Ela era a mulher da saia rodada e florida, do sorriso no rosto, do belo buquê de gérberas cor de rosa nas mãos em pleno lusco-fusco. Era ela.
segunda-feira, 25 de janeiro de 2010
Eu me encontrava no nono andar de um bairro sem grandes encantos na megalópole chuvosa, febril, agitada, estressada. Reverberante, regurgitante. Cercada de luzes escuras. Eu sentia um pouco de azia, eu sentia muita solidão.
Atividades mil, o país daqui, o país de lá, são décadas de tantas vivências. Nele, cabem vida e meia minhas.
Nas minhas ingênuas fantasias, era eu a única indisponível. E, quando finalmente corrigisse essa trava gigante em minha entrega, viveria a mais verdadeira das experiências amorosas – sem romantismo, sem inocência. A narrativa mais honesta.
Porque assim eu não só seria achável como possível.
Porque, por fim, atracaria minha caravela.
Mas, subitamente, ao me ver disponível e – por isso – vulnerável, encontrei um mundo ainda mais complexo e difícil: eles eram também todos indisponíveis e quase improváveis.
Mas ele? E ele?
Ele me vê?
sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
( )

Eis que abri a porta
Daquele quartinho escuro
E, no meio da bagunça,
– quanta bagunça um ser humano pode juntar! –
Encontrei um pacote de cartas,
De cartas que não mandei.
Hoje em dia alguém manda cartas?
Não sei.
E olha que não sou tão velha assim. Estou
Naquele momento da vida
Que nos deixa com um pé lá e outro cá,
Ainda tão jovem mas já tão adulta
Curvada de responsabilidades
Ainda tão cheia de suor e desejos (quantos desejos).
As cartas me olharam desconfiadas,
Matutas de tudo, experientes,
Acostumadas:
Se é para nos abandonar mais uma vez
Que vá embora e nos deixe em paz.
Em paz?
Quem ficaria em paz?
Não tive coragem a princípio
De redescobri-las
Todo início
É difícil e o quarto estava escuro
Não achei as luzes, sempre entro lá e não
Encontro o interruptor
E eu estava apressada, mas curiosa e
Agitada
Medrosa –
É, eu tinha medo
Uma por uma eu li
As cartas que não mandei
Reconheci velhos sentimentos
Duvidei de certas afirmações
Transformei interrogações em vírgulas
E duvidei que eu seria o resultado
De todas aquelas cartas não-enviadas
Não poderia ser,
Mas era.
Pensava que era outra, como se
Tivesse mandado as cartas todas
Sim, vivi tanto tempo achando que eu era
Aquela que tinha mandado todas as cartas
As cartas todas, toscas ou não,
E não era.
Tinha abandonado as cartas
Um monte de certezas, um monte de dúvidas
Muita coisa a ser dita do fundo do coração
E também cobranças vazias, acusações hoje sem nexo
Tudo era tão eu
Me reconhecia tão inteiramente e
Por que fiquei tanto tempo longe
Das cartas que não mandei,
Ou por que elas não ficaram de uma vez por
todas longe de mim?
Quanto tempo
Não sei, mas
Eis que fechei a porta de um quarto
Pouco escuro,
Do mais iluminado de todos os cômodos
Naquele momento.
sexta-feira, 23 de outubro de 2009
conjugação
Tu me esqueces
Nós nos esquecemos
-- sou a melhor aluna da classe, mas apenas finjo aprender.
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
saudade, meu negócio é cantar.
domingo, 4 de outubro de 2009
retrato em sépia
Quando meu sofá saiu de seu lugar de sempre, rumo à casa de uma nova dona bem longe de mim, chorei. Naquele dia, chorei mesmo. Menos pelo sofá em si, também por ele, mas a constatação do vazio na sala ecoou cá dentro. Como que se a mudança se anunciasse concreta, inadiável, de algum modo irreversível. Ora, eu já vinha me preparando há tempos para a despedida gradativa dos móveis, do espaço outrora ocupado, de um certo estilo de vida. Mas o primeiro passo, o primeiro ato, o primeiro teste me trouxeram um ar fresco e forte de pura realidade. Um susto, um corte inesperado, algum sangramento. Era e ponto. Ou melhor, foi.
Assistindo a “Caos Calmo” me dei conta: meu sofrimento fragmentado de 2009 advém de um luto. Sim, estou vivendo um luto simbólico. Porque voltei e não encontrei mais meu sofá (o metafórico). Porque voltei e reconheci o vazio deixado por ele. Porque me desapeguei totalmente dele (não sinto mais sua falta). Porque a mudança já se instalou de modo inevitável. E, porque, abismada, não encontrei palavras decentes para dizer que eu não tinha nada a ver com aquela imagem minha mantida à revelia no freezer. Que pessoas não podem ser guardadas congeladas a fim de que não mudem depois de experiências tão instigantes. Não descongelam e aí ficam iguaizinhas a antes, não. Que há coisas que desgrudam da gente no meio do caminho porque não fazem mais sentido. Outras são deixadas propositalmente, pois não se encaixam mais no presente rumo ao futuro, como o sofá. Desapegar é duro e dolorido, mas isso nos torna ainda mais próximos do que somos de fato. E o mais difícil é desapegar da gente e da imagem do outro que carregamos em nosso bem-querer.
