domingo, 30 de setembro de 2007

Cinestesia

Esses pistaches que agora como
Na frente da janela, cortina esvoaçante,
Nuvens afetuosas,
Têm o gosto de você.

Mas você também está no mel do chá,
Água esquentada na panela,
Xícaras gêmeas, vermelhas,
Mel que vai adoçando devagar.

Tem você na cerveja e água com gás
Misturadas à saliva e às solas dos nossos pés
Na quentura de uma madrugada bêbada e pueril,
Que tem sua temperatura.

Tem você quando eu fecho os olhos
Tentando dormir e você me povoa,
Tapando meus poros e me fazendo ofegar.

Você reaparece na letra de tango,
Um tanto alegre e rebolada,
E preenche o palco com seus trejeitos
Que me seguram, leve,
Junto ao seu corpo.

O som de todas as canções do mundo,
Nesse momento,
Carregam você de lá pra cá e de cá pra lá.

Então me resta aceitar
A eternidade de você
Você na minha existência
Existindo o tempo que tiver de durar –
Esse é meu presente,
Repetitivo que seja,
Permanente e instantâneo.

sábado, 29 de setembro de 2007

...

Queimei uma lâmpada
E estou às escuras
Tateando a saída
Do meu próprio labirinto

Poft!

Mas aqui dentro
tem mel e frutas
E insondáveis presenças
que me transpiram ar quente

Nhannnnn!

Hora de atravessar
As grandes águas
Num equilíbrio sonoro
Sobre o fio de Ariadne

Ssssssss...

Parece que dou voltas
Mas são caminhos não trilhados
Retomando pegadas
E abrindo novas nuvens.

Plim!

Sujeirinha

Era uma vez uma abelha
Que enjoou do néctar
E foi comer capim

Um dia
Alguém descobriu o mel verde
Matou a abelha
Cortou o capim
E foi comer hambúrguer do McDonald’s
Porque assim
O perigo passava mais rápido

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

CONCIERTO DE ARANJUEZ (ou Aranjuez, mon amour)

I.
Allegro con spirito


Foi numa noite de lua crescente, quente, mas refrescada por uma brisa suave e cheia de picardia, diante de uma praia, voltando de um jantar muito agradável com amigas e já de partida para outro destino. Foi naquela noite de lua virgem e crescente e estrelas crescidas e veteranas, olhando o mar, que eu disse sim. Eu disse sim ao amor. Assim: sim.
Amor, eu lhe digo sim.
Amor, entre em minha vida.
Faça as arrumações que julgar necessárias, mesmo que me tragam dor. Que me surpreendam. Que me amedrontem.
Amor, venha, por favor. Venha.
Eu disse, mas não entendi porquês ou repercussões quando disse. Foi a alma que sussurrou no silêncio daquele instante. Por isso, minha voz inaudível repercutiu tão alto, tão alto. Estremeceu as ondas todas. E me emocionou de suspiros. Dormi sem sonhos naquela noite, uma noite de passagem e de viagem. Havia apenas o frescor de um sim, a serenidade de uma decisão. Não voltaria mais atrás – seriam outras a lua e as estrelas, seria outro o mar, outros a areia, as pegadas, os entardeceres, os choros e os coros. Os coros dos grilos. Os meus choros. As pegadas. Seriam as pegadas dele. Ele, amor.
Eu tinha dito sim ao amor. E não sabia o que isso significava, assim, de pronto, de prático, em minha vida. Intuía que seria uma revolução – e que as barreiras todas, construídas em anos de interpretações equivocadas e esconderijos confortáveis, iriam ruir. Doeria muito, já imaginava. E o que viria depois? Não fazia idéia. Queria experimentar.
A lua sorria. Alegre em espírito. Eu também alegre, com espírito.

