sexta-feira, 21 de setembro de 2007

ONTEM. COM SANTIAGO E COM JOÃO.

E ontem, então, passei a tarde com Santiago.
Na verdade, passei a tarde com Santiago e com João. O Cássio esteve ao meu lado, por uma dessas coincidências divertidas – olha só quem também veio!... –, mas ele pode ter conversado sobre outras coisas com aqueles dois.
Santiago me falou de pulsações diversas, de memória, de paixões, de vida invisível, de idiossincrasias, de intensidade.
João me falou de amadurecimento, de lapidação do olhar, também de memória, de fé, de respeito e de humanidade.
Eu? Eu fiquei quietinha, ouvindo apenas. E observando, e sentindo, e sorrindo e também chorando um pouquinho, meio disfarçada.
Já nos tempos de Santiago – quando nasceu, que não me lembro direito? 1926, pode ser? depois checo e lhes conto – havia gentes que achavam isso e aquilo, e a fabriqueta de identidades-perfeitamente-adaptáveis-a-essa-vida-dita-moderna-mas-tão-vazia já estava em pleno funcionamento. Ou seja: para ser algo (considerado algo) era preciso ser algum dos algos contemplados. E aqui não me refiro a ser rico ou ser pobre. Refiro-me a seguir o padrãozinho medíocre de previsibilidade. Na minha humilde opinião, ops, já estou falando demais, é justamente o que esse sistemão capitalista-fundamentalista baseado no espetáculo celebrity e no fetiche da mercadoria (consumam, pobres diabos, que Deus não vai ver!) quer de nós, exige de nós: previsibilidade. E Santiago, já naqueles tempos, Santiago ousado e autêntico, Santiago cujo coração sussurra alto, Santiago deu de ombros a essa previsibilidade e a todas as tonterías que possam ter lhe dito sobre isso e aquilo, aquiloutro.
Era mordomo o Santiago. Existem mordomos hoje em dia?
Mordomo, essa figura que parece tão associada à infância. Quando somos crianças, acreditamos em mordomos. Quem, adulto hoje, acredita em mordomos? Com fraque, luvas brancas, olhar austero, coluna ereta, equilibrado no metatarso da elegância (seria fraque mesmo? Sempre me confundo com esses trajes masculinos.)
Santiago era apaixonado pela aristocracia, não se importava em ser um mero servidor (no fundo, não era, especialmente em seu último emprego, como contou. Recebeu até brinde de champanhe francesa de primeira em um de seus aniversários). Era, o Santiago, italiano, argentino e brasileiro, tudo ao mesmo tempo. Era um apaixonado. Vivia de óperas e castanholas, abençoado por Madonas diversas – Giotto tão grande como Bach! – e dedicado a registrar os passos da nobreza e da aristocracia pelo mundo e pelos tempos. Tocava Bach, no silêncio da noite e da casa, da imensa casa dos pais de João, usando fraque: porque o momento exigia. Ele, o Santiago, entendia as solenidades. E tinha uma percepção tão profunda sobre a vida. A morte seria a grande partida. Ele estava só no apartamentozinho do Leblon, mas vivia acompanhado e não se sentia desamparado. Ele mantinha uma máquina de escrever na cozinha. Na cozinha! Nem João nem eu lhe perguntamos por que a máquina de escrever estava na cozinha. Santiago trabalhou na mansão de uma família argentina aristocrática que tinha muito dinheiro, mas jamais havia saído de Buenos Aires. Iam a óperas, teatros, eventos, mas nunca se arriscaram a vir ao Brasil, por exemplo. Santiago apertou a mão de tanta gente distinguida, mas foi essa gente distinguida que freqüentava a grande casa de João que teve o prazer de apertar a mão desse Santiago. Ele sabia que a expressão podia ser a mais simples para ser a mais pungente – e o balé de suas mãos demonstra isso. Um mordomo que, nas horas de trabalho, mantinha as mãos disciplinadas. E que, nas horas vagas, emprestava-as ao balé da vida. Soltas. Ou no piano. Ou nas castanholas. Ou na máquina de escrever. Fazia parte de um grupo maldito de poetas, de seres vivos – mas fiquei sem saber o porquê já que Joãozinho cortou a conversa.

João falou muito e pouco ao mesmo tempo. Foi tão sincero que me emocionou. O tempo das coisas, João. A gente nem compreende tudo de imediato. Ao ouvir Santiago, João também se deu conta de um monte de coisas. Citou Herzog, o homem-urso Herzog. Nos momentos em que deixamos o controle de lado, a necessidade do efeito (para que buscar o efeito, João? isso é tão espontâneo...), um respeito desnecessário às convenções é que a vida acontece, em gestos, palavras, olhares, posturas, suspiros, respiros. Ou simplesmente acontece, mesmo que imperceptivelmente. João gosta de cinema. Citou Ozu. Enquadramentos existenciais. Esses são os mais fortes, sabia? O close, às vezes, pode ser uma invasão desnecessária da privacidade alheia, quase um desrespeito, uma falsa idéia de proximidade. Um plano excessivamente aberto pode ser um jeito blasé e arrogante de denotar descompromisso e conotar liberdade, uma falsa idéia de liberdade. João reconheceu, para mim, como se estivesse segredando mas em voz alta, que aprendeu muito com Santiago. Idiossincrasias à parte, foi influenciado pela intensidade de vida, pela autenticidade, pela imprevisibilidade, pela paixão de Santiago. Mais agora que antes, quando era menino ou adolescente ou jovem. Ou em 1992, quando visitou Santiago. João também queria ter dado um abraço em Santiago. Queria ter sido mais desprendido, menos controlador, menos contido.

O tempo das coisas, João. O tempo das coisas.

Eu queria agradecer ao João por me ter apresentado ao Santiago. Queria acompanhar Santiago no balé das mãos, mas ele já fez sua grande partida. Resta-me mandar um beijo grande ao João, desejando-lhe sorte, sempre. E sensibilidade. Não pode ser coincidência ver a folha de árvore cair duas vezes no mesmo lugar, acompanhada de um casal de folhas (poderia ser uma dupla, mas eu vi um casal). Isso foi um presente, João.
E agora estou com saudade de Santiago.

2 comentários:

Anônimo disse...

Um belíssimo filme merece um texto inspirado como esse. Parabéns. E obrigado por dividir com a gente a sua sensibilidade. O mundo agradece.
Beijos pra você, flor!

Débora Didonê disse...

Também quis abraçar Santiago. O filme me causou inspiração, com a riqueza de viver desse homem, e melancolia, por sua fragilidade - e a qual estamos todos expostos. A vida é frágil, viver é frágil. Se não percebemos essas minúcias, elas passam. João pôde resgatá-las de alguma forma e soube como guardá-las bem, no imáginário de cada espectador. O João de hoje vê diferente, com a ajuda de Santiago. Ele vê mais bonito, ele vê sentindo. A dor de não poder abraçar Santiago, ninguém encerra. Mas desperta (pelo menos em mim) a necessidade de um olhar mais atento para a beleza frágil de viver.