nunca. O que faço eu é uma questão. O que faço eu com essa novidade que a razão não entende?
Tenho um amor miúdo que chora de fome e saudade. Que aquece minha noite sem teto-janela e sem estrelas veteranas. Navego rumo a um desses portos próximos ao coração, onde, quem sabe.
Que haja praia. Pois desci da torre de marfim e quero experimentar a areia. Sem espelhos mágicos, vejo uma mulher. Uma mulher com um amor.
Estou alegre. Na aprendizagem da gentileza. E dos prazeres.

Brevidades dominicais

(problemas técnicos empurraram a postagem para quinta-feira)

1.
Dois peixes podem, sim, partilhar um aquário.
Um aquário não é o mar inteiro, que vai, vai muito, e um dia, lá longe, volta. Nem rio que já não está no mesmo lugar de antes. Mas o aquário não precisa ser necessariamente uma prisão, uma limitação: um aquário é um conjunto de espaços internos com zonas de intersecção. Tem pitadinha de mar, tem pitadinha de rio. E tem os dois peixinhos, claro.

2.
O crítico Luiz Zanin comenta o filme “A Massai Branca”, recém-estreado. Uma mulher suíça, branca, vai passar as férias no Quênia e se apaixona loucamente por um guerreiro massai, negro. A atração pelo diferente misturada ao choque de culturas. Zanin diz, sobre o “irredutível da situação”, que existe algo que incomoda a protagonista: é não saber exatamente do que trata sua compulsão. Escreve: “Ela mesma evoca uma história que conhece: um homem, um dia, está num aeroporto e sente-se impelido a invadir a pista. Depois de ser detido, a polícia lhe pergunta por que motivo havia feito aquilo. Ele se limita a dizer: ‘Tinha de fazê-lo, não havia outra alternativa.’”
Entendo perfeitamente. Não vi o filme, quero vê-lo, mas me detenho à frase.
Tinha de fazê-lo, não havia outra alternativa.
Eu não tinha outra alternativa a não ser viver a vida que estou vivendo agora. Inevitável. O medo que pairou sobre mim há alguns dias já foi chover em outros manguezais. Epifanias primaveris vieram confirmar caminhos.
Amém.

3.
Adélia Prado, com muita suavidade, pediu para entrar em casa. E trouxe seu “amor feinho” – “uma vez encontrado, como fé, não teologa mais.” Ah, que poema lindo. “Amor feinho não tem ilusão; o que ele tem é esperança.”
E o que dizer sobre aquele que começa com “eu te amo, homem”? “Aprendo, te aprendo, homem.”
“Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos para pessoa e bicho.”
“Homem meu, particular homem universal. Tudo o que não é mulher está em ti, maravilha.”
Ah.
Foi a Amiga quem conduziu Adélia no CD O Sempre Amor até minhas mãos. E foram minhas mãos que abriram caminho a meus ouvidos. E os ouvidos, ao coração.
Estava eu distraída, lavando folhas verdes claras e escuras, temperadas com laranja, azeite e sal. Estava eu picando, distraída, batata cozida, maçã e uva itália, temperadas com maionese light na falta de iogurte natural. Estava eu distraída, apoiada na pia da cozinha, entre esses sabores agridoces e os espevitados de verdume, espiando azulejos azuis, e o amor veio me fazer cosquinhas.
Eu ri.
Enquanto isso, Adélia estava lá, bonitamente falando. “Tudo o que não é mulher está em ti.” O dedo, em vez da colher, mexendo o suco de melão!
“Uma vez encontrado, o amor, como fé, não teologa mais.” Certíssimos eles dois, Adélia e o amor.

4.
A Amiga também conduziu Affonso Romano de Sant’Anna às minhas mãos. Essa Amiga...
Partilhamos, eu e a Amiga, uma tapioca salgada e uma doce numa feira do centro de São Paulo. Oásis em meio a cheiro de mijo e caixas de madeira pré-apodrecida, televisores ligados no jornal esportivo e velharias nas calçadas. Em tempos brutos, instantes delicados.
Lambuzei-me de leite condensado. Relembramos momentos mágicos naquela ilha paradisíaca, onde os sentidos se aguçaram. Era tapioca, era graviola, era tartaruga, era alemão, era moto, era pedra roliça, era golfinho e bolinho de tubarão. Mulheres de chita, nós duas. Mulheres da Lua. Na Praia do Leão. Dormindo na areia, fazendo xixi atrás da moitinha.
Voltando a Affonso Romano de Sant’Anna, poeta prosador, ele me trouxe seu Tempo de Delicadeza. Abri, assim, ao acaso: “Talvez o verdadeiro aprendizado comece quando descobrimos que certas perguntas não têm respostas, que a arte da vida não está em achar respostas, mas em trocar de perguntas, que as fundamentais são irrespondíveis, e que as perguntas são mais viscerais do que as respostas.” De acuerdo.
Bem-vindo, Affonso.


5.
As atemóias me olham com ternura. Essas flores guardam uma memória recente e colorida. Eu planejava strelitzias ou angélicas, mas as atemóias me chamaram. Gosto do que me chama. Gosto de chamas e de chamados, gosto de achados também.
Me lembrei agora, tão rapidamente, de uma memória esquecida: quando os girassóis entraram em minha casa. Morava em outro canto, mas isso não importa. Foi bonito vê-los entrando, chegando e sentando. Iluminaram por dias a sala, a vida, o olhar. Foi um pedido de perdão que resultou em respeito e carinho. Hoje, lembrança. Como o restinho de açúcar que fica no fundo da xícara.