II.
Adagio

Antes de eu o conhecer, já o sentia. E estava próximo, e era irresistível, e sabia usar a razão e brincar com as palavras, e sabia deixar escapar bocadinhos de emoção, e partilhava. E me via, de algum jeito, já me enxergava, antes mesmo de me conhecer. Estávamos à espera um do outro. À espera, apenas, sem qualquer continuação, locução nominal ou objeto indireto (pura subjetividade direta, isso sim). Sem o conhecer, já havia me encantado com a pessoa que ele era. Sem me conhecer, ele já precisava de minha presença.
Ele era e eu estava. Quando eu era, ele estava. Fomos juntos em muitos momentos e estivemos em outros tantos. Mas esse jogo com ser e estar pareceu muito perigoso, e as muralhas começaram a ser levantadas. Cada qual à sua maneira. Puxamos um mapa do bolso e estabelecemos uma fronteira. Para cruzá-la daqui para lá ou de lá para cá, era necessário passaporte, apesar da relação tão cordial. Ele se tornou distante e espinhoso, mas jamais deixou de ser cordial. Eu continuei afetiva e achava que havia erguido apenas uma mureta desta vez. Que nada, era tão muralha quanto a dele. Mas a minha disfarcei com trepadeiras e também fui cordial.
Queríamos ter sido ousados, isso sim.
A energia era tão forte que não conseguíamos dormir. As muralhas estavam lá, seguindo a linha da fronteira. E nós, insones, tentando dizer a nossos corpos que tudo não se passava de uma grande bobagem. Eu repreendi com dureza minha alma, dizendo-lhe que havia se equivocado inexplicavelmente. Contive gestos de carinho – vontade de ajeitar sua franja, de abraçá-lo, de roçar suas mãos. Ele falava tanto e tanto sobre assuntos tão díspares e nada nossos que eu me sonambulizava para escutá-los. Os grilos, à noite, faziam uma sinfonia, reproduzindo com metais e sopro, os acordes daquele concerto de Joaquín Rodrigo (ele escutava na interpretação de Miles Davis). E, no quarto, o teto era feito de janelas. Eu dormia olhando o céu. Ele talvez dormisse imaginando o céu que eu via.
No último dia, lhe comprei flores. Atemóias.
Quando parti, pela primeira vez, eu ainda não havia dito sim ao amor.
Quando parti, pela segunda vez, ele estava bem mais leve. Com uma leveza estranha, achei que havia ficado feliz por eu estar partindo. Para mais longe, sem previsão de volta. Ele sorria e vestia camiseta branca. E me abraçou forte. E abraçou de novo. E falou para eu ser feliz aqui, aqui onde estou hoje e agora. Aqui tudo ficaria mais claro. Estava tão bonito ele. Estava e era naquele momento, justamente quando eu partia.


III.
Allegro gentile


Racionalmente, estava conformada com a frustração do equívoco de minha alma e me desenhava possibilidades alheias feitas de pura fantasia como conforto e reparação. Eu havia perdido aquela batalha.
Por outro lado, tinha dito sim ao amor.
Por isso, os sentidos estavam mais aguçados?
Por isso, me sentia mais serena?
Racionalmente, eu já havia dado como encerrada essa história. Continuava mandando meus sinais de fumaça – e não eram muito mais que isso, sinais de fumaça, com carinho e mel. Ponto.
Por isso, me surpreendi naquela tarde esquisita. Racionalmente não entendi nada, mas meu coração tudo captou e começou uma dança de espasmos e contrações. Primeiro, me defendi. Depois, aceitei a invasão.
Hoje, sem lua e sem grilos, teto de concreto, apenas uma janela com rasgos de horizonte, capitulei. Foi num instante de silêncio.
Silêncio e sentimento.
Minha alma se equivoca de novo? Uma vez mais?
Ele escreveu sobre maré de solidão. Portos próximos ao coração. Chamados amorosos que acontecem sem qualquer previsão. Hora de baixar as defesas e relaxar um pouco.
A razão leu: só agora ele decidiu baixar as defesas. Bom para ele. Pena para mim. Que azar o meu.
Eu tinha dito sim ao amor, não posso esquecer. E o aprendizado de abaixar as muralhas e guardar os canhões dói. Parece tolice a princípio, mas não é.
A alma leu: estou enfrentando meus momentos de solidão. Não tenho ao meu lado quem gostaria de ter e, no inesperado desse sentimento, então aproveito para baixar minhas defesas e relaxar um pouco.
Tomei um susto, confesso.
Achei uma bobagem, um novo equívoco da alma.
Não sei mais o que pensar. Pensar? Não aprendo mesmo. Quis dizer: sentir. Mas eu sinto sem querer. Tenho medo.

Estou cá com um amor entre meus braços e não sei o que fazer.
Procuro na minha papelada: Plano de fuga. Sabotagem. Esconderijos.
Amor miúdo ainda. Deixo ressecar?
Medo e dúvida. Patético supor que ele esteja falando para mim. Está falando do futuro e não do presente.
Por que então o coração se perturbou todo naquela tarde? Por que deu pane no circuito interno de defesa?
O que faremos não é uma questão. Não ainda, talvez não seja nunca. O que faço eu é uma questão. O que faço eu com essa novidade que a razão não entende?
Tenho um amor miúdo que chora de fome e saudade. Que aquece minha noite sem teto-janela e sem estrelas veteranas. Navego rumo a um desses portos próximos ao coração, onde, quem sabe.
Que haja praia. Pois desci da torre de marfim e quero experimentar a areia. Sem espelhos mágicos, vejo uma mulher. Uma mulher com um amor.
Estou alegre. Na aprendizagem da gentileza. E dos prazeres.

Brevidades dominicais

(problemas técnicos empurraram a postagem para quinta-feira)

1.
Dois peixes podem, sim, partilhar um aquário.
Um aquário não é o mar inteiro, que vai, vai muito, e um dia, lá longe, volta. Nem rio que já não está no mesmo lugar de antes. Mas o aquário não precisa ser necessariamente uma prisão, uma limitação: um aquário é um conjunto de espaços internos com zonas de intersecção. Tem pitadinha de mar, tem pitadinha de rio. E tem os dois peixinhos, claro.