Meu luto simbólico vem sendo povoado de respiros, por isso foi tão complicado identificá-lo. Vivi outros lutos antes: o luto pela morte de meu pai, meu luto pós-cirúrgico, meu luto pós-demissionário, o luto breve – e belamente grávido – pela morte daquela que eu era no início de grande e mítica jornada. Mas esse luto de agora é capcioso, pois vivo as perdas dos outros quanto a mim. Passo por um luto que é meu, me pertence, mas envolve também os pedaços de mim que ficaram com os outros e que são chorados por eles (mas não são mais meus). Como que se me devolvessem roupas doadas, já tão justas, a fim de que eu volte a ser quem era antes, cabendo nelas de algum jeito. Já falei disso, não é? Essa repetição faz parte do processo.
Ando num caos calmo, como o Pietro do filme. Tenho meu banco de praça e minhas viagens. Já passei pelo período mais complicado, o da raiva seguida pela depressão. Agora, aos poucos, caminho para a aceitação. Também não sou mais aquela do início do luto. Não choro mais pelo sofá – hoje eu nem teria um outro. Mas sua lembrança me conforta nessas noites esquisitas de primavera, em que às vezes o frio da ausência quer chamar mais atenção que o natural brotar das flores. Jamais poderia ter empreendido a jornada mítica com o sofá a tiracolo. Assim como não posso seguir adiante, neste momento, carregando determinada bagagem de sentimentos, relacionamentos e posturas. Que se eternizem num belo retrato em sépia.
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
estranha
Ela voltou depois de anos. Ninguém se deu conta da partida, a princípio. Aos poucos, uma lembrança embaçada de seu sorriso ou de suas falas inflamadas, ou ainda de seu ar de camponesa robusta, ou de seus suspiros alargados, uma lembrança assinzinha, vinda à toa, trazia saudade, um olhar naqueles que estavam online na lista de “ao redor”, uma vontadezinha de estar junto. Mas não havia tempo, nunca havia. E ela já estava longe, distante de verdade, dissolvida nas esperanças e nos sonhos acumulados rotas afora e adentro, misturada a eles.
Ela voltou depois de anos. Não buscou reconhecimento nem foi reconhecida de imediato. Não reconheceu muita coisa, mas os fragmentos de vivências antigas retornaram com uma força gigantesca e atemporal. Seus pés a levaram a caminhos antigos e já disformes. Reencontros vieram. Antigos-novos, novos-antigos. E lhe perguntavam por quê, por quê, pois mesmo com os anos as pessoas não se conformavam com as dúvidas irrespondidas, razões rachadas. Mas e eu, e eu, falavam aflitos e afoitos, descreviam o susto, a decepção, a dúvida, o conformismo. Ela se calava atenta, surpreendendo-se com o outro que era o Outro, deliciando-se com suas novidades imperceptíveis muito além dos discursos de “que fiz isso, que fiz aquilo”. A ela não lhes interessava contar o que fizera nem escutar o relato pré-cozido daqueles que a reviam. Queria desfrutar desse desconhecido que brotava em cada conhecido, ainda que lhe cobrassem: “por que não me disse nada”.
Ela voltou depois de anos. Trazia o mesmo corpo, mas tinha um filho. Como ninguém notou, ninguém soube. Voltou depois de anos com novas sabedorias. Sabia cozinhar especialidades, dançar diferentes bailes, captava imagens cotidianas com outro apuro e um afeto mais refinado. Mas ninguém notou exatamente, ninguém logrou perceber. Ela voltou depois de anos, acompanhada de novas gentes dentro de si, mais pintas, mais cicatrizes, mais azia, mais alegria. Porém, ninguém notou, só prestavam atenção no cabelo que continuava igual, nas rugas que não aumentavam – sortuda! –, nos joelhos que permaneciam meio escuros.
Você não mudou nada, disseram. Foi como se não tivesse ido.
E quando ela partiu de novo, então, deram graças a Deus por não ter que suportar um pouco mais aquela chata ingrata, provocadora, uma verdadeira estranha.
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
IRREMEDIÁVEL
Eu ficava encontrando novos modos de me despedir de você, embora não os buscasse. Como se todas essas palavras ou esses tons de voz já estivessem cá dentro, querendo urgentemente sair.
Não me importava não nos reconhecer de pronto. A mim, a você. Sou adicta da mudança, do movimento, creio no leva-e-traz das ondas da vida. Seu sorriso, seu afeto. Você me preparou uma redoma linda e terna, aconchegante e arejada: mas redoma.
Eu ficava me deparando com posturas minhas em desuso, como se os pacotes de roupas velhas e apertadas voltassem inesperadamente aos meus armários. Você os jogava aqui dentro, de novo. Você queria me reconhecer de todos os jeitos, me devolver os fios de cabelo já perdidos, queria recuperar uma face minha que antes lhe era tão familiar. Nos doíamos, então, pelo improvável da situação. Eu me sentia mutilada. Você... lhe dilacerava o abandono.
Quem somos hoje?
Você me cercava de todos os jeitos – absorvendo meus amigos, os mais próximos, os menos próximos, como se sugasse deles o sangue que queria ter de mim. Você tentava reaproximar-se com pequenos caramelos displicentemente postos num caminho, no seu caminho, nos ladrilhos que me levariam a você. Quando virei para outro lado, o susto, a incompreensão, a mortificação.
Hoje, não sei, não tenho respostas.
Você está onde esteve sempre e nesse lugar não estou eu – já faz tempo.
