quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Brevidades dominicais

(problemas técnicos empurraram a postagem para quinta-feira)

1.
Dois peixes podem, sim, partilhar um aquário.
Um aquário não é o mar inteiro, que vai, vai muito, e um dia, lá longe, volta. Nem rio que já não está no mesmo lugar de antes. Mas o aquário não precisa ser necessariamente uma prisão, uma limitação: um aquário é um conjunto de espaços internos com zonas de intersecção. Tem pitadinha de mar, tem pitadinha de rio. E tem os dois peixinhos, claro.

2.
O crítico Luiz Zanin comenta o filme “A Massai Branca”, recém-estreado. Uma mulher suíça, branca, vai passar as férias no Quênia e se apaixona loucamente por um guerreiro massai, negro. A atração pelo diferente misturada ao choque de culturas. Zanin diz, sobre o “irredutível da situação”, que existe algo que incomoda a protagonista: é não saber exatamente do que trata sua compulsão. Escreve: “Ela mesma evoca uma história que conhece: um homem, um dia, está num aeroporto e sente-se impelido a invadir a pista. Depois de ser detido, a polícia lhe pergunta por que motivo havia feito aquilo. Ele se limita a dizer: ‘Tinha de fazê-lo, não havia outra alternativa.’”
Entendo perfeitamente. Não vi o filme, quero vê-lo, mas me detenho à frase.
Tinha de fazê-lo, não havia outra alternativa.
Eu não tinha outra alternativa a não ser viver a vida que estou vivendo agora. Inevitável. O medo que pairou sobre mim há alguns dias já foi chover em outros manguezais. Epifanias primaveris vieram confirmar caminhos.
Amém.

3.
Adélia Prado, com muita suavidade, pediu para entrar em casa. E trouxe seu “amor feinho” – “uma vez encontrado, como fé, não teologa mais.” Ah, que poema lindo. “Amor feinho não tem ilusão; o que ele tem é esperança.”
E o que dizer sobre aquele que começa com “eu te amo, homem”? “Aprendo, te aprendo, homem.”
“Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos para pessoa e bicho.”
“Homem meu, particular homem universal. Tudo o que não é mulher está em ti, maravilha.”
Ah.
Foi a Amiga quem conduziu Adélia no CD O Sempre Amor até minhas mãos. E foram minhas mãos que abriram caminho a meus ouvidos. E os ouvidos, ao coração.
Estava eu distraída, lavando folhas verdes claras e escuras, temperadas com laranja, azeite e sal. Estava eu picando, distraída, batata cozida, maçã e uva itália, temperadas com maionese light na falta de iogurte natural. Estava eu distraída, apoiada na pia da cozinha, entre esses sabores agridoces e os espevitados de verdume, espiando azulejos azuis, e o amor veio me fazer cosquinhas.
Eu ri.
Enquanto isso, Adélia estava lá, bonitamente falando. “Tudo o que não é mulher está em ti.” O dedo, em vez da colher, mexendo o suco de melão!
“Uma vez encontrado, o amor, como fé, não teologa mais.” Certíssimos eles dois, Adélia e o amor.

4.
A Amiga também conduziu Affonso Romano de Sant’Anna às minhas mãos. Essa Amiga...
Partilhamos, eu e a Amiga, uma tapioca salgada e uma doce numa feira do centro de São Paulo. Oásis em meio a cheiro de mijo e caixas de madeira pré-apodrecida, televisores ligados no jornal esportivo e velharias nas calçadas. Em tempos brutos, instantes delicados.
Lambuzei-me de leite condensado. Relembramos momentos mágicos naquela ilha paradisíaca, onde os sentidos se aguçaram. Era tapioca, era graviola, era tartaruga, era alemão, era moto, era pedra roliça, era golfinho e bolinho de tubarão. Mulheres de chita, nós duas. Mulheres da Lua. Na Praia do Leão. Dormindo na areia, fazendo xixi atrás da moitinha.
Voltando a Affonso Romano de Sant’Anna, poeta prosador, ele me trouxe seu Tempo de Delicadeza. Abri, assim, ao acaso: “Talvez o verdadeiro aprendizado comece quando descobrimos que certas perguntas não têm respostas, que a arte da vida não está em achar respostas, mas em trocar de perguntas, que as fundamentais são irrespondíveis, e que as perguntas são mais viscerais do que as respostas.” De acuerdo.
Bem-vindo, Affonso.


5.
As atemóias me olham com ternura. Essas flores guardam uma memória recente e colorida. Eu planejava strelitzias ou angélicas, mas as atemóias me chamaram. Gosto do que me chama. Gosto de chamas e de chamados, gosto de achados também.
Me lembrei agora, tão rapidamente, de uma memória esquecida: quando os girassóis entraram em minha casa. Morava em outro canto, mas isso não importa. Foi bonito vê-los entrando, chegando e sentando. Iluminaram por dias a sala, a vida, o olhar. Foi um pedido de perdão que resultou em respeito e carinho. Hoje, lembrança. Como o restinho de açúcar que fica no fundo da xícara.


6.
Há três semanas aterrissei em São Paulo, depois de dois meses de ausência, e achei a megalópole mais bonita. Senti de imediato os efeitos da lei Cidade Limpa e aprovei. A poluição visual era terrível e estressante. O despojamento evidenciou a feiúra? Acho que não; revelou possibilidades. E, nos recantos da minha São Paulo, me senti em casa. Reconheço espaços meus esparsos no mundo – cantinhos e caminhos da Cidade do México, de Buenos Aires, de Istambul, de Paris. Mas lar é diferente, precisa de tempo para se desenhar, se estabelecer.

Aproveitando o gancho, fiquei encantada com o arquiteto mexicano Ricardo Legorreta e sua entrevista publicada no caderno Aliás. Sensibilidade combinada com inteligência e argúcia. Além de um profundo senso de pertença à humanidade e a esse momento da história contemporânea. Suas opiniões são consistentes e, para ele, não há como discutir a arquitetura sem mencionar aspectos sociais, culturais, econômicos, humanos. Ele fala de arquitetura popular e da soberba que acomete os arquitetos de agora, que querem ser celebridades e construir para a elite – ah, Legorreta, esse mal, de arrotar peru e dedicar-se aos donos do dinheiro, atinge de dermatologistas a jornalistas, infelizmente. Comenta os shopping centers e solta frases ótimas. “Gosto de provocar os americanos quando participo nos EUA de reuniões com arquitetos. Eu lhes digo: ‘Então, vocês falam tanto de shopping centers, de elevadores panorâmicos, de sistemas de segurança, e, quando saem de férias, vão correndo para as ilhas gregas.’ Não proponho que se eliminem os shopping centers das cidades, apenas quero pensar alternativas a uma arquitetura anti-humana, de luz e temperatura controladas.” Debate também a questão do mobiliário fora de escala que é vendido para as pessoas de baixa renda, algo nada a ver com o que elas necessitam. E encerra a conversa assim: “Não creio em gênios. Creio em gente que trabalha muito. E com paixão.”


7.
Um dia, uma pessoa me disse que havia três coisas fundamentais para sobreviver no mundo de hoje: saber nadar, saber dirigir e saber falar inglês. Tsc, tsc, tsc. Eu faria outra relação: saber ouvir, saber partilhar, saber respeitar. Mas, claro, isso depende do ponto de vista.

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