2.
O crítico Luiz Zanin comenta o filme “A Massai Branca”, recém-estreado. Uma mulher suíça, branca, vai passar as férias no Quênia e se apaixona loucamente por um guerreiro massai, negro. A atração pelo diferente misturada ao choque de culturas. Zanin diz, sobre o “irredutível da situação”, que existe algo que incomoda a protagonista: é não saber exatamente do que trata sua compulsão. Escreve: “Ela mesma evoca uma história que conhece: um homem, um dia, está num aeroporto e sente-se impelido a invadir a pista. Depois de ser detido, a polícia lhe pergunta por que motivo havia feito aquilo. Ele se limita a dizer: ‘Tinha de fazê-lo, não havia outra alternativa.’”
Entendo perfeitamente. Não vi o filme, quero vê-lo, mas me detenho à frase.
Tinha de fazê-lo, não havia outra alternativa.
Eu não tinha outra alternativa a não ser viver a vida que estou vivendo agora. Inevitável. O medo que pairou sobre mim há alguns dias já foi chover em outros manguezais. Epifanias primaveris vieram confirmar caminhos.
Amém.

3.
Adélia Prado, com muita suavidade, pediu para entrar em casa. E trouxe seu “amor feinho” – “uma vez encontrado, como fé, não teologa mais.” Ah, que poema lindo. “Amor feinho não tem ilusão; o que ele tem é esperança.”
E o que dizer sobre aquele que começa com “eu te amo, homem”? “Aprendo, te aprendo, homem.”
“Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos para pessoa e bicho.”
“Homem meu, particular homem universal. Tudo o que não é mulher está em ti, maravilha.”
Ah.
Foi a Amiga quem conduziu Adélia no CD O Sempre Amor até minhas mãos. E foram minhas mãos que abriram caminho a meus ouvidos. E os ouvidos, ao coração.
Estava eu distraída, lavando folhas verdes claras e escuras, temperadas com laranja, azeite e sal. Estava eu picando, distraída, batata cozida, maçã e uva itália, temperadas com maionese light na falta de iogurte natural. Estava eu distraída, apoiada na pia da cozinha, entre esses sabores agridoces e os espevitados de verdume, espiando azulejos azuis, e o amor veio me fazer cosquinhas.
Eu ri.
Enquanto isso, Adélia estava lá, bonitamente falando. “Tudo o que não é mulher está em ti.” O dedo, em vez da colher, mexendo o suco de melão!
“Uma vez encontrado, o amor, como fé, não teologa mais.” Certíssimos eles dois, Adélia e o amor.

4.
A Amiga também conduziu Affonso Romano de Sant’Anna às minhas mãos. Essa Amiga...
Partilhamos, eu e a Amiga, uma tapioca salgada e uma doce numa feira do centro de São Paulo. Oásis em meio a cheiro de mijo e caixas de madeira pré-apodrecida, televisores ligados no jornal esportivo e velharias nas calçadas. Em tempos brutos, instantes delicados.
Lambuzei-me de leite condensado. Relembramos momentos mágicos naquela ilha paradisíaca, onde os sentidos se aguçaram. Era tapioca, era graviola, era tartaruga, era alemão, era moto, era pedra roliça, era golfinho e bolinho de tubarão. Mulheres de chita, nós duas. Mulheres da Lua. Na Praia do Leão. Dormindo na areia, fazendo xixi atrás da moitinha.
Voltando a Affonso Romano de Sant’Anna, poeta prosador, ele me trouxe seu Tempo de Delicadeza. Abri, assim, ao acaso: “Talvez o verdadeiro aprendizado comece quando descobrimos que certas perguntas não têm respostas, que a arte da vida não está em achar respostas, mas em trocar de perguntas, que as fundamentais são irrespondíveis, e que as perguntas são mais viscerais do que as respostas.” De acuerdo.
Bem-vindo, Affonso.


5.
As atemóias me olham com ternura. Essas flores guardam uma memória recente e colorida. Eu planejava strelitzias ou angélicas, mas as atemóias me chamaram. Gosto do que me chama. Gosto de chamas e de chamados, gosto de achados também.
Me lembrei agora, tão rapidamente, de uma memória esquecida: quando os girassóis entraram em minha casa. Morava em outro canto, mas isso não importa. Foi bonito vê-los entrando, chegando e sentando. Iluminaram por dias a sala, a vida, o olhar. Foi um pedido de perdão que resultou em respeito e carinho. Hoje, lembrança. Como o restinho de açúcar que fica no fundo da xícara.


6.
Há três semanas aterrissei em São Paulo, depois de dois meses de ausência, e achei a megalópole mais bonita. Senti de imediato os efeitos da lei Cidade Limpa e aprovei. A poluição visual era terrível e estressante. O despojamento evidenciou a feiúra? Acho que não; revelou possibilidades. E, nos recantos da minha São Paulo, me senti em casa. Reconheço espaços meus esparsos no mundo – cantinhos e caminhos da Cidade do México, de Buenos Aires, de Istambul, de Paris. Mas lar é diferente, precisa de tempo para se desenhar, se estabelecer.