Eu ando em dimensões impalpáveis de mim mesma e, mesmo que você não tivesse tanto apego, talvez não conseguisse me alcançar por lá. Porque esse espaço é muito íntimo e muito particular, uma necessidade muito minha, que quase você não entendia.
Eu ficava desenhando maneiras de lhe dizer tudo isso com a melhor voz e o jeito mais doce, porém as mensagens ganham vida à nossa revelia. E então, e então.
(Desculpe, sujei de barro a beiradinha da calçada.)
terça-feira, 8 de setembro de 2009
FIM
“Aos sete de setembro de 2009, às 23h17, constatou-se que o relacionamento da srta. X e da cidade de São Paulo estava definitivamente terminado. Ambas, diante dos presentes, confirmaram a disposição para estabelecer uma relação mútua de amizade, respeito e desapego. As duas disseram que o estranhamento inicial, espinhoso e dolorido, ocorrido no início deste ano, não voltou a acontecer. E que nos últimos dias comprovou-se a possibilidade de uma coexistência pacífica entre elas, situação que São Paulo afirmou garantir até a srta. X encontrar um novo lugar para se estabelecer. São Paulo se revelou acolhedora e a srta. X, compreensiva. A principal causa da separação, alegaram, foi a constatação de que as duas já não coincidiam mais em propostas de vida, possibilidades de atuação, buscas espirituais e premissas ideológicas. São Paulo alega não poder oferecer à Srta. X mais do que já lhe proporciona. Infelizmente, ressalta, não pode arejar-se mais, preservar-se mais, possibilitar mais fluxo físico ou humano. E a srta. X diz sentir-se oprimida pelo excessivo concreto das construções, das almas e das circunstâncias. Acolhidos os argumentos, reconhecido o afeto ainda existente entre as duas e a ausência de agressão de qualquer uma das partes, ciente de minha atribuição, declaro findo o relacionamento. A srta. X está livre para envolver-se com qualquer outra cidade ou lugar a partir deste instante.”
domingo, 30 de agosto de 2009
Uma canção para D, a desconhecida, e para I, a russa
As 17h e alguns minutos desse sábado 29 de agosto foram diferentes. A luz – havia algo com a luz do sol, incisiva diante da poluição e dos vidros espelhados. A luz estava mais densa e mais vermelha que a habitual. A luz sangrava? Da cobertura do edifício do Sesc Paulista, onde funciona um café, eu tentava desvendar os segredos daquela tarde, dessa cidade, de um fragmento de vida. No mesmo momento, bem próximo a mim, um outro fragmento de vida se dissipava. Havia um garotinho sozinho ao lado do binóculo. Por algum motivo sua avó correu para a esquerda, seu pai já tinha ido antes. Por que deixaram o menino sozinho?
Permaneci mais um instante – que pareceu longo e indefinido – absorta nas reflexões diante da megalópole austera e reluzente que eu via desde o balcão daquele café. Quem sou eu para ela? Que significados meus essa cidade guarda? Um dia decifrarei seus segredos incrustados em minha pessoa? Intrigada por algum sentimento alheio, porém, virei a cabeça para trás. Minha amiga Michelle me buscava com os olhos, tremendo de susto. Nos abraçamos.

Agora imagino D.
D. vestiu sua blusa listada e uma calça escura. Miúda, descendente de orientais, embora de meia idade, parecia mais jovem. Ajeitou os cabelos, que chegavam quase no ombro. Naquele sábado, D. saiu de casa com uma certeza. Essa certeza não lhe fazia nem mais nem menos feliz, apenas tranquila. Tornava o fardo mais suave. Talvez tenha até sentido um agradável bem-estar com a morna luz da tarde, enquanto caminhava rumo ao prédio do Sesc Paulista. Talvez tenha notado o casal de adolescentes que sorria numa cumplicidade marota. Talvez tenha notado a moça de bolsa imensa e salto agulha. Talvez tenha notado o homem acanhado de ar cansado. O rapaz com a camisa do São Paulo. As duas senhoras de xale. Talvez.
Talvez, pela primeira vez em muito tempo, D. tenha conseguido enxergar a vida que se passava a seu redor. E tenha sentido esperança. Acolhimento. Pertença. Talvez D. tenha ficado na dúvida quando subiu ao 14° andar do Sesc Paulista. Quando cruzou com a moça de óculos de hastes vermelhas, absorta diante do fragmento de horizonte. Quando pediu seu café para a simpática garota do atendimento. Quando viu aquele jovem pai com seu garotinho, paparicados os dois pela avó. Mas D. tinha sua certeza e, naquele sábado de luz avermelhada, sua certeza lhe fazia bem. Que sentimento gentil, meu Deus, depois de angústias intermináveis. A certeza era maior que a dúvida.
D. subiu calmamente na mureta. O rapaz achou esquisito. A calma dela era tanta que ele pensou se tratar de uma funcionária. D. encontrou um apoio para os pés na parte externa, equilibrou-se. O rapaz se aproximou:
-- Você precisa de ajuda?
D. não respondeu. O rapaz se deu conta, num átimo, e tentou segurá-la pelos pulsos. Sua mãe correu para lá.
Michelle, que estava no mezanino, viu o corpo cair. Ouviu o barulho.
A luz sangrava, sangrava muito, sangrava ardorosamente a vida de D.
Eram 17h e alguns minutos, mas eu não consegui mais olhar nos olhos da megalópole, porque ela fingiu não me ver. Havia tanta gente na rua essa hora... Mas a luz... a luz estava vermelha demais.

