quarta-feira, 21 de maio de 2008

Natividade

Ao doce Q., querido, querido


Quando o olhei de perfil, imediatamente notei os cílios longos e escuros. Um homem de cílios longos. Embora no início dos seus 20 anos, é surpreendentemente maduro. Podia ser rapaz, um rapaz de cílios longos, mas jamais garoto, como muitos que ainda engatinham no aprendizado da apreensão do mundo e das pessoas.

Já sinto saudade desses cílios longos, que acariciam o mundo que os olhos enxergam. Mundo de opressão, mundo de ocupação, mundo de conflito, mundo de dilemas e problemas. Mas os cílios.
Esses cílios seus.

Observo os detalhes, os dentes que escapam da arcada, conferindo charme ao sorriso largo e sincero. Os ombros estreitos, os braços finos. Cigarro. Algum gel no cabelo liso e negro. Como os olhos, as sombrancelhas, os começos de barba. Ah, esses cílios longos, esse sorriso.

Estou no início de minha navegação. Ilha Desconhecida ainda ensaia suas despedidas da baía primeira, embora já em alto mar, trata-se apenas do começo. Coração muito elástico de desejos e sonhos, mas miudinho pelo início do parto de mim mesma. Sem expectativas quanto a, pois o tempo é curto e o movimento, necessário. Mas a epifania.
O sorriso.
E os cílios longos.

Quebrando regras e muros, os dois.

Conexão imediata. Meus olhos estavam num outro olhar, na verdade, olhar cor de mel na tez morena. Enigmático esse. Porém, foram os olhos de cílios longos que me acharam e fizeram cócegas no meu olhar a fim de chamar-lhe a atenção. E meus olhos curiosos, lacrimosos naquele dia por tantas sentimentalidades, ficaram encantados.

E aqui estou eu, uma década de vida na frente, mas tão presente nesses olhos de cílios lindos e longos que confortam, acariciam e me reconhecem como uma pessoa -- inteira, faceira e primeira.

domingo, 11 de maio de 2008

Um grande sertão

Petra, Jordânia, 2007 (MF)

Lóri Capitu sai em nova jornada, desta vez longa, bem mais longa que as anteriores. "Antes precisava tocar o mundo, antes precisava tocar a si própria".
Este blog será alimentado muito esporadicamente... mas, para não se sentir abandonado e só, você pode acompanhar as aventuras de Meryem viajante em http://www.mundodemeryem.blogspot.com/.

E la nave va...

HUMUS

Bandeiras doloridas
E a coragem do não.
Sempre será cedo
Para adormecer o grande sonho.
Olhares.
Adeuses aliviados
Às guerras de trincheiras,
Agora mandam as batalhas diárias
De um tiro só.
Tudo se dilui.
Tudo... — o quê?
O vento leva meus cadernos
E revolve os fios grisalhos
Da jovem senhora.
Delírios.
O avesso dos tortos descaminhos,
Mil ruídos, mil ruínas.
A garotinha
E seu irmão
Caminham rumo à névoa
Ainda marcada pela claridade.


* O duplo sentido do título: alimento de qualquer jeito, meu sabor nos próximos 30 dias.

BRILUZ

Estupefata,
agarro-me a alguns cipós
aparentemente frágeis.
Quem serei eu, como seremos, e o mundo,
e a vida
daqui pra frente?
Bem, não passo em branco:
recolho pequenas epifanias por aí.
Sempre à luz das quatro horas da tarde.

Venha ver o pôr-do-sol

Tel-Aviv, Israel, 2007 (MF)


Selçuk, Turquia, 2007 (MF)

Mais uma jornada, mais uma travessia, mais oportunidades de seguir o sol, aonde quer que ele vá. Sou Lóri Girassol, Meryem viajante!