Aproveitando o gancho, fiquei encantada com o arquiteto mexicano Ricardo Legorreta e sua entrevista publicada no caderno Aliás. Sensibilidade combinada com inteligência e argúcia. Além de um profundo senso de pertença à humanidade e a esse momento da história contemporânea. Suas opiniões são consistentes e, para ele, não há como discutir a arquitetura sem mencionar aspectos sociais, culturais, econômicos, humanos. Ele fala de arquitetura popular e da soberba que acomete os arquitetos de agora, que querem ser celebridades e construir para a elite – ah, Legorreta, esse mal, de arrotar peru e dedicar-se aos donos do dinheiro, atinge de dermatologistas a jornalistas, infelizmente. Comenta os shopping centers e solta frases ótimas. “Gosto de provocar os americanos quando participo nos EUA de reuniões com arquitetos. Eu lhes digo: ‘Então, vocês falam tanto de shopping centers, de elevadores panorâmicos, de sistemas de segurança, e, quando saem de férias, vão correndo para as ilhas gregas.’ Não proponho que se eliminem os shopping centers das cidades, apenas quero pensar alternativas a uma arquitetura anti-humana, de luz e temperatura controladas.” Debate também a questão do mobiliário fora de escala que é vendido para as pessoas de baixa renda, algo nada a ver com o que elas necessitam. E encerra a conversa assim: “Não creio em gênios. Creio em gente que trabalha muito. E com paixão.”


7.
Um dia, uma pessoa me disse que havia três coisas fundamentais para sobreviver no mundo de hoje: saber nadar, saber dirigir e saber falar inglês. Tsc, tsc, tsc. Eu faria outra relação: saber ouvir, saber partilhar, saber respeitar. Mas, claro, isso depende do ponto de vista.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

ONTEM. COM SANTIAGO E COM JOÃO.

E ontem, então, passei a tarde com Santiago.
Na verdade, passei a tarde com Santiago e com João. O Cássio esteve ao meu lado, por uma dessas coincidências divertidas – olha só quem também veio!... –, mas ele pode ter conversado sobre outras coisas com aqueles dois.
Santiago me falou de pulsações diversas, de memória, de paixões, de vida invisível, de idiossincrasias, de intensidade.
João me falou de amadurecimento, de lapidação do olhar, também de memória, de fé, de respeito e de humanidade.
Eu? Eu fiquei quietinha, ouvindo apenas. E observando, e sentindo, e sorrindo e também chorando um pouquinho, meio disfarçada.
Já nos tempos de Santiago – quando nasceu, que não me lembro direito? 1926, pode ser? depois checo e lhes conto – havia gentes que achavam isso e aquilo, e a fabriqueta de identidades-perfeitamente-adaptáveis-a-essa-vida-dita-moderna-mas-tão-vazia já estava em pleno funcionamento. Ou seja: para ser algo (considerado algo) era preciso ser algum dos algos contemplados. E aqui não me refiro a ser rico ou ser pobre. Refiro-me a seguir o padrãozinho medíocre de previsibilidade. Na minha humilde opinião, ops, já estou falando demais, é justamente o que esse sistemão capitalista-fundamentalista baseado no espetáculo celebrity e no fetiche da mercadoria (consumam, pobres diabos, que Deus não vai ver!) quer de nós, exige de nós: previsibilidade. E Santiago, já naqueles tempos, Santiago ousado e autêntico, Santiago cujo coração sussurra alto, Santiago deu de ombros a essa previsibilidade e a todas as tonterías que possam ter lhe dito sobre isso e aquilo, aquiloutro.
Era mordomo o Santiago. Existem mordomos hoje em dia?
Mordomo, essa figura que parece tão associada à infância. Quando somos crianças, acreditamos em mordomos. Quem, adulto hoje, acredita em mordomos? Com fraque, luvas brancas, olhar austero, coluna ereta, equilibrado no metatarso da elegância (seria fraque mesmo? Sempre me confundo com esses trajes masculinos.)
Santiago era apaixonado pela aristocracia, não se importava em ser um mero servidor (no fundo, não era, especialmente em seu último emprego, como contou. Recebeu até brinde de champanhe francesa de primeira em um de seus aniversários). Era, o Santiago, italiano, argentino e brasileiro, tudo ao mesmo tempo. Era um apaixonado. Vivia de óperas e castanholas, abençoado por Madonas diversas – Giotto tão grande como Bach! – e dedicado a registrar os passos da nobreza e da aristocracia pelo mundo e pelos tempos. Tocava Bach, no silêncio da noite e da casa, da imensa casa dos pais de João, usando fraque: porque o momento exigia. Ele, o Santiago, entendia as solenidades. E tinha uma percepção tão profunda sobre a vida. A morte seria a grande partida. Ele estava só no apartamentozinho do Leblon, mas vivia acompanhado e não se sentia desamparado. Ele mantinha uma máquina de escrever na cozinha. Na cozinha! Nem João nem eu lhe perguntamos por que a máquina de escrever estava na cozinha. Santiago trabalhou na mansão de uma família argentina aristocrática que tinha muito dinheiro, mas jamais havia saído de Buenos Aires. Iam a óperas, teatros, eventos, mas nunca se arriscaram a vir ao Brasil, por exemplo. Santiago apertou a mão de tanta gente distinguida, mas foi essa gente distinguida que freqüentava a grande casa de João que teve o prazer de apertar a mão desse Santiago. Ele sabia que a expressão podia ser a mais simples para ser a mais pungente – e o balé de suas mãos demonstra isso. Um mordomo que, nas horas de trabalho, mantinha as mãos disciplinadas. E que, nas horas vagas, emprestava-as ao balé da vida. Soltas. Ou no piano. Ou nas castanholas. Ou na máquina de escrever. Fazia parte de um grupo maldito de poetas, de seres vivos – mas fiquei sem saber o porquê já que Joãozinho cortou a conversa.