D., se eu não estivesse tão absorta, talvez tivéssemos nos cruzado no café. Talvez eu tivesse notado você, sua calma tão diferente de outras calmas que eu já conhecesse. Talvez, D., eu tivesse puxado papo com você e comentado um sentimento meu desta manhã.
I. é considerada uma estrela. Quanto se espera de I! Recordes, vitórias surpreendentes, exibições perfeitas. Há dez dias ela chegou ao Mundial de Berlim como bicampeã olímpica. Classificou-se com facilidade para a final do salto com vara. Mas, conforme admitiu depois, o excesso de autoconfiança tirou sua concentração. Excitada com a possibilidade de bater mais recordes, perdeu o foco quanto ao mais básico: saltar. Queimou suas três tentativas. A decepção foi geral – falou-se muito em fracasso, falha, vexame. “Eu precisava perder em Berlim”, ela disse. “Tinha de ver o esporte de outra maneira, por outro ângulo, não só do topo.” E, nesta sexta-feira, na Golden League em Zurique, I. não só conquistou uma fácil vitória (contra as mesmas adversárias de Berlim), como estabeleceu novo recorde para o salto com vara: 5,06m. I. aprendeu a vencer quando foi derrotada. E não deixou que seus demônios interiores a subjugassem.
Eu teria gostado muito de ter partilhado essa notícia com você, D. Teria ficado feliz em lhe dizer como a história de I. me emocionou. I. deve bater novos recordes. Eu talvez mude de São Paulo e sinta saudade da luz avermelhada. E você, D., esteja com Deus.
quinta-feira, 23 de julho de 2009
Parada naquela estação
Era um dia incrivelmente bonito: ensolarado, com algumas poucas nuvens inventando sombras e frescores e uma mescla de perfumes difusos anunciando tarde cheia de promessas. Um dia que se revelava enternecido. Um dia para uma reconciliação, um sorriso, um laço – e não para uma partida.
Mas foi quando você decidiu ir. Respirou fundo ao se espreguiçar. Na verdade, você não tinha dormido. Virara tanto na cama quanto suspirara embaixo dos lençóis, tentando dialogar com os espaços de tempo entre os segundos, para que o relógio não avançasse, e com os espaços entre nós, na tentativa de corrigir abismos. Também eu não dormira. Me forçara a sonhar acordada, imaginando uma compilação de novos verbetes que nos ajudasse a lidar com os diálogos já sem rumo. Respirou fundo. Entendi. Voltou seus olhos úmidos para os meus, já secos e inchados, tocou meu rosto. Não nos doíamos pela possibilidade de um de nós amar um outro, uma outra. Doíamos porque já não nos amávamos, porque sabíamos disso e porque, embora parecesse certo tentar remontar o quebra-cabeça de nossas emoções e querências, não tentávamos. Sua mão tocou meu rosto, meu colo, meus seios, minhas pernas, minhas costas, meus cabelos, seus lábios roçavam os meus, gozamos juntos com os olhos fixos nos olhos do outro. Impávidos. Você, então, se levantou. Vestiu-se. Lentamente juntou seus ternos, suas camisas, suas calças. Dobrava com cuidado, como nunca fizera. Eu soluçava – você buscou um copo d’água, sentou ao meu lado, segurou minha mão. Chorou. Recorríamos os mesmos recantos do quarto com nossas lembranças: a escrivaninha, a poltrona, o armário, o quadro, a luminária, nossos chinelos. Recolhi suas meias na gaveta, suas cuecas e, com delicadeza, coloquei na mala. Respirou fundo de novo. Respirei fundo em dueto. Não dissemos nada. O silêncio carregava tantas juras quanto cobranças e ambos estávamos cansados. Quando você saiu do quarto, do apartamento, fechei as janelas novamente. Puxei as cobertas, me escondi nos espaços já preenchidos no lençol, nas dobras que guardavam seu cheiro. Fechei os olhos com força, voltei a soluçar, rebobinei a manhã, a madrugada, a noite, a vida inteira. Ouvi o apito do trem, corri para a estação. Balançando os pezinhos no ar, me mantive aguardando a chegada do trem – e do outro, e do seguinte, e do que vinha depois, e do que vinha no outro dia, na outra semana, no outro mês. Você nunca veio com o trem. Você nunca voltou com o trem.
Fecho os olhos com força todas as vezes que a janela denuncia um dia ensolarado, com algumas poucas nuvens, tardes que querem trazer promessas. Sempre prolongo o sonho, inventando todas as vezes a mesma partida. Você respirou fundo. Eu pus suas meias na mala. Nos olhávamos fixamente enquanto gozávamos. Porque você nunca partiu – você desapareceu. E isso abriu um buraco tão imenso em meu gostar que sucumbi à queda. Eu preciso desta estação porque você nunca foi embora. Você, simplesmente, dissolveu-se numa tarde morna qualquer, como se jamais houvesse existido. Como se eu o tivesse inventado. Como se não tivesse havido um casal eu e você, você e eu – prolixo, imperfeito, sanguíneo.