6.
Há três semanas aterrissei em São Paulo, depois de dois meses de ausência, e achei a megalópole mais bonita. Senti de imediato os efeitos da lei Cidade Limpa e aprovei. A poluição visual era terrível e estressante. O despojamento evidenciou a feiúra? Acho que não; revelou possibilidades. E, nos recantos da minha São Paulo, me senti em casa. Reconheço espaços meus esparsos no mundo – cantinhos e caminhos da Cidade do México, de Buenos Aires, de Istambul, de Paris. Mas lar é diferente, precisa de tempo para se desenhar, se estabelecer.

Aproveitando o gancho, fiquei encantada com o arquiteto mexicano Ricardo Legorreta e sua entrevista publicada no caderno Aliás. Sensibilidade combinada com inteligência e argúcia. Além de um profundo senso de pertença à humanidade e a esse momento da história contemporânea. Suas opiniões são consistentes e, para ele, não há como discutir a arquitetura sem mencionar aspectos sociais, culturais, econômicos, humanos. Ele fala de arquitetura popular e da soberba que acomete os arquitetos de agora, que querem ser celebridades e construir para a elite – ah, Legorreta, esse mal, de arrotar peru e dedicar-se aos donos do dinheiro, atinge de dermatologistas a jornalistas, infelizmente. Comenta os shopping centers e solta frases ótimas. “Gosto de provocar os americanos quando participo nos EUA de reuniões com arquitetos. Eu lhes digo: ‘Então, vocês falam tanto de shopping centers, de elevadores panorâmicos, de sistemas de segurança, e, quando saem de férias, vão correndo para as ilhas gregas.’ Não proponho que se eliminem os shopping centers das cidades, apenas quero pensar alternativas a uma arquitetura anti-humana, de luz e temperatura controladas.” Debate também a questão do mobiliário fora de escala que é vendido para as pessoas de baixa renda, algo nada a ver com o que elas necessitam. E encerra a conversa assim: “Não creio em gênios. Creio em gente que trabalha muito. E com paixão.”


7.
Um dia, uma pessoa me disse que havia três coisas fundamentais para sobreviver no mundo de hoje: saber nadar, saber dirigir e saber falar inglês. Tsc, tsc, tsc. Eu faria outra relação: saber ouvir, saber partilhar, saber respeitar. Mas, claro, isso depende do ponto de vista.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

ONTEM. COM SANTIAGO E COM JOÃO.

E ontem, então, passei a tarde com Santiago.
Na verdade, passei a tarde com Santiago e com João. O Cássio esteve ao meu lado, por uma dessas coincidências divertidas – olha só quem também veio!... –, mas ele pode ter conversado sobre outras coisas com aqueles dois.
Santiago me falou de pulsações diversas, de memória, de paixões, de vida invisível, de idiossincrasias, de intensidade.
João me falou de amadurecimento, de lapidação do olhar, também de memória, de fé, de respeito e de humanidade.
Eu? Eu fiquei quietinha, ouvindo apenas. E observando, e sentindo, e sorrindo e também chorando um pouquinho, meio disfarçada.
Já nos tempos de Santiago – quando nasceu, que não me lembro direito? 1926, pode ser? depois checo e lhes conto – havia gentes que achavam isso e aquilo, e a fabriqueta de identidades-perfeitamente-adaptáveis-a-essa-vida-dita-moderna-mas-tão-vazia já estava em pleno funcionamento. Ou seja: para ser algo (considerado algo) era preciso ser algum dos algos contemplados. E aqui não me refiro a ser rico ou ser pobre. Refiro-me a seguir o padrãozinho medíocre de previsibilidade. Na minha humilde opinião, ops, já estou falando demais, é justamente o que esse sistemão capitalista-fundamentalista baseado no espetáculo celebrity e no fetiche da mercadoria (consumam, pobres diabos, que Deus não vai ver!) quer de nós, exige de nós: previsibilidade. E Santiago, já naqueles tempos, Santiago ousado e autêntico, Santiago cujo coração sussurra alto, Santiago deu de ombros a essa previsibilidade e a todas as tonterías que possam ter lhe dito sobre isso e aquilo, aquiloutro.
Era mordomo o Santiago. Existem mordomos hoje em dia?
Mordomo, essa figura que parece tão associada à infância. Quando somos crianças, acreditamos em mordomos. Quem, adulto hoje, acredita em mordomos? Com fraque, luvas brancas, olhar austero, coluna ereta, equilibrado no metatarso da elegância (seria fraque mesmo? Sempre me confundo com esses trajes masculinos.)
Santiago era apaixonado pela aristocracia, não se importava em ser um mero servidor (no fundo, não era, especialmente em seu último emprego, como contou. Recebeu até brinde de champanhe francesa de primeira em um de seus aniversários). Era, o Santiago, italiano, argentino e brasileiro, tudo ao mesmo tempo. Era um apaixonado. Vivia de óperas e castanholas, abençoado por Madonas diversas – Giotto tão grande como Bach! – e dedicado a registrar os passos da nobreza e da aristocracia pelo mundo e pelos tempos. Tocava Bach, no silêncio da noite e da casa, da imensa casa dos pais de João, usando fraque: porque o momento exigia. Ele, o Santiago, entendia as solenidades. E tinha uma percepção tão profunda sobre a vida. A morte seria a grande partida. Ele estava só no apartamentozinho do Leblon, mas vivia acompanhado e não se sentia desamparado. Ele mantinha uma máquina de escrever na cozinha. Na cozinha! Nem João nem eu lhe perguntamos por que a máquina de escrever estava na cozinha. Santiago trabalhou na mansão de uma família argentina aristocrática que tinha muito dinheiro, mas jamais havia saído de Buenos Aires. Iam a óperas, teatros, eventos, mas nunca se arriscaram a vir ao Brasil, por exemplo. Santiago apertou a mão de tanta gente distinguida, mas foi essa gente distinguida que freqüentava a grande casa de João que teve o prazer de apertar a mão desse Santiago. Ele sabia que a expressão podia ser a mais simples para ser a mais pungente – e o balé de suas mãos demonstra isso. Um mordomo que, nas horas de trabalho, mantinha as mãos disciplinadas. E que, nas horas vagas, emprestava-as ao balé da vida. Soltas. Ou no piano. Ou nas castanholas. Ou na máquina de escrever. Fazia parte de um grupo maldito de poetas, de seres vivos – mas fiquei sem saber o porquê já que Joãozinho cortou a conversa.

