sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

fitinhas

Tinha um restinho de paixão entre os dentes
O corpo, o cotovelo, o calcanhar ainda indolentes

Tinha um pouco de chita ainda na saia de seda
Um pouco de sede, de medo, o escuro da queda

Tinha esse jeito solar tão lunar tão cheio de intensos
Viciada em suores, em toques, em cheiros de incensos

Amava sotaques, sonhadores, sem disfarces
Esparramava-se marota entre os Zeus e os Martes

Tinha, tinha, tinha um desejo grande de enrolar-se
Enrolar-se na rede, nos braços, nos amassos, nos cachos

-- regozijar-se

Havia um tanto de felicidade no canto dos olhos
Um encanto no encontro, um espiar entre os ferrolhos

Havia um mar, um mapa, um céu e uma descoberta.
Entre ela, ele, o coração e aquilo tudo: pré-amor, na certa.

Tinha, tato, fitinha, fato: olha, olha, aqui, vem,
tem, sente, sabe, achado, achegue-se. Laço, gata, gato.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

#Florescência

Acordou um dia e levou um susto. Estava num desses casarões antigos, de janelas imensas e assoalho de madeira, teto descascado, armários imponentes e penteadeiras de espelhos avultados. Havia até banheira, daquelas quase-piscinas, no banheiro comprido, de azulejos brancos e piso de lajotinhas vermelhas. Mas o verdadeiro susto veio antes do reconhecimento da casa: acordou e se viu numa cama de casal. E com dois homens. Dois! Ela continuava ela mesma – a camisolinha surrada, o cabelo fino arrepiado, as pintas na face corada, o calinho no quarto dedo do pé esquerdo. Mas havia dois homens na cama, um de cada lado. Dois roncos diferentes. Um de pijama e um nu. Um de cachinhos e outro de cavanhaque. Um pernambucano e outro mineiro. Estava estupefata. Não era o som das buzinas e das construções paulistanas que ecoava lá fora. O canto da Bahia entrava pelas frestas das portas coloridas e altas, pelo quintal com as galinhas, pela cozinha onde o cheiro de café perfumava a mesa azul, coberta pela toalha de renda e um vaso de lírios de plástico. Dois homens! Tinha perfume de loção pós-barba no travesseiro. Sondou o próprio corpo e encontrou os ares típicos de uma noite de sexo. Com quem?, agoniou-se na sensualidade típica de mulher satisfeita, ai. Viu na mão esquerda uma aliança. Oh, meu Deus! Virei dona Flor!, gritou para si mesma, em silêncio. E logo sentiu um calafrio daqueles dos bons, que atiçam o corpo e endoidam a cabeça. Eram os dedos marotos do pernambucano deslizando por sua coxa. Ui!


(continua)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

#imperfeições


e quanto mais fundo vai o mergulho, mais imperfeita me apareço. me apeteço, mas me assusto, não me reconheço atrás do verniz antigo, me assusto, me espanto, me encanto, são bonitas essas minhas qualidades, e me desencanto, são tantos esses meus defeitos, deserdo-me, recompenso-me, e sempre mais imperfeita, por que tantas manchas, por que tantos pontos obscuros, quase perco a respiração mais fundo mais fundo mais fundo uma quase embolia, agonia, quero subir, tão imperfeita eu, mais que imperfeita, suspeita de mim mesma, estremeço, oh, de fato não me reconheço, suspiro, piro, não tem tinta mais nem verniz, só eu eu eu


tosh tosh tosh
o barulho dos anjos fazendo amor nas nuvens


tosh tosh tosh
eu digo a ele: carregue esse beijo que não dei em tantos, beijo-o em você


tosh tosh tosh
uma mulher bonita me olha atônita no reflexo! desvaneço, recomeço


tosh tosh tosh
tóxica imperfeitamente tóxica e bela muito bela


tosh tosh tosh
eu eu eu subo dos profundos rincões de mim mesma tão suja e escrota quanto ele sujo e escroto escatológico mas somos ambos seres humanos confusos de tanta dor de sermos humanos seres confusos


quanto mais me limpo me sujo, quanto mais me aperfeiçoo me atormento de imperfeições. nua, totalmente nua, e cheia de pintas, e estrias, e vincos, e poros, e pelos, e pontos de interrogação. belamente nua, e cheia de pintas, e estrias, e vincos, e poros, e pelos, e pontos de exclamação na alma.

viver é perigoso porque dói! dói! e nos extasia loucamente de sabedorias.