Até hoje fico parada naquela estação, imaginando trens. Um trem que traga você – para que, finalmente, possa partir.
quinta-feira, 16 de julho de 2009
e(u)fe(me)rida(s)des
Já nem éramos mais
E restávamos, ainda inteiros,
Das intempéries ora íntimas, ora forasteiras
De toda uma avalanche de objeções e securas
Muitas cultivadas feito larva, feito lava, feito lavra
Por nós mesmos
Havia uma esperança
De reconstrução de espaços, de ventilação dos silêncios
Ausências pesadas, incongruências fluorescentes
Trôpegos, tropeçantes
Havia
Sempre ia, vai, iria, haveria,
Enquanto que
Mas danamos as conjunções e as conjugações todas
Se tristeza, se vazio gatuno, se vaza
As fantasias todas presas com colchetes coloridos
Imagens projetadas, sombras na parede, sombras claras, mas oras!
Sombras!
Não, não, nada disso, não, o que queríamos mesmo
Era voar livres.
E vivos.
domingo, 28 de junho de 2009
segunda-feira, 23 de março de 2009
chanson de tristesse
Quando meus pés ficaram gelados, no meio da noite, e tive sede, me senti triste. Triste porque aceito seu “egoísmo da novidade”, que suponho passageiro e compreensível, e sua necessidade de se aproximar dos discursos parecidos, dos momentos parecidos. Mas lamento que seus ouvidos tenham estado fechados para as minhas histórias. E para as histórias que recolhi quando estive lá e não cá. Que eu, pouco a pouco, venha me tornando desinteressante porque não estava nem estou na sua novidade. Porque me encontro em minha própria novidade, diferente e tão cativante quanto a sua, porém da qual você nem se esforça em participar.
A tristeza entrou no sonho. Nele, você não estava. Você havia tirado sua fotografia da cortiça na parede e vaticinado que eu só dou para os livros e não para os palcos. Por isso, você não estaria onde eu estivesse. No sono, no sono pesado e macilento, contudo, você apareceu. Estava tentando conversar comigo usando o diálogo de antes, de muitos meses atrás, como se só você estivesse experimentando as mudanças e as descobertas e eu continuasse igualzinha e idêntica àquela do passado. Acordei com um sabor azedo na boca. Você sabia que eu não era aquela de antes. Você notou, constatou. Por que então me forçava a caber naquele espaço obsoleto dentro de sua vida? Teve medo, desconfiança?
Você não quis saber. Satisfeita, talvez, com as mensagens esporádicas enviadas de lá, me deu a impressão de me punir, no cá, com um leve descaso ou com uma inexorável sentença de tempo: já passou. Seu tempo é gerundiano, está passando. Mas você me prendeu ao passado: ao meu, ao seu e ao nosso. Comecei a acinzentar-me, você ficou aliviada. Enquanto estou na toca, não lhe proponho novos desafios. Melhor assim.
Quando a cortina bateu forte contra a parede, por conta do vento ou de um despreparo mútuo de nossa parte, pensei de novo no “egoísmo da novidade”. Por si só, não é nada de mal ou de mais. Mas, quando ele delimita o espaço do outro em sua vida, oferecendo-lhe uniformes e um regulamento básico, faz chorar. Talvez ninguém esteja a princípio acostumado às mudanças, muito menos nós. Talvez porque tais mudanças sejam tão maiúsculas, respectivamente, que nos surpreendemos. Eu parei de boca aberta, coração acelerado, sinapses desconexas. Você até tentou me carregar para dentro das suas, mas dado meu ritmo outro, franziu a testa cansada e me restringiu a uma atuação inócua. Ah, sim, eu não dou para os palcos... nem para a música.
Ontem mesmo sentia o sabor de pêra com nozes. Falávamos sobre pôr-do-sol, epifanias e comunhões.
Quem é você agora?
Você também não quis saber...
sexta-feira, 30 de janeiro de 2009
no país dos espelhos

Puxa água daqui, puxa água de lá. Mais rápido até que a disposição do ralo em engolir as disposições antigas e a poeira de outros sentimentos goela abaixo.
As marcas estavam no piso-chão-fundo-do-momento-presente.
Não mais quartos escuros e recantos sob uma sombra feroz do si-mesma. Tudo ficara demasiado grande, grandioso ou engrandecido, enorme, imenso – até o si-mesma. Então, nem quartos nem recantos. Agora era até mais poético, posto que mais profundo; mais intenso, posto que largo e tridimensional. Saíra do delimitado, fora à paisagem. Encontrava-se no vale, no mais vertical de seu vale, no mais abaixo, na altitude mais ínfima. Estava no charco. No charco de seu vale verde. Rodeada de montanhas que iria escalar ou que já havia escalado. Cercada por leves borboletas às voltas com o daqui a pouco. Atolada até os joelhos, até os cotovelos ou até os cabelos, quando agachava-se. E precisava deslizar, de tempos em momentos.

O instante exato de assimilar um dos mais delicados e fundamentais aprendizados da jornada mítica da heroína que já era: no fluxo impermanente e transcendente da existência, as imensidões daqueles que haviam cruzado a fronteira teriam inevitavelmente montanhas e vales. E isso não significava nada além disso: estava na borra do café, num dia de domingo, de natividade, de lua cheia, de maré alta e gutural. Quanto mais denso o charco, mais admirável a trilha de subida à montanha.
Era, portanto, momento de paciente espera, esperança. Momento de identificar, no berçário do mangue, os brotos com raízes, os sem raízes, os sorrisos e as sabedorias-girinos. Descubro-me anfíbia, além de humana-alada. Uma anfíbia alada, totalmente humana. Que vive na água, na terra, no ar. Os heróis – sem nenhuma arrogância, sem nenhuma modéstia – têm mil faces, intuiu Campbell mítico. Diariamente descubro uma, reencontro outra, assisto dolorida à ecdise de uma mais.