João falou muito e pouco ao mesmo tempo. Foi tão sincero que me emocionou. O tempo das coisas, João. A gente nem compreende tudo de imediato. Ao ouvir Santiago, João também se deu conta de um monte de coisas. Citou Herzog, o homem-urso Herzog. Nos momentos em que deixamos o controle de lado, a necessidade do efeito (para que buscar o efeito, João? isso é tão espontâneo...), um respeito desnecessário às convenções é que a vida acontece, em gestos, palavras, olhares, posturas, suspiros, respiros. Ou simplesmente acontece, mesmo que imperceptivelmente. João gosta de cinema. Citou Ozu. Enquadramentos existenciais. Esses são os mais fortes, sabia? O close, às vezes, pode ser uma invasão desnecessária da privacidade alheia, quase um desrespeito, uma falsa idéia de proximidade. Um plano excessivamente aberto pode ser um jeito blasé e arrogante de denotar descompromisso e conotar liberdade, uma falsa idéia de liberdade. João reconheceu, para mim, como se estivesse segredando mas em voz alta, que aprendeu muito com Santiago. Idiossincrasias à parte, foi influenciado pela intensidade de vida, pela autenticidade, pela imprevisibilidade, pela paixão de Santiago. Mais agora que antes, quando era menino ou adolescente ou jovem. Ou em 1992, quando visitou Santiago. João também queria ter dado um abraço em Santiago. Queria ter sido mais desprendido, menos controlador, menos contido.

O tempo das coisas, João. O tempo das coisas.

Eu queria agradecer ao João por me ter apresentado ao Santiago. Queria acompanhar Santiago no balé das mãos, mas ele já fez sua grande partida. Resta-me mandar um beijo grande ao João, desejando-lhe sorte, sempre. E sensibilidade. Não pode ser coincidência ver a folha de árvore cair duas vezes no mesmo lugar, acompanhada de um casal de folhas (poderia ser uma dupla, mas eu vi um casal). Isso foi um presente, João.
E agora estou com saudade de Santiago.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

El hombre quien no quizo más ser héroe

"Gracias a la vida, que me ha dado tanto,
Me ha dado la marcha de mis pies cansados;
Con ellos anduve ciudades y charcos,
Playas y desiertos, montañas y llanos,
Y la casa tuya, tu calle y tu patio"




Foi num dia assim, meio nublado, meio poluído, meio melancólico, meio preguiçoso, parecia sábado mas podia ser domingo ou feriado, depois de umas quesadillas e de leite com aveia e banana, depois de ouvir a voz do filho do outro lado da linha, como eu amo você, depois de suspirar relembrando seus trajetos sul-americanos que tinha traçado havia uns meses, depois de relembrar a paixão argentina fadada a tango e a fado, que ele respirou fundo e decidiu não ser mais um super-herói. Ou um herói. E não mais carregar um rei na barriga. Ou falar do alto de si mesmo.

Naquele instante, todas as suas limitações e imperfeições e fraquezas e dificuldades boiavam no caldeirão de sentimentos, pensamentos, impressões e sensações que fazia ele ser ele, unicamente ele. Sentia-se minhoca tentando perfurar a terra cada vez mais fundo para caber, para se esconder, para se mover, para sobreviver, para sair, para fugir, para sentir, para, finalmente e com tanto custo, poder sorrir.

Ele havia experimentado a dor e o sofrimento. Acolheu a dor, venceu o sofrimento. Iniciou o exaustivo aprendizado do desapego. Deixou o manto vermelho e os superpoderes, o cetro e a coroa, os súditos e os púlpitos, a soberba e a arrogância. Viu-se formiga das mais miúdas correndo riscos atrás das minúsculas migalhas de pão ao lado da pia, disputando sobrevivência com a espuma do sabão, a gota perdida de café com leite, o laguinho espontâneo de água, as formigas maiores, as mãos humanas. Disputando sobrevivência com mais um montão de humanos.