quinta-feira, 8 de maio de 2008

SENSATEZ

O prato com as cascas de uvas
Chupadas, deliciosamente chupadas
Uma a uma,
Estava ao lado das almofadas.
Da sala, vinha o som de um CD de Nina Simone
E a tarde era de um lilás ainda róseo,
porém quase azul.
Sonhava em pé,
Ninava-se,
Não se continha.
Ele, ele, ele...
Criava preocupações:
louça por lavar,
segunda-feira de trabalho,
contas a pagar,
um mundo onde só existissem homens comprometidos
versus mulheres celibatárias
digladiando-se, destruindo-se
– e ela seria, mais uma vez, destruída.
Ponto para os homens.
Mas, droga, não fugia!
Preocupava-se à toa: impossível,
Não se continha.
Era ele, ele, ele,
Ele vinha –
Destruía seus mais íntimos ressentimentos
E instalava-se em seu corpo, em seus poros,
Ocupava todos os seus suspiros.
Teve fome.
– A tarde mais azul
Que as uvas lilases. –
Catava os grãos esquecidos, perdidos
E os chupava, constrangida, como
Se pedisse perdão às almofadas:
Sou até mais macia que vocês.
Ele, ele, e ele?
O CD tocava à exaustão, na tentativa de reproduzir
Um som que não viria do mundo, ao menos hoje:
I love you, I love you so much...
Acordes mais altos, era sinal de noite,
Rolava pelo tapete da sala.
Apagou as luzes, mas a vida brilhava em si.
Seus lábios com sabor de uva
Murmuravam algo.
Entregou-se, cansada da fuga.
Dançava com ele, ele, ele.
Derretia-se, descascava-se,
Fazia amor, fazia calor.
Abria as janelas, suava,
Gozava.
Ele, ele, ele.
E quando ele ligou,
Era ele, dizia o celular,
Ela não atendeu – como se quisesse
Prolongar aquele prazer todo
Infinitamente, indefinidamente.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

adeus

É tempo de travessia, eu sei. Travessia no sentido mais pessoal e mais Pessoa do termo. Mas não contenho as lágrimas. Olho para meu quarto bagunçado, para o meu cotidiano espalhado sobre a cama, o carpete, a mesa do computador. A estante em desordem, o armário quase ajeitado, meus espaços, meus tão reconhecidos e conhecidos espaços, e as lágrimas pedindo liberdade dos meus olhos. Queremos escorrer até a alma, me suplicam.
Fique, você poderia dizer. Você até diz. De um jeito ou de outro, escuto você falar. Mesmo que nem se dê conta. Eu também quero ficar. Mas igualmente quero ir.
Parece simples. Outros foram antes de mim: cursos longos de inglês, round-the-world trip em casal, turismo de bicicleta, amigo morando em Paris, amiga que acabou de voltar da Austrália, outra que ficou dois anos fora e eu a acompanhei ao aeroporto. Diante de todos eles, tanto você quanto eu tínhamos a certeza do retorno. Mas... e eu? Por que eu não tenho tal certeza?
O frio lá de fora parece um frio imenso e universal. Um frio que me coloca no aconchego do lar. Meu lar. Eu, você, nós, todos juntos. Mas meu bote está na margem e me espera, o bote que eu construí, no qual pus todo meu empenho e minha motivação. E agora tenho medo de subir nele. Tenho medo de me sentir só. De estar no meio da travessia, do rio, correntes, ventanias, e me sentir só. Sem você, sem ela, sem ele. Você sabe disso.
Do outro lado da margem, nenhuma expectativa. Como você atravessa um rio sem esperar nada? Não sei, mas assim ocorre. Sinto apenas que devo atravessar. Estarei à minha espera lá do outro lado. Não sei se caberei nas antigas roupas. Se o armário será ainda aquele meu armário. Se você será você, se nós nos reconheceremos de novo.
Mas há um rio. O rio tem duas margens. O rio leva ao mar.
Talvez nosso medo, o meu e o seu, seja o de que eu jamais retorne à primeira margem. Que eu me encante de tal forma que siga direto para o mar.
Anteontem machuquei o dedo, o polegar esquerdo. Fiz um corte. Saiu sangue. Pingou no chão, doeu. Carregarei a pequena cicatriz comigo. Pois então. A gente sabe que, se eu for, quando eu for, preciso ir inteira e levar meu coração. Você vai nele, é claro. Mas ele vai comigo, meu coração vai todo comigo. Por isso também choro, de saudade, de carinho, de não poder expressar meu afeto com meus braços. De olhar, desde o bote, e vê-los na margem primeira. De ter de fazer o périplo para voltar.
Por que você não fica?, uma última tentativa.
Porque, se eu não atravessar, jamais saberei quem sou de verdade! Mas, acredite, não é fácil. Não é fácil. Não quero ser só forte agora, quero ser corajosa. E permitir que venham todos os choros, todas os cansaços, todos os enjôos, todos os suores. Porque sei que vão passar.
Você vai me acompanhar, não é?