Confiança.
Paciência.
Briluz.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009
a vida invisível
A vida invisível, você sabe, ela existe.
Um dia ela bate na porta. Ela bate a porta.
Melhor manter o abajur aceso, o alarme ligado, a agenda aberta.
O telefone em seu volume máximo, o celular do lado, o cartão de crédito.
É melhor.
A vida invisível, para uns poucos apenas, certo dia passa a coincidir com a vida concreta. Essa do dia-a-dia. Essa de todo mundo. Essa.
Você acorda e tudo parece igual. Mas não. Não.
Uma sensação profunda e física. Incompreensível no plano da razão. Totalmente abstrata e absurda, mas sua. E pura. E intensa. Insensata. E intransferível. Quase uma dor. Quase.
Um duplo. Você não está só, porque também está lá. Mas lá você tem o mesmo nome, quiçá quase a mesma origem, a mesma idade, só que uma outra vida. Repleta, contudo, de coincidências com sua vida daqui. Um ser autônomo e, ao mesmo tempo, parte de você. Uma outra existência no aqui e agora. Sua companheira.
Ele, o copo de vodca na mão, o silêncio quebrado por uma dor insuportável, mais doída que os conflitos sangrentos ali do lado. O que é que dói, me diz, me diz? Quase bêbado, ele não diz. Ele dorme.
Ele, o cigarro de maconha na mão, um não, dois, três, o silêncio quebrado por uma dor insuportável, mais doída que o peso daquela dor necrosada da infância misturada à da adolescência ferrada. Fale comigo. Ele não fala. Calado, some, se esconde.
A vida invisível.
Ela, a outra.
Ele, ele, as portas.
Histórias voadoras. Frio no pé numa noite de verão.
Um verão que não é nada do que eu havia pensado.
E a busca por respostas em páginas alheias, sob notas e acordes doloridos e doídos e olhos pesados de sonho. Não quero que acabe, mas não sei por onde começar, Kieslowski. Bem que você estava me dizendo.
É dessas coisas que eu quero saber.
Estou em Buenos Aires também, morando em Barcelona com meu homem palestino. Mas estou também andando de bicicleta com a bermuda quadriculada e as sandálias, mochilinha preta nas costas, rodeando o rio BioBio. Estou na Noruega dando aulas de filosofia antes de voltar a Salvador, para a casa antiga que comprei. Estou no Chipre decidindo se faço um mestrado na Croácia ou se volto a Istambul. Fizemos amor no mar, na piscina. Hoje fui conhecer os voluntários que constroem casas com e para os moradores de comunidades carentes, quero participar de um mutirão. Voltei da Amazônia com a sensação de que o tempo não passou ao passar rápido demais. Não, não voltei. Citei Salif Keita, achei que você devia conhecer. Apareceu um sorriso no seu rosto cansado, você sorriu! Meu pai morreu, um vazio. Minha sobrinha nasceu, e a cítara já me contou uma série de segredos do mundo, justamente esses da vida invisível.
Dessa que me conecta a você.
Dessa.
Com você.
Invisível. Invisível. Invisível.
À porta.
sexta-feira, 6 de julho de 2007
SANIDADE (ou a vida em primeira pessoa!)
Todo o mundo está ficando louco e eu aqui
Querendo apenas
Ufa
Respirar um pouco
Nas esquinas porcas das grandes cidades entupidas de gente que pouco
entende de vida
Eu quis respirar um pouco
Eu quis limpar
uma gota da gosma dos nossos dias desses nossos dias daqueles dias que
já se passaram e levaram tudo o que era nosso
a gota que estava nos meus olhos no meu nariz na minha boca
que entupia tudo e me deixava louca
Eu quis apenas respirar um pouco
Respirar pelos olhos pelo nariz pela boca pela alma e os cabelos
Eu quis cuspir
Eu quis gritar
Eu quis olhar de um jeito arregalado para tudo o que eu entendia ou não
entendia nada
Para tudo
o caos o barulho o sufoco todo mundo que está ficando louco
Ufa
Fazia tempo que eu não estava sendo eu mesma.
segunda-feira, 2 de julho de 2007
(parênteses)
e eu ainda com esse imbróglio aqui no peito. não dói. pesa um pouco. hoje me deu sono, me fez errar os temperos todos de novo, me tirou o paladar, me deixou meio apagada. fico assim. assim-assim. nem feliz nem triste. nem envergonhada nem sem-vergonha. não sei o dia de amanhã, não consigo fazer planos, nem consigo mais fantasiar aquelas historinhas românticas que me ajudavam a liberar os suspiros. olho para o mundo e vejo as coisas do jeito que são. não consigo mais querer que sejam outras coisas, diferentes de sua natureza. são do jeito que são. então, pronto.
e aí cada minuto vivido é uma vitória. é um fato. é um ato. é um minuto vivido. ponto.
o ralo do meu peito entupido. só que não vaza. só fica entupido. estou entupida de mim mesma.
reconheço as emoções/descobertas que me entupiram, mas desentupir não é fácil.
estou na fronteira. se atravessar, não há mais volta. e vou para o desconhecido, um desconhecido de mim mesma. comigo na mochila. mas no desconhecido.
estou me sentindo sozinha. mas não quero colo de ninguém.
o sangue subiu todo para alimentar a região do imbróglio, desceu todo também, então a libido e a razão tiraram férias.
só-sentimento-só-sentimento-só-sentimento.