Não queria disputar nada. Não queria salvar ninguém. Não queria tampouco condenar. Queria ser, liberto dos grilhões egóicos, ser ele mesmo. Anônimo, mas em sua completa identidade. Queria simplesmente poder bocejar em paz, a cada novo dia, ciente de suas possibilidades. Que eram as suas – e não alheias. Um dia poria abaixo as muralhas que o defendiam tão bem protegido. Destruiria os canhões e as masmorras. Não temeria viajantes, forasteiros e senhoritas provocadoras. Nem sua própria imagem no espelho.

Achou-se mais feio do que era, mais enfermo do que havia estado. Contudo, a alegria de ter se livrado do ônus desse heroísmo impregnado nos seres do sexo masculino, quase socialmente obrigatório, lhe devolveu a sobriedade. Diante do filho, não era o super-herói. Não era o rei exemplar. Não fingiu ser o máximo dos máximos. Assumiu, diante do garoto, toda sua humana condição de ser humano plebeu e desprovido de magias. Eu erro, filho, eu erro. Mas também acerto e isso partilho com você. Diante da moça que mal conhecia, revelou seu anonimato e seu encanto sem truques. Sua rudeza e seu medo disfarçado de distração. Não sei de nada, me custa viver, estou reaprendendo tudo. Contou que não queria mais ser super-herói e que isso talvez o fizesse indigno de um monte de coisas. Porém a moça que o conheceu e ouviu sua história discordou. Já fazia muito tempo que não conhecia alguém tão digno. (A moça, essa que topou com o homem deixara de ser herói, também andava cansada de ter de vestir – a cada dia – um personagem de contos de qualquer coisa: gata borralheira, rapunzel, branca de neve, mulher maravilha, madame bouvary, lillith... Mas essa é outra história e não vem ao caso).

O homem agora vive um dia de cada vez, com calma, e mastigando muito bem. Reaprendeu a viver sem muletas. Ele aceitou uma gatinha sem-vergonha que espalha terra dos vasos e pêlos brancos pela casa, e parece que, aos poucos, vai aprender a externar ternura. Ainda tem mania de acreditar que seu escudo é intransponível e que, quando fecha os olhos, ainda pode ser invencível. Ou inatingível. Equivoca-se, é lógico, no entanto não briga mais consigo mesmo. Segue com dificuldade de sorrir solto, com toda a espontaneidade do mundo, pois super-heróis e reis são treinados para serem sóbrios e ele ainda não venceu, de todo, tal costume. Mas seu mundo ficou mais leve – ele levita em vez de pairar acima do sol, estático e posado, – e, aos poucos, vem acumulando fãs.

Porque há muitos que se encantam com gente falha, imperfeita e humana. Mesmo que isso pareça incrível.
E é.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

ganhei de presente!

Esse texto foi escrito para mim, mesmo que não tenha sido.
***



Eu era um homem que tinha uma árvore



“Maybe I’m a man and maybe you’re the only womanwho could ever help mebaby won’t you help me understand”
(Paul McCartney)


"Eu era um homem que tinha uma árvore.
E minha existência era feliz, por conta disso, pela árvore estar em minhas mãos, por ser minha, por estar minha, por me pertencer enquanto vida em minha vida. Eu era um homem, e tinha uma árvore. Como a regaria todos os dias e a adubaria semana sim, semana não, como contaria segredos ao seu pé que nem ouvido, como escreveria iniciais de todos os nomes em seu caule quando ela estivesse crescidinha e pudesse abrigar amores.

Eu era um homem que tinha uma árvore, repito, e esta verdade consolidava a minha existência.

– Eu quero!
– Quer não!
– Eu quero!
– Quer não!
– Onde você vai plantar? – Onde? – Tenho quintal! – Eu não. – Vou plantar no Ibirapuera! – Eu, na praia. – Praia não tem árvore, tem coqueiro! – Ah, é!? – É. – Vou plantar num sítio, então. – Até lá vai morrer, já tá murchinha...

Odeio mortes. Olhei para minha árvore, agora ameaçada de morte. Eu odeio mortes. Olhei para minha árvore, agora ameaçada de morte, como se um fuzil houvesse apontado em sua direção. Eu odeio muito mortes. Se pudesse, mataria todas as mortes enforcadas, para que nunca mais importunassem ninguém. Mas que chato seria a humanidade eterna, viver pra sempre, mais que vegetal, mais que mineral.
(Desconfio que odeio mortes só dos outros.)

– Toma, a árvore é sua, será mais feliz solta no mundo. Plante-a bem. Cuide-a. Toma, a árvore é sua, não mais minha, não tenho mais uma árvore, não tenho mais uma árvore, não tenho mais que disfarçar essas lágrimas, não tenho mais minha fábrica particular de fotossínteses, não sou mais ecologicamente correto, não tenho mais minha cota de reciclagem de carbono para dormir com a consciência em paz.

Não sei onde ela está agora. Se chora de saudades, se dorme bem, se tem companhia, se passa frio, se vai casar. A ausência precoce de minha árvore, que partiu para ganhar o mundo ainda novinha, meio sem se despedir, me perturba. É com a insônia de um pai que abro a janela e saio gritando pelo seu nome. Um nome que me esqueci de lhe dar.

