sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Corações.

Depois que todos já viram e comentaram, eu que caminhava em rotas nunca antes trilhadas por mim mesma, recém-acolhida a uma Paulicéia mais limpa e mais luminosa (ao menos, para meus olhos ternos), fui, numa dessas tardes pré-primaveris, assistir ao mais recente Resnais, “Medos Privados em Lugares Públicos”. Tinha lido alguma coisa a respeito antes de decolar. Ao aterrissar, semanas e semanas depois, obviamente não me lembrava mais de nada. Assim que o vi totalmente disponível. O que tenho a dizer? Talvez um Drummond dos mais melancólicos, um Vinícius dilacerado, um Chico dolorido, uma canção de Madredeus daquelas que dão nó no peito. Impressionante.

Momentos fugazes e fundamentais em fragmentos de vida, em um dos fragmentos que compõem cada uma daquelas vidas. Fragmentos de sentimentos em algum momento da vida. Fagulhas e chispas despertadas sob uma neve implacável, numa Paris gelada, distante e difusa. É Paris, mas não importa. Os espaços externos são bonitos: alguns coloridos, outros clean, todos limpos e corretos, mas também isso não importa muito. A grande questão, no filme, passa pelos espaços internos. Pelas veias e artérias dos personagens, por suas memórias, por seus desejos e fantasias, por suas buscas, por suas fraquezas e por suas defesas. Por seus corações, portanto. Pela solidão que cada um experimenta a seu modo, a seu próprio tempo.

A implacável neve contorna a solidão dos personagens, dando-lhes disfarces e máscaras. Estão todos muito bem, muito ativos e presentes no cotidiano que desenharam. Estão, no fundo, todos muito sozinhos, melancólicos, dilacerados e doloridos. Estão todos circulando por lugares públicos numa tentativa às vezes desesperada, outras vezes muito discreta, de ocultar seus medos privados, tão privados, tão profundos. Seria bom se esses medos ficassem ocultos também para eles mesmos, para cada um deles, mas sabemos todos que é impossível. O público sempre lembra o privado de que ele, privado, existe e está ali. Em algum instante, escapa pela janela.

Nenhum dos personagens busca a coerência. Todos são incoerentes; no privado, divergem da imagem pública que convenientemente usam. No público, não são como no mais privado deles mesmos. Humanos, enfim.

Valeu, Resnais. Filmaço. Bem dirigido, bem atuado, bem iluminado, tão visceralmente verdadeiro.
É um longa-metragem para ser visto quantas vezes o coração pedir.
De tão humano, congela e esquenta. Desconfortável, acolhe nossas dores.
Depois da partilha no lugar público que é o cinema, cada qual volta à casa para ter com seus medos privados. A sós.


P.S.: Palmas ao ator Pierre Arditi, que faz o barman Lionel numa interpretação magistral, na qual menos é mais. Sensacional!

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