quero mergulhar de novo. sempre.
nem que isso signifique nova queda de meu próprio céu.

a mim e ao V.,
duas faces diversas da mesma dor de ser gente

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

desertora

Meu carnaval não teve tantas serpentinas, embora algumas frágeis cordas de papel tivessem roçado meu braço, meu rosto, minha cintura enquanto maracatus e batucadas ecoavam esquinas abaixo, ladeiras acima. Confetes sim, aos montes, nos chãos, nos sorrisos, nas vontades e nos olhares plenos de pura picardia. Meu carnaval não foi sóbrio nem bêbado. Não saiu da linha, embora eu dançasse, dançasse muito, eu pulasse, pulasse muito. Tinha um não-sei-quê que me tirava de lá, ainda que lá eu sempre estivesse, ouvindo Zé Ramalho, rindo da baderna alheia, suando meu vestido de chita, abrindo os braços de felicidade de tamanha liberdade. Mas algo me tirava dali, das serpentinas, das buzinas estridentes daquela displicência comportamental típica do carnaval, em que todos são de todos e tudo é mais que tudo. Na minha habitual solidão de indivíduo, fui tirada da arruaça e fiquei no balanço do jardinzinho de meu coração, tuc-tuc, toc-tão, cansado dos truques carnavalescos do bem-viver, do bem-querer. Não me movi de mim – estive onde sempre estou – e foi isso que me levou embora de lá, ainda que meu riso fosse bem ouvido e meus passos marcassem o asfalto de todas as gentes. Sem serpentinas, sem cordões, sem cordas, sem grilhões e sem querer ser apenas um ser entre tantos, tantos, tantos outros com lábios e corpos, sem pudores ou humores. Sem querer, então, laialaiá, fiquei no bloco dos desertores.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Dia de clown



Tudo parecia uma brincadeira,
Ou, talvez, um exercício sem maiores conseqüências.
Liberdade demais, disponibilidade demais.
Corpo vivo, braços vivos, alma viva,
Mas pés plantados no chão.
Andando pelo espaço!
Agora você tem uma cor, uma forma,
Um preenchimento – vapor, água gelada,
Vento, fogo, areia, pedra, barro.
Sonho, muito sonho.
Desejo? Dúvida? Dádiva?
Sentia lagarta virando borboleta
Dentro de um casulo que não era meu,
Que não era eu.
Era ele? Quem era ele?
Olho-azul-cabelinhos-de-anjo-negros.
Ponha o nariz e sinta o cheiro do mundo
O cheiro da vida
Deixe vir à tona sua sombra e sua luz
E vire do avesso diante da plateia.
A plateia...
A plateia éramos nós
–E eu, sem saber, estava do avesso,
Já completamente entregue.
Ele ainda anjinho de cabelos negros:
Vou até o paraíso,
Aqui eu desço, vinho, você.
Não importava nem a forma nem a cor,
Só o preenchimento:
Tudo, tudo o que estava dentro.
Medo a princípio:
Quem era ele? Quem seria eu?
E na sobriedade daquela madrugada,
Quando o táxi chegou,
Nada tinha sido exatamente consumado,
Mas tudo havia se apresentado.


E eu já voava pelo espaço
Sem que ele me pedisse nada.

(2006)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Era uma vez

ao Bico


Criancei-me novamente antes de me jogar no Bocó. As águas esverdeadas não se embarreavam nem com a chuvarada que caía sem parar – porque os rios da infância nunca mudam de cor. Via jacaré no tronco lascado, via cobra na folha enrolada, via eu mesmo de sorriso no rosto, marca de pernilongo na perna e muco no nariz que bem sabia respirar. Cada salto era uma grande novidade, a aventura de abraçar as águas que queriam me ninar. Tinha perigo de sanguessuga, a garotada falava em cobra, tia Senhorinha dizia: menino, acabou de comer mingau de banana com farinha... Mas eu estava lá, bocoiando no Bocó, bocoiando-me eu também, pois na aparente bobagem de criança a gente sempre é mais que sábio. Daí todo mundo ia se secar lá na praça, o pé grosso de barro, a camisa pingando de alegria, vontade de comer jaca e jogar futebol no time do Paulão. Sabia que no outro dia de sol o ribeirão estaria lá.

Mas podia ser que não.
Porque era uma vez um projeto de barragem, dessas de gerar energia para os monstros-indústrias, que queria inundar tudo, mandar a gente embora e acabar com o Bocó. Pra sempre.