No CD player, Paul cantarola, incansável, alheio, quase feliz."

(Os originais podem ser encontrados em http://www.cronopolitano.blogspot.com/, ao lado de outras inspirações e batalhas lingüísticas, algumas bem belas.)

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

dia de encolhimento e... ai! doeu.

Não foi só a temperatura externa que caiu.
Bem que hoje podia ter apenas 22 horas e aí já tinha acabado.
Frio. Frio.

"Concierto de Aranjuez" explodindo no toca-CDs, finalmente!, dissolvendo as fibras todas desse coração muscular hiperplásico (embora encolhido nesse momento). Já nem sei mais para onde sou transportada. Longe, longe, ou nessa proximidade tão incômoda de mim mesma, instalada entre o suspiro e o pensamento. Não pense.



Sinta a pulsação. Preste atenção, ó. Existe um pulso que nos une.
Só a pulsação.

Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( )



Meu ritmo hoje:
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...


"Os pés distantes dos sapatos. Era evidente que os sapatos rasos, à homem, que Mylia usava, obedeciam ao movimento dos pés. Ossos e músculos têm vontade, o material de que são feitos os sapatos não. O material de que são feitos os sapatos é treinado para obedecer, sobre isso não tinha dúvidas. Obedeçam sapatos, murmurou Mylia, com uma perversão ingênua. Como as substâncias se separavam logo à partida entre as que avançavam com a vontade própria e as que esperavam com obediência estática (e nisso dividiam-se os homens)! Os sapatos eram a obediência pura, a escravidão mesquinha, enojavam-lhe naquele momento; a sabujice destes materiais em relação ao homem." (Gonçalo Tavares, "Jerusalém")


Ainda bem que ando descalça.
(é por isso, acho, que sinto frio em dias como hoje)

sábado, 15 de setembro de 2007

...então, como eu...

Além de tudo, prolixa.
Como se não bastasse.
E o que dizer dessa saia de retalhos?
Mas é que os coelhinhos saltitam aqui dentro e eu os vomito. Um por um, às vezes quinze ao mesmo tempo. Formando montes difusos que preciso costurar, assim, assado.
Um bolo formigueiro! Está no freezer.
O alento da louça da semana finalmente e completamente lavada e equilibrando-se no canto da pia. O chá de flores, petulante e sedutor em seu sabor, pelo amor de Deus, criando uma primavera no meu céu da boca: hibisco, rosa rubra, jasmim, crisântemo, cardamomo e canela, um jardim no meu paladar. As notícias que chegam dos amigos são as melhores possíveis. A brisa noturna e a lua em forma de sorriso. Gato de Alice, foi o que me lembrou.

Agora tudo me parece coincidência, confirmação, epifania. A pessoa que, o filme ao qual, a música no, o e-mail enviado por, aquele, aquela, ah, puxa. A lua formando sorriso para mim. Houve a senhora no ônibus na terça-feira, me contando a história do sobrinho obstinado que foi morar na Austrália há sete anos, com a cara e a coragem, e hoje está muito bem empregado em Londres. Ela me disse: você é bonita, simpática e inteligente. Confie nisso e afaste a nuvem preta que está por aí. Minha mãe me perguntou que nuvem era essa. Medo, ué. A inadequação tem seu preço. E eu, como filha de Deus, por mais valente que seja, também tenho medo. Tenho preguiça. E gula. “Eu tenho um pouco de medo, medo ainda de me entregar, pois o próximo instante é desconhecido”, nas palavras de Clarice Lispector ditas com vigor por Maria Bethânia numa das faixas de “Drama 3º. Ato”, o CD de tantos significados (ele é par do livro de Clarice, do meu, de Lóri; aliás, ‘minhas’ faixas nesse CD da Bethânia são a terceira – Texto de Antonio Bivar/ Estrela do Mar/ Meu Primeiro Amor – e a sexta – Texto de Isabel Câmara/ Como Vai Você?/ Quatro Paredes).
“Enquanto me permite o destino
Eu vou sendo os personagens
Que eu criei...”
Ah.

Medo de me entregar plenamente. “Não deixe tanta vida para depois...”
Assisti hoje ao mais recente Winterbottom, “O Preço da Coragem”, que vai estrear em breve. Trata da angústia da jornalista Mariane Pearl, esposa do também jornalista Daniel Pearl, do “The Wall Street Journal”, seqüestrado e morto no Paquistão, em 2002. Acompanhamos o drama e a tensão dela e de amigos e figuras do governo norte-americano do momento em que se confirmou o desaparecimento de Pearl até o trágico desfecho e os passos seguintes de Mariane. Gosto do diretor inglês, gosto de suas cenas superdecupadas, cruas e tão bem lapidadas, das escolhas subjetivas e ideológicas que faz na movimentação de câmera, nos enquadramentos e na inserção de imagens documentais. Há quem o acuse de manipulação, acho que ele até certo ponto manipula, sim, mas não esconde isso do público. Estão lá seus artifícios para criar um longa catártico, comover aqui, revoltar ali. Mas funciona, caramba! Essa história de autor neutro e puro e inocente quanto à própria obra não cola, não. Gosto de Winterbottom porque tem personalidade, não é um marionete de estúdio ou um morno qualquer que faz filmes quaisquer. Quando crescer, quero ser assim com a câmera.
Ah, sim. Está na listinha.
Pastéis, canto, literatura, câmera...
O filme me devolveu um pouco desse meu tesão pelo jornalismo que os anos foram diminuindo até chegar nessa quase apatia em que me encontro hoje. Está difícil buscar trabalho menos pela falta de contatos ou de oportunidades e mais pela falta de interesse de minha parte. Olho para as publicações e já não acredito mais em nada. Fico até meio enjoadinha, tenho preguiça de ler qualquer coisa. Sinto que a vida pede outras atitudes, que se trata de pura reciclagem, e a tchurma continua insistindo em fazer “produto novo” para “cliente novo”. Afe. Quem lê tanta notícia?

