quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

* cacto *

E, quando o efeito passou, não se sabe bem se pela manhã bem cedinho ou perto da hora do almoço, ouviu-se um ca-ta-bum tão discreto que nem parecia som. Um acorde perdido entre espanto e barulho de passos, canto de pássaros e fechaduras de passagens. Quando o efeito passou, ela virou mulher e ele voltou a ser menino. Ambos se olharam e, por fim, se viram. Enxergaram-se, ainda que previssem o susto. O desencanto. O deslocamento. O descompasso. O pequeno fio de abismo entre eles se transformou num penhasco de grandes proporções. Dez anos passaram num segundo – envelhecendo-a, rejuvenescendo-o, afastando-os.

Você dirá que, segundo a alma etc., segundo o coração etc., citará frases bonitas que justifiquem seu pensamento etc., mas você nem imagina. Você acha muitas coisas, porém, talvez, agora seja mais adequado manter o silêncio. Ou melhor: não intervenha nesse silêncio que se formou entre aqueles dois.

Não houve reencontro depois que o efeito passou. Ambos se desencontraram. De verdade. Desencontraram-se. Olhavam-se, mas não se viam mais. Ele via uma mulher mais velha. Ela via um garoto mais novo. Qualquer possibilidade entre eles parecia agora absurda, obscena, nada factível.

Ali, naquela praça, ela seguiu para a esquerda sem olhar para trás, apenas para dentro. Ele tomou a direita, também sem olhar para trás, somente para dentro. O choque, um ruído afetivo. Uma raiva miúda e repentina. Nó na garganta, um quase engasgo. Depois, a falta. A ausência, o vazio. Aquele pequeno vazio que sobrevive agudo como um pequeno cacto doméstico nos espaços interiores, mais íntimos, por anos a fio.

sábado, 11 de dezembro de 2010

meias

Se nós fôssemos palavras escritas com uma velha máquina de escrever, ele seria um borrão. Um “b” encharcado de tinta, as teclas “bo” batidas ao mesmo tempo, espatifadas na folha de papel, manchando o espaço entre as outras letras. Se nós fôssemos borboletas, ele seria uma mosca na parede – uma mosca displicentemente esmagada na parede. Se nós fôssemos dias, ele seria aquele mais nublado e cinzento, com chuvas encardidas e ventos gelados.

Em meio a tanta falta de cor, à insipidez de suas calças marrons e de seus suéteres pretos, à voz grave e indefinida, aos olhos caídos e desiludidos, lá estavam elas ousadas e pueris: suas meias coloridas. Cinza, marrom, negro, opaco, apagado, estático – todo um contraste com a alegria marota, com a bossa de suas meias. E ele fazia questão de misturar os pares, de ousar combinações. Por meio de suas meias, ele vivia a ousadia que lhe faltava no cotidiano, a coragem, a picardia, sua verdadeira revolução. Mas ainda que insistissem em carregá-lo para horizontes impensados, ele resistia. Ele resistia.

Se fôssemos, diante de seus olhos, homem e mulher, poderíamos viver o clichê de uma história de amor ou então partilharmos caminhos trôpegos traçados pela combinação entre pés viajantes e meias coloridas. Se fôssemos. Se um encontro fosse possível, ele não estaria tão cinzento, tão escuro, tão borrado. Ele seria uma mosca ressuscitada e tornada vagalume ou abelha. Mas ele preferia os desencontros, os lapsos, os abismos. E se escondia nas meias coloridas, quando sentia que correnteza da vida podia ser demasiado forte ou quando suas pernas teimavam em levá-lo de e para os mesmos lugares de sempre.