João falou muito e pouco ao mesmo tempo. Foi tão sincero que me emocionou. O tempo das coisas, João. A gente nem compreende tudo de imediato. Ao ouvir Santiago, João também se deu conta de um monte de coisas. Citou Herzog, o homem-urso Herzog. Nos momentos em que deixamos o controle de lado, a necessidade do efeito (para que buscar o efeito, João? isso é tão espontâneo...), um respeito desnecessário às convenções é que a vida acontece, em gestos, palavras, olhares, posturas, suspiros, respiros. Ou simplesmente acontece, mesmo que imperceptivelmente. João gosta de cinema. Citou Ozu. Enquadramentos existenciais. Esses são os mais fortes, sabia? O close, às vezes, pode ser uma invasão desnecessária da privacidade alheia, quase um desrespeito, uma falsa idéia de proximidade. Um plano excessivamente aberto pode ser um jeito blasé e arrogante de denotar descompromisso e conotar liberdade, uma falsa idéia de liberdade. João reconheceu, para mim, como se estivesse segredando mas em voz alta, que aprendeu muito com Santiago. Idiossincrasias à parte, foi influenciado pela intensidade de vida, pela autenticidade, pela imprevisibilidade, pela paixão de Santiago. Mais agora que antes, quando era menino ou adolescente ou jovem. Ou em 1992, quando visitou Santiago. João também queria ter dado um abraço em Santiago. Queria ter sido mais desprendido, menos controlador, menos contido.

O tempo das coisas, João. O tempo das coisas.

Eu queria agradecer ao João por me ter apresentado ao Santiago. Queria acompanhar Santiago no balé das mãos, mas ele já fez sua grande partida. Resta-me mandar um beijo grande ao João, desejando-lhe sorte, sempre. E sensibilidade. Não pode ser coincidência ver a folha de árvore cair duas vezes no mesmo lugar, acompanhada de um casal de folhas (poderia ser uma dupla, mas eu vi um casal). Isso foi um presente, João.
E agora estou com saudade de Santiago.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

El hombre quien no quizo más ser héroe

"Gracias a la vida, que me ha dado tanto,
Me ha dado la marcha de mis pies cansados;
Con ellos anduve ciudades y charcos,
Playas y desiertos, montañas y llanos,
Y la casa tuya, tu calle y tu patio"




Foi num dia assim, meio nublado, meio poluído, meio melancólico, meio preguiçoso, parecia sábado mas podia ser domingo ou feriado, depois de umas quesadillas e de leite com aveia e banana, depois de ouvir a voz do filho do outro lado da linha, como eu amo você, depois de suspirar relembrando seus trajetos sul-americanos que tinha traçado havia uns meses, depois de relembrar a paixão argentina fadada a tango e a fado, que ele respirou fundo e decidiu não ser mais um super-herói. Ou um herói. E não mais carregar um rei na barriga. Ou falar do alto de si mesmo.

Naquele instante, todas as suas limitações e imperfeições e fraquezas e dificuldades boiavam no caldeirão de sentimentos, pensamentos, impressões e sensações que fazia ele ser ele, unicamente ele. Sentia-se minhoca tentando perfurar a terra cada vez mais fundo para caber, para se esconder, para se mover, para sobreviver, para sair, para fugir, para sentir, para, finalmente e com tanto custo, poder sorrir.

Ele havia experimentado a dor e o sofrimento. Acolheu a dor, venceu o sofrimento. Iniciou o exaustivo aprendizado do desapego. Deixou o manto vermelho e os superpoderes, o cetro e a coroa, os súditos e os púlpitos, a soberba e a arrogância. Viu-se formiga das mais miúdas correndo riscos atrás das minúsculas migalhas de pão ao lado da pia, disputando sobrevivência com a espuma do sabão, a gota perdida de café com leite, o laguinho espontâneo de água, as formigas maiores, as mãos humanas. Disputando sobrevivência com mais um montão de humanos.

Não queria disputar nada. Não queria salvar ninguém. Não queria tampouco condenar. Queria ser, liberto dos grilhões egóicos, ser ele mesmo. Anônimo, mas em sua completa identidade. Queria simplesmente poder bocejar em paz, a cada novo dia, ciente de suas possibilidades. Que eram as suas – e não alheias. Um dia poria abaixo as muralhas que o defendiam tão bem protegido. Destruiria os canhões e as masmorras. Não temeria viajantes, forasteiros e senhoritas provocadoras. Nem sua própria imagem no espelho.