Casualidade ou coincidência foi ter me deparado com o filósofo, cineasta e ativista Guy Debord, que vai ganhar mostra em sua homenagem no CCBB também em outubro. Assistir ao “La Societé du Spectacle” (1973), longa-ensaio baseado em seu livro homônimo de 67, é toda uma experiência. Um dos principais pensadores da Internacional Situacionista, com novas e radicais propostas para a arte do século 20 – uma arte comprometida, revolucionária e participativa – e uma feroz crítica à sociedade do espetáculo, do consumo e do fetichismo da mercadoria. Ele monta seu filme com imagens de arquivo, de noticiários e de documentários, mas também “rouba” ou “expropria” cenas de clássicos do cinema, como “Rio Bravo” e “Por Quem os Sinos Dobram” – les films volés. A discussão é bem mais profunda do que escrevo aqui (alguém me lê? alguém chegou até aqui?). Fiquei intrigada com o que vi. Parece que faz um clique na cabeça da gente: caíram as vendas dos olhos. Eu não quero ser bolinho de massa feito em massa para ser consumido pela massa. Debord explica NA PRÁTICA o que sua teoria questiona. Ou seja, ele subverte elementos culturais e imagens já existentes, reorganizando-as com um sentido específico e determinado (ideologicamente determinado). Assim, o espectador recebe uma visão de mundo que pode crer ser “a” visão de mundo. Debord diz que o espetáculo é uma relação social entre as pessoas mediada por imagens. A sociedade do consumo e do espetáculo precisa de alguns que escolham as imagens, recortem-nas, concedam-lhe sentidos e as devolvam ao mundo como se fossem, de fato, imagens fiéis a esse mundo que retratam. Os que vêem sentem-se saciados por terem contato com o mundo que conhecem por meio de imagens. E tudo é consumo, porque há que consumir de algum jeito o que se vê. Alguém lhe conta o mundo por meio das celebridades, dos noticiários com cara de novela (realidade mostrada como ficção), com as novelas que “retratam a realidade” (ficção da vida real), dos fragmentos espetaculosos da esfera política, dos eventos bombásticos mundo afora, de corpos impossíveis e de produtos para todos os minutos do dia, etc. Você adquire esse mundo e, ao voltar para o comezinho de sua vida cotidiana e sem-graça, ufa, acha que teve emoção suficiente para aquelas 24 horas. E o espetáculo torna-se viciante, uma relação de dependência. (Voltando rapidamente a Winterbottom: ele sabe como lidar com o espetáculo e criar um elo com seu espectador por meio do uso que faz das imagens. Isso não é nem bom nem mau. Acho que a questão está mais no receptor que no emissor.)
Eu quero tocar o mundo. O mundo tem, por ora, as dimensões de minhas andanças e do meu abraço. Ponto e vírgula.

E, para terminar e eu me livrar dessa leva de coelhinhos, sigo acompanhando as desventuras de Florence e Edward em “Na Praia”. Quanto pudor, meu Deus do céu, e quantas travas. Preciso apresentar Florence à Menina Má e vice-versa. Quem sabe se ajudem. Vejamos o que pensam ou dizem:

Florence:
“Mas o que a atormentava era inexprimível, ela mal conseguia defini-lo para si mesma. (...) Num manual moderno e antecipatório, ela deparou com frases ou palavras que por pouco não lhe deram ânsia de vômito: membrana mucosa, e a sinistra e cintilante glande. (...) Quase tão freqüente era uma palavra que não lhe sugeria nada além de dor, de carne cortada por faca: penetração. (...) Sem dúvida, a imagem dos testículos de Edward, pendentes sob o pênis ingurgitado – outro termo horripilante –, era capaz de contrair seu lábio superior, e a idéia de ser tocada “lá embaixo” por alguém, mesmo por alguém que ela amasse, era tão repugnante quanto, digamos, um procedimento cirúrgico nos olhos.”

Niña Mala:
“--- Mentira, tú no quieres matarte ni matarme. Sino cacharme. No es verdad? Yo también quiero que me caches. O, si esa lisura te molesta, que me hagas el amor. (...) Se había arrancado el vestido de bailarina y tendida sobre mí me secaba moviéndose sobre mi cuerpo –, metiéndome la lengua en la boca, haciéndome tragar su saliva, atrapando mi sexo, acariciándolo con las dos manos, y, por fin, encogiéndose como una anguila sobre sí misma, llevándoselo a la boca.”

Ulalá. Que dupla.
E são dois homens, os dois escritores, descrevendo. Dois narradores masculinos – um onisciente, outro não.