Quem sou eu, afinal? (eu pensei que um dia iria parar de me perguntar isso.)
O que eu quero?
Por que não transcendo o imbróglio? Qual é a despedida que falta?
Não desenhar a história, contá-la em terceira pessoa; e sim viver a história e vivê-la em primeira pessoa.
De novo, a vida me brinda com uma viagem para longe a fim de eu enxergar o perto. O mais perto de tudo possível: eu mesma. No fim, é o que ando fazendo. Viajo, vou longe, para me achar mais perto, para ficar ainda mais junto de mim.
Se dói algo? Dói. Bem aqui na pontinha do esterno. Essa dor é física.
Às vezes acho que o fim está próximo. Mas talvez os fins sejam sempre iminentes, todos os dias sejam dias de despedidas. Ao menos, de adeus às células mortas durante a noite. E aos cabelos que caem, já inertes, da minha cabeça. Às fibras que dispenso. Às golfadinhas de sentimentos que solto nos suspiros.
Tava mesmo precisando de um amor.
Um amor dos mais fodas. Embriagante.
Nada daqueles construtos que a gente constrói para se encaixar ou encaixar o se.
Nada de satisfação só para a cintura pélvica; a cintura escapular também quer ser agraciada. E deixemos o crânio fora dessa.
Tô tela em branco agora, à deriva, ilha à espera de barco ou barco à espera de ilha?
Antes, quero transcender. Preciso.
Laranja pela manhã, rosa à noitinha.
Remo. Bóio.
Naquele sono, ela levitou.
domingo, 1 de julho de 2007
Um dia na sombra
Dia desses, acordei na sombra.
Não porque eu quis. Simplesmente acordei.
Não sei se foi culpa da sopa de letrinhas ou da transposição de todo o Rio São Francisco da margem cerebral para a margem emocional e, barragens abaixo, a inundação de todo o ser. Não havia dor na sombra. Tampouco calor, porém não fazia frio.
Nada de escuro ou de escuridão. Da sombra eu via o céu e os gases todos da manhã misturando-se à poluição do dia em tons alaranjados que chegavam até a violeta mais tenra que eu tinha por perto. Havemos, sempre, de amanhecer. Mas naquele dia acordei, levantei, mas não amanheci. Fiquei alma perdida na madrugada de mim mesma.
Sob a sombra de mim mesma no mais completo meu de mim.
Acordei na sombra. Não lembro do sonho imediatamente anterior ao despertar. Fiz tudo normalmente: e por tanta normalidade nos gestos todos, nos mecânicos e nos criativos, nos orgânicos e nos alternativos, é que a sombra gritava. Não sentia autocomiseração nem a presença fantasmagórica do certo padrão de qualidade que me apavora vez ou outra. A sombra não era assustadora, sombreava e pronto – especialmente o que sobrava.
Quase uma alfombra.
Com tromba, pois saía som grave intermitente dando-me o pulso do dia, o ritmo da jornada.
II.
Era como se eu fosse bonequinho miúdo saído de filme de ficção científica controlando de um minúsculo quartinho, o quartinho dos botões, o quartinho dos fundos, toda a movimentação de um corpanzil com órgãos, com um tanque imenso de pensamentos e elucubrações, com um oceano aparentemente infinito de emoções gotejantes.
No dia imediatamente anterior, eu era o bonecão. O corpanzil. O tanque, o oceano. Naquele, o bonequinho. Nenhuma satisfação pelo “controle mecânico” daquele aparato todo. Era a função dele: funcione, então. Só.
Mas bonequinho preferiu trabalhar no modo econômico de energia, então o tanque virou tanquinho, o oceano virou oceaninho, o corpo continuou o corpo, mas comedido.
III.
Era um dia de universo de uma escala só. Sete notas, mas uma só escala. Sem dó maior. Sem sol maior. Sem si. Mi. Mim. Era eu quase em ré. Mas andava para frente. Pequeninamente, mas andava.
Dia sem pimentas, sem invenções, sem chamadas não atendidas. Dia nele mesmo e pronto.
Não tinha vontade de sorrir nem de chorar. Estava existindo e isso bastava. Não desgostava nem nada. O arroz ficou sem sal, o purê de mandioquinha ficou salgado, o peixe não assou direito, a salada de folhas feita horas antes se mostrava totalmente assada pelo limão. Não funcionou aplicar a lei das compensações: sem sal com muito sal, quase-assado com ultra-assado. O gosto não era bom, mas comi assim mesmo.
As pessoas me cansavam com sua simples presença. Não me irritavam nem me atiçavam. Me cansavam porque estavam todas muito parecidas, inspirando e expirando o mesmo ar viciado que eu também respirava, todos nós sem esboçar reações perante o não-acontecimento dos acontecimentos daquele dia, todos cheios de nós a desatar, eram nós e nós, e os nós em nós. Eu quase-sentia, porém não sentia de fato. Era só uma acomodação de não sei o quê que vem por aí.
Tinha me dado um branco: ainda é advérbio, não sei por quê pensei de supetão em preposição. Ainda, então. E então?
Algo estava muito remexido.
Algo novo tomando forma dentro e refletindo no diâmetro da cintura, na textura da pele, no olhar, à volta. Sombrinhas dentro da sombra.
Algo fundo acumulado vindo à tona.