Achou-se mais feio do que era, mais enfermo do que havia estado. Contudo, a alegria de ter se livrado do ônus desse heroísmo impregnado nos seres do sexo masculino, quase socialmente obrigatório, lhe devolveu a sobriedade. Diante do filho, não era o super-herói. Não era o rei exemplar. Não fingiu ser o máximo dos máximos. Assumiu, diante do garoto, toda sua humana condição de ser humano plebeu e desprovido de magias. Eu erro, filho, eu erro. Mas também acerto e isso partilho com você. Diante da moça que mal conhecia, revelou seu anonimato e seu encanto sem truques. Sua rudeza e seu medo disfarçado de distração. Não sei de nada, me custa viver, estou reaprendendo tudo. Contou que não queria mais ser super-herói e que isso talvez o fizesse indigno de um monte de coisas. Porém a moça que o conheceu e ouviu sua história discordou. Já fazia muito tempo que não conhecia alguém tão digno. (A moça, essa que topou com o homem deixara de ser herói, também andava cansada de ter de vestir – a cada dia – um personagem de contos de qualquer coisa: gata borralheira, rapunzel, branca de neve, mulher maravilha, madame bouvary, lillith... Mas essa é outra história e não vem ao caso).

O homem agora vive um dia de cada vez, com calma, e mastigando muito bem. Reaprendeu a viver sem muletas. Ele aceitou uma gatinha sem-vergonha que espalha terra dos vasos e pêlos brancos pela casa, e parece que, aos poucos, vai aprender a externar ternura. Ainda tem mania de acreditar que seu escudo é intransponível e que, quando fecha os olhos, ainda pode ser invencível. Ou inatingível. Equivoca-se, é lógico, no entanto não briga mais consigo mesmo. Segue com dificuldade de sorrir solto, com toda a espontaneidade do mundo, pois super-heróis e reis são treinados para serem sóbrios e ele ainda não venceu, de todo, tal costume. Mas seu mundo ficou mais leve – ele levita em vez de pairar acima do sol, estático e posado, – e, aos poucos, vem acumulando fãs.

Porque há muitos que se encantam com gente falha, imperfeita e humana. Mesmo que isso pareça incrível.
E é.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

ganhei de presente!

Esse texto foi escrito para mim, mesmo que não tenha sido.
***



Eu era um homem que tinha uma árvore



“Maybe I’m a man and maybe you’re the only womanwho could ever help mebaby won’t you help me understand”
(Paul McCartney)


"Eu era um homem que tinha uma árvore.
E minha existência era feliz, por conta disso, pela árvore estar em minhas mãos, por ser minha, por estar minha, por me pertencer enquanto vida em minha vida. Eu era um homem, e tinha uma árvore. Como a regaria todos os dias e a adubaria semana sim, semana não, como contaria segredos ao seu pé que nem ouvido, como escreveria iniciais de todos os nomes em seu caule quando ela estivesse crescidinha e pudesse abrigar amores.

Eu era um homem que tinha uma árvore, repito, e esta verdade consolidava a minha existência.

– Eu quero!
– Quer não!
– Eu quero!
– Quer não!
– Onde você vai plantar? – Onde? – Tenho quintal! – Eu não. – Vou plantar no Ibirapuera! – Eu, na praia. – Praia não tem árvore, tem coqueiro! – Ah, é!? – É. – Vou plantar num sítio, então. – Até lá vai morrer, já tá murchinha...

Odeio mortes. Olhei para minha árvore, agora ameaçada de morte. Eu odeio mortes. Olhei para minha árvore, agora ameaçada de morte, como se um fuzil houvesse apontado em sua direção. Eu odeio muito mortes. Se pudesse, mataria todas as mortes enforcadas, para que nunca mais importunassem ninguém. Mas que chato seria a humanidade eterna, viver pra sempre, mais que vegetal, mais que mineral.
(Desconfio que odeio mortes só dos outros.)

– Toma, a árvore é sua, será mais feliz solta no mundo. Plante-a bem. Cuide-a. Toma, a árvore é sua, não mais minha, não tenho mais uma árvore, não tenho mais uma árvore, não tenho mais que disfarçar essas lágrimas, não tenho mais minha fábrica particular de fotossínteses, não sou mais ecologicamente correto, não tenho mais minha cota de reciclagem de carbono para dormir com a consciência em paz.

Não sei onde ela está agora. Se chora de saudades, se dorme bem, se tem companhia, se passa frio, se vai casar. A ausência precoce de minha árvore, que partiu para ganhar o mundo ainda novinha, meio sem se despedir, me perturba. É com a insônia de um pai que abro a janela e saio gritando pelo seu nome. Um nome que me esqueci de lhe dar.

No CD player, Paul cantarola, incansável, alheio, quase feliz."