Ver um homem pelado é toda uma experiência. Dependendo do estado de espírito, do homem, da ocasião e dos etecéteras, ora pende-se para a “função Florence”, ora para a “função Niña Mala”... Embora curta ser menina má quando convém, eu prefiro o jeito Lóri: “Foi então deitados no chão que se amaram tão profundamente que tiveram medo da própria grandeza deles. (...) No começo ele a tratara com delicadeza e um senso de espera como se ela fosse virgem. Mas em breve a fome de Lóri fez com que Ulisses se esquecesse de todo a gentileza, e foi com voracidade sem alegria que se amaram pela segunda vez. E como já não bastava, já que tinham esperado tanto tempo, quase em seguida eles se possuíram de novo, dessa vez com a alegria austera e silenciosa.”
Isso rende outro post, mas em outro momento. Há as cenas de sexo do cinema... Coelhinhos saciados, me voy.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

crítica da razão pura

(nota: é a razão pura quem critica, não eu quem a critico)

Pois então, acho que agora enlouqueceu de vez. Como se não bastassem as idéias malucas no plano das idéias, agora elas começaram a brotar no plano das ações. Ações malucas? E os riscos todos estão aí, as pessoas à volta parecem cada vez mais chocadas e atônitas, o voto é obrigatório, é bom fazer Papanicolau uma vez por ano, há que comer fibras e cortar o açúcar branco, o ideal é hidratar a pele duas vezes ao dia, mínimo, e essas coisas todas. E assim por diante. E o manual está aí, distribuído gratuitamente, por que não o relê? Nadar contra a corrente! Hahahaha. E agora deu para se achar artista, dona de uma criatividade que faz bem à saúde. São esses argumentos que vão salvar o mundo? Acha que sorrisos e simpatia e bochechas rosadas acabam com uma guerra? Ah, vai cantar? Ah, vai improvisar? Sei.
Improvisar? Repete. Nada de controle, então?

Vai viver de que, meu bem?
Vai fazer o que ali, meu bem?

Love is all we need? Qualé, larga esse Beatles ultrapassado.
Sumi com seu "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres" porque Clarice faz mal à cabeça, mas aí você foi ver aquele anime, "O Túmulo dos Vaga-Lumes", e pirou mais um pouco.

Olho no espelho e falo com você: "agora pirou de vez". Você escuta, se confunde, tropeça nos livros pelo chão e não dá bola. E fala: eu vou, eu vou. E volta? Vai voltar? Volta algum dia?

Sua alma está sussurrando demais, também não é assim.
E tenho dito. Cuide-se. Cuidado. Pelo menos, não ande descalça quando faz frio, tá?