O ralo entupiu e molhou todo o banheiro. Não exalava cheiro do ralo, ele era irredutível: a água do banho, a limpa e a usada. Mas eu não estava preparada para andar sobre as águas. Não ainda. Que direi de meu ralo interno.
À sombra, a água limpa e aquela que limpou. Algo deve ter ido embora encanamento afora, não tenho dúvida, suor limpo com suor sujo?
Nesse dia ninguém telefonou. Não houve novas mensagens em minha caixa postal telefônica ou internética.
Na sombra, longe de euforias ou depressões, fantasias ou idealizações, eu apenas observava. Não tomava parte em. Por isso, não senti pena pelo casal que dizia ser do interior e que ficara sem dinheiro para voltar para casa depois de uma consulta médica. Tinha os visto no dia anterior. Não fiz sexo por compaixão nem reconheci algum indício de tesão. Não tinha sangue flamejante no baixo ventre. Não arranjei desculpas para desculpá-lo nem culpas para culpá-lo. Não vislumbrava mais motivos para me ocupar dele. Não dei de ombros, tampouco ofereci meus ombros para carregar o que quer que fosse. Se sentia algo naquele dia, era um dor entre a cervical e a lombar. A cabeça estava um pouco pesada por fora. E o bonequinho começou a pesar por dentro.
IV.
(Silêncio)
V.
Não dá mais para voltar atrás ou voltar para trás. Ou trazer algo de lá. Não há proibições nem nada, nem houve. Fato inexorável. O chamado caminho sem volta.
Duas possibilidades, então: parar aqui, estabelecer acampamento, fechar os olhos para algumas coisas, abri-los para outras, cuidar da horta, criar um jardim, estudar a viabilidade de um pomar, considerar a hipótese de procriar, etc. Ou desentupir o ralo até o fim. Acolher, por ora, a água limpa e a água suja, o suor que sai e o que não sai, a sujeira que fica, a clareza que vem.
Não queria ter de optar por algo naquelas condições. Mas havia ainda um restante de arroz sem sal e de purê salgado, e com algum esforço resolvi, ao menos, encarar o ralo.
Tenho usado panos para secar o chão, não sei ainda quando vou enfrentar o fundão. As dores passaram, nem tive mal-estar. Espirro em alguns momentos e, naturalmente, fui sendo reintegrada à teia humana, reverberando aqui e ali.
Não ando sentindo muito, tenho estado um tanto cansada, cansada e tanto. No momento, dois chumaços de cabelo engaiolados há tanto tempo: a feminilidade e o ser-em-relação-a.
Uso havaianas cor verde-bandeira para andar no banheiro. Sobre as águas. Com toalha rosa-escuro enrolada no corpo ainda um tanto molhado.
Pensei assim: hmm, em nenhum momento precisei usar lâmpada, luz artificial. Achei que aquilo era bom. E o dia era novo, certamente, porque as sapatilhas laranjas esperavam -- hesitantes, mas alegres -- para serem usadas, a salada de vagem estava saborosa e eu acabara de brindar com amigos. Enmimesmei, mas não lá só ré dó mi fá fiquei.
sábado, 16 de junho de 2007
Tudo começou com um "sim"
"Enfrentados con um límite sentimental, ese punto sin retorno en el que una pasión imperiosa les exige que cambien de lengua, los personajes de las óperas dejan de hablar y cantan, los actores de las comedias musicales dejan de caminar y bailan. Sofía escribía." (El Pasado, Alan Pauls).
Hoje virei Sofía, porque sempre fui Sofía neste sentido. Oi. Muito prazer, eu, Lóri Capitu, vulgo a Sofía del Pasado, deliro.
Quarta-feira, Boca Juniors dispara 3 a 0 no Grêmio. Chocolate Crunch. E foi assim que ele fez, depois do jogo: crunch. (Fui buscar no dicionário Cambridge. Crunch: v to crush (hard food) loudly between the teeth, or to make a sound as if something is being crushed or broken. n a difficult situation which forces you to make a decision or act.)
Sei, sei. Estar diante de Lóri-Capitu-Lóri de novo não é fácil. Mas ele foi valente: crunch. Justificou-se, falou, falou, defendeu-se, mas, como o Grêmio, capitulou. Tomou de 3 a 0. No dia seguinte, apesar de minha pele clara e fina e sensível e disponível, apenas o queixo carregava as marcas do crunch. Nas veias e artérias, pulsavam inquietações.
Na quinta, greve do metrô. E, então,
Trilhos eternos
Trens pouco ternos
Eu, sozinha,
Num vagão à deriva - e descarrilhada
Trilhos contínuos
Trens taciturnos
Noturnos
Eu solitária
Num vagão à deriva
- descarrilhada, estirada à estrada de -
Um olho no reflexo
perplexo de minha face-faceta-facínora
Subterrâneos
Túneis e mais túneis
Entre pausas e movimentos
Na lonjura da proximidade
Próxima, porém, distante.
E sem, e sem.
Eu ali, ele ali.
Lua, sombras, sensações.
Conexões inexplicáveis e instantâneas
Colagem de coletâneas - as minhas, quietas, as dele, falantes.
Instantes, conexões discadas.
Hoje, porém, ultrapassadas.
Na banda larga sem trilhos
De uma greve de coragens.
E sem, e sem.
Ah, suspiro e deixo. Crunch-substantivo. Sofía total.
Ah, ah, ah.