(Os originais podem ser encontrados em http://www.cronopolitano.blogspot.com/, ao lado de outras inspirações e batalhas lingüísticas, algumas bem belas.)

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

dia de encolhimento e... ai! doeu.

Não foi só a temperatura externa que caiu.
Bem que hoje podia ter apenas 22 horas e aí já tinha acabado.
Frio. Frio.

"Concierto de Aranjuez" explodindo no toca-CDs, finalmente!, dissolvendo as fibras todas desse coração muscular hiperplásico (embora encolhido nesse momento). Já nem sei mais para onde sou transportada. Longe, longe, ou nessa proximidade tão incômoda de mim mesma, instalada entre o suspiro e o pensamento. Não pense.



Sinta a pulsação. Preste atenção, ó. Existe um pulso que nos une.
Só a pulsação.

Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( ) Tum ( )



Meu ritmo hoje:
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...


"Os pés distantes dos sapatos. Era evidente que os sapatos rasos, à homem, que Mylia usava, obedeciam ao movimento dos pés. Ossos e músculos têm vontade, o material de que são feitos os sapatos não. O material de que são feitos os sapatos é treinado para obedecer, sobre isso não tinha dúvidas. Obedeçam sapatos, murmurou Mylia, com uma perversão ingênua. Como as substâncias se separavam logo à partida entre as que avançavam com a vontade própria e as que esperavam com obediência estática (e nisso dividiam-se os homens)! Os sapatos eram a obediência pura, a escravidão mesquinha, enojavam-lhe naquele momento; a sabujice destes materiais em relação ao homem." (Gonçalo Tavares, "Jerusalém")


Ainda bem que ando descalça.
(é por isso, acho, que sinto frio em dias como hoje)

sábado, 15 de setembro de 2007

...então, como eu...

Além de tudo, prolixa.
Como se não bastasse.
E o que dizer dessa saia de retalhos?
Mas é que os coelhinhos saltitam aqui dentro e eu os vomito. Um por um, às vezes quinze ao mesmo tempo. Formando montes difusos que preciso costurar, assim, assado.
Um bolo formigueiro! Está no freezer.
O alento da louça da semana finalmente e completamente lavada e equilibrando-se no canto da pia. O chá de flores, petulante e sedutor em seu sabor, pelo amor de Deus, criando uma primavera no meu céu da boca: hibisco, rosa rubra, jasmim, crisântemo, cardamomo e canela, um jardim no meu paladar. As notícias que chegam dos amigos são as melhores possíveis. A brisa noturna e a lua em forma de sorriso. Gato de Alice, foi o que me lembrou.

Agora tudo me parece coincidência, confirmação, epifania. A pessoa que, o filme ao qual, a música no, o e-mail enviado por, aquele, aquela, ah, puxa. A lua formando sorriso para mim. Houve a senhora no ônibus na terça-feira, me contando a história do sobrinho obstinado que foi morar na Austrália há sete anos, com a cara e a coragem, e hoje está muito bem empregado em Londres. Ela me disse: você é bonita, simpática e inteligente. Confie nisso e afaste a nuvem preta que está por aí. Minha mãe me perguntou que nuvem era essa. Medo, ué. A inadequação tem seu preço. E eu, como filha de Deus, por mais valente que seja, também tenho medo. Tenho preguiça. E gula. “Eu tenho um pouco de medo, medo ainda de me entregar, pois o próximo instante é desconhecido”, nas palavras de Clarice Lispector ditas com vigor por Maria Bethânia numa das faixas de “Drama 3º. Ato”, o CD de tantos significados (ele é par do livro de Clarice, do meu, de Lóri; aliás, ‘minhas’ faixas nesse CD da Bethânia são a terceira – Texto de Antonio Bivar/ Estrela do Mar/ Meu Primeiro Amor – e a sexta – Texto de Isabel Câmara/ Como Vai Você?/ Quatro Paredes).
“Enquanto me permite o destino
Eu vou sendo os personagens
Que eu criei...”
Ah.

Medo de me entregar plenamente. “Não deixe tanta vida para depois...”
Assisti hoje ao mais recente Winterbottom, “O Preço da Coragem”, que vai estrear em breve. Trata da angústia da jornalista Mariane Pearl, esposa do também jornalista Daniel Pearl, do “The Wall Street Journal”, seqüestrado e morto no Paquistão, em 2002. Acompanhamos o drama e a tensão dela e de amigos e figuras do governo norte-americano do momento em que se confirmou o desaparecimento de Pearl até o trágico desfecho e os passos seguintes de Mariane. Gosto do diretor inglês, gosto de suas cenas superdecupadas, cruas e tão bem lapidadas, das escolhas subjetivas e ideológicas que faz na movimentação de câmera, nos enquadramentos e na inserção de imagens documentais. Há quem o acuse de manipulação, acho que ele até certo ponto manipula, sim, mas não esconde isso do público. Estão lá seus artifícios para criar um longa catártico, comover aqui, revoltar ali. Mas funciona, caramba! Essa história de autor neutro e puro e inocente quanto à própria obra não cola, não. Gosto de Winterbottom porque tem personalidade, não é um marionete de estúdio ou um morno qualquer que faz filmes quaisquer. Quando crescer, quero ser assim com a câmera.
Ah, sim. Está na listinha.
Pastéis, canto, literatura, câmera...
O filme me devolveu um pouco desse meu tesão pelo jornalismo que os anos foram diminuindo até chegar nessa quase apatia em que me encontro hoje. Está difícil buscar trabalho menos pela falta de contatos ou de oportunidades e mais pela falta de interesse de minha parte. Olho para as publicações e já não acredito mais em nada. Fico até meio enjoadinha, tenho preguiça de ler qualquer coisa. Sinto que a vida pede outras atitudes, que se trata de pura reciclagem, e a tchurma continua insistindo em fazer “produto novo” para “cliente novo”. Afe. Quem lê tanta notícia?