Ser ou não ser

Cobertor no sofá que acompanhava o filme da noite. A xícara cujo fundo ainda suporta um fino arco de café com leite já seco, embora bebido há pouco. Roupas sobre a poltrona, sutiãs inclusive, roupas limpas tiradas do varal cuidadosamente e casualmente separadas das roupas usadas anteontem, que estão sobre uma cadeira da sala de jantar. Sacos plásticos da compra do supermercado, livros e mais livros consultados ontem ou há meses, DVDs espalhados pelo tapete, pelas cadeiras, um até sobre a geladeira. As flores. Nas orquídeas, nas begônias, numa humilde violeta, porque as demais, com preguiça, só apresentam folhagens. Uma folha amarela no lírio da paz. Uma folha branca ao lado do telefone, mas muitas outras escritas ou rabiscadas pela mesa, pelo chão. No rádio, a música pop-melada-animada que me persegue. No CD, a mesma música. No suspiro da hora do banho, idem. Essa música algumas horas antes de ele entrar no apartamento, meia-noite e meia, cheirando a charuto e tesão. Mas essa lembrança nem tem mais cheiro. Ficou apenas a música.
Dia tão claro, tão claro, mas a casa anda meio e meia escura. Faltou abrir a janela do quarto – dificuldade para alcançá-la, entre mais roupas pelo chão, lençóis e sapatos sem par. Por que tudo é tão difícil? Não há resposta evidente. Há um porta-jóias que só carrega bijuterias, queridas todas, mas bijuterias, ao lado de um quadro encostado sobre o bufê improvisado da sala de jantar. Por quê? Não se sabe. Uma garrafa de Casillero del Diablo faz companhia. Ela cheia, o Bailey’s quase vazio. As coisas não fazem sentido. A desorganização, sim, a bagunça, sim, mas as coisas – elas por elas mesmas – não fazem sentido. Tudo é tão difícil.
Suco de maracujá à tarde, café puro e forte à noite, chá de camomila pela manhã. Isso não faz sentido. E o sistema nervoso central, será que é ele?, confuso e bagunçado. Não faz sentido. Difícil, difícil organizar as coisas por aqui. Dentro e fora. No apartamento, no sistema nervoso central, no lugar de onde saem os sentimentos e as emoções e as aflições e os fermentos espirituais. Chamo de coração. Não acho meu coração dentro do meu corpo – deve estar num lugar tão ou mais estranho que a touca para banho. A touca para banho está ao lado de um prato repleto de migalhas de pão integral, de um dicionário de sinônimos e antônimos (ah, tá, isso faz sentido), de um vasinho com flores da fortuna de cor tão bonita quanto melancólica. Com essa vizinhança absurda, não me parece fácil ser touca para banho. Encontrá-la, assim, despretensiosamente. O mesmo acontece com meu coração. Não o acho. Está perdido no meio da bagunça.
Ontem, toalha amarrada na cabeça procurando o pente para o cabelo (estaria ao lado do vinho?), me senti personagem de uma história escrita por não sei quem, não sei por quê, até isso é difícil. Nada faz sentido, mas o roteiro é tão coerente. As decisões sendo tomadas de modo impetuoso e voraz. O apetite transcende a gordura abdominal: está no excesso todo esparramado pelo apartamento, pelo coração (onde quer que ele esteja), pelos pensamentos. Grávida de possibilidades.
Eu personagem-ser-humano tive um pouco de frio e medo ontem à noite, depois do filme, mesmo com o cobertor. Agora, menos medo, menos frio – calorzinho até – mas sigo com o sentimento de estar do avesso. Estou do avesso... e tudo é tão confuso. Agarro-me às coisas concretas, como as notícias de jornal, que me dizem que pertenço de carne e osso, fluidos e surtos, a esse momento presente, a essa época, à vida presente, aos homens presentes. O avesso não é a sombra. O avesso é o avesso, o outro lado, essa bagunça toda, vizinhanças que não fazem sentido, sinônimos ajuntados de um lado e antônimos também agrupados, o que torna tudo ainda mais difícil. Um quebra-cabeça sem figuras, totalmente branco (como o da mãe de Dvir no filme Exuberante Deserto), só com encaixes. E eu não sei encaixar tudo.
Um alívio: aos poucos, me libertar da fabriqueta de bolinhos, aquela produção em série de massas fofinhas e adocicadas e tão cheias de conservantes e adicionantes e bicarbonatos e gordura trans, assepticamente acondicionadas em plastiquinhos coloridos com uma pulseirinha (ou, talvez, um chip) de brinde. Mas a saída do sistema-problema-produtividade-a-todo-custo-e-remuneração-mensal me deixou meio bêbada e meio equilibrista. Com apetite voraz. Sem papel no musical superprodução. Difícil. Tenho monólogos agora, mas nem todos têm paciência para acompanhá-los. Agora sinto que cada passo seguinte é conseqüência do passo imediatamente anterior que escolho dar. E que nada acontece conforme planejamos, o que me agrada muito e me deixa corada e sorridente.
Não agüento mais perguntas que faziam sentido antes, quando eu era bolinho querendo escapar da fôrma. Ainda quero entrar em forma, mas não desse jeito. As sinapses seguem a todo vapor, daí o suco de maracujá, seguido de café, temperado com camomila. Música de novo, caramba! Mundo, mundo, faça sentido por favor, só para aquietar meu coração – por onde quer que ele ande, pois eu não tenho nem quero ter controle. Tenho medo. Medo de ficar sem dinheiro, não pelo dinheiro, nem pela necessidade de mais livros ou roupas ou CDs ou saquinhos de Sabores da Terra de inhame ou cremes para peles sensíveis. Sem dinheiro para viver com alguma dignidade e para a realização de sonhos mais prementes e mais profundos. Mas o maior medo, o medo grande, líder dos demais, é encontrar-me novamente presa a um cotidano esquemático, superficial e frio, operando no automático por oito ou mais horas diárias de submissão e massificação. Dessa vida o que levamos? Essa calcinha esgarçada que visto hoje, por exemplo, não vai comigo à transcendência. Nem esses óculos que me caíram tão bem. Então por quê? Ficam minhas pinceladas, isso sim. E meu coração, feito cinzas (onde quer que ele esteja agora), adubando flores para novas orquídeas e folhagens de plantas preguiçosas. Me pergunto por que sou assim e não há resposta. As coisas são como são e não do jeito que cada um de nós gostaria que fosse. Simples, mas difícil.
Achei um pregador de roupas ao lado dos textos de Fernando Bonassi que tenho de estudar para o próximo encontro do grupo de teatro, “Entre Paredes” é um deles, porque é verdade que tudo chora quando é hora do choro, mas eu gostei mesmo de “Falatório” tirando palavras da minha boca: “Estão falando que animação também é sinônimo de confusão.” “Estão falando dos meus sapatos, dos meus vestidos, dos meus decotes.” “Eu fiquei em silêncio. Eles é que estão falando.” Junto estava um CD dos Beatles, faixa 9: “With a Little Help of My Friends”. Quem me entende p-o-n-h-a-o-d-e-d-o-a-q-u-i, q-u-e-j-á-v-a-i-f-e-c-h-a-r. Quem não me entende mais, porque perdeu a conexão, mesmo com banda larga, por conta de pavio curto, me respeite apenas e já ficarei feliz. E lhe acenderei uma vela, e lhe cantarei uma canção durante o banho.
Claro que dá saudade, mas as vagas são sempre limitadas, mesmo que existam muitas, e isso faz sentido.
Entre o pregador e os textos, estava um fio. Um fio comprido, comprido. Um fio que não sei o que é nem de onde vem ou para onde vai. Tenho a leve impressão que me levará a meu coração.
Então agora eu vou seguir o fio, mesmo que seja difícil. E que não faça muito sentido, sentido algum.