Casualidade ou coincidência foi ter me deparado com o filósofo, cineasta e ativista Guy Debord, que vai ganhar mostra em sua homenagem no CCBB também em outubro. Assistir ao “La Societé du Spectacle” (1973), longa-ensaio baseado em seu livro homônimo de 67, é toda uma experiência. Um dos principais pensadores da Internacional Situacionista, com novas e radicais propostas para a arte do século 20 – uma arte comprometida, revolucionária e participativa – e uma feroz crítica à sociedade do espetáculo, do consumo e do fetichismo da mercadoria. Ele monta seu filme com imagens de arquivo, de noticiários e de documentários, mas também “rouba” ou “expropria” cenas de clássicos do cinema, como “Rio Bravo” e “Por Quem os Sinos Dobram” – les films volés. A discussão é bem mais profunda do que escrevo aqui (alguém me lê? alguém chegou até aqui?). Fiquei intrigada com o que vi. Parece que faz um clique na cabeça da gente: caíram as vendas dos olhos. Eu não quero ser bolinho de massa feito em massa para ser consumido pela massa. Debord explica NA PRÁTICA o que sua teoria questiona. Ou seja, ele subverte elementos culturais e imagens já existentes, reorganizando-as com um sentido específico e determinado (ideologicamente determinado). Assim, o espectador recebe uma visão de mundo que pode crer ser “a” visão de mundo. Debord diz que o espetáculo é uma relação social entre as pessoas mediada por imagens. A sociedade do consumo e do espetáculo precisa de alguns que escolham as imagens, recortem-nas, concedam-lhe sentidos e as devolvam ao mundo como se fossem, de fato, imagens fiéis a esse mundo que retratam. Os que vêem sentem-se saciados por terem contato com o mundo que conhecem por meio de imagens. E tudo é consumo, porque há que consumir de algum jeito o que se vê. Alguém lhe conta o mundo por meio das celebridades, dos noticiários com cara de novela (realidade mostrada como ficção), com as novelas que “retratam a realidade” (ficção da vida real), dos fragmentos espetaculosos da esfera política, dos eventos bombásticos mundo afora, de corpos impossíveis e de produtos para todos os minutos do dia, etc. Você adquire esse mundo e, ao voltar para o comezinho de sua vida cotidiana e sem-graça, ufa, acha que teve emoção suficiente para aquelas 24 horas. E o espetáculo torna-se viciante, uma relação de dependência. (Voltando rapidamente a Winterbottom: ele sabe como lidar com o espetáculo e criar um elo com seu espectador por meio do uso que faz das imagens. Isso não é nem bom nem mau. Acho que a questão está mais no receptor que no emissor.)
Eu quero tocar o mundo. O mundo tem, por ora, as dimensões de minhas andanças e do meu abraço. Ponto e vírgula.

E, para terminar e eu me livrar dessa leva de coelhinhos, sigo acompanhando as desventuras de Florence e Edward em “Na Praia”. Quanto pudor, meu Deus do céu, e quantas travas. Preciso apresentar Florence à Menina Má e vice-versa. Quem sabe se ajudem. Vejamos o que pensam ou dizem:

Florence:
“Mas o que a atormentava era inexprimível, ela mal conseguia defini-lo para si mesma. (...) Num manual moderno e antecipatório, ela deparou com frases ou palavras que por pouco não lhe deram ânsia de vômito: membrana mucosa, e a sinistra e cintilante glande. (...) Quase tão freqüente era uma palavra que não lhe sugeria nada além de dor, de carne cortada por faca: penetração. (...) Sem dúvida, a imagem dos testículos de Edward, pendentes sob o pênis ingurgitado – outro termo horripilante –, era capaz de contrair seu lábio superior, e a idéia de ser tocada “lá embaixo” por alguém, mesmo por alguém que ela amasse, era tão repugnante quanto, digamos, um procedimento cirúrgico nos olhos.”

Niña Mala:
“--- Mentira, tú no quieres matarte ni matarme. Sino cacharme. No es verdad? Yo también quiero que me caches. O, si esa lisura te molesta, que me hagas el amor. (...) Se había arrancado el vestido de bailarina y tendida sobre mí me secaba moviéndose sobre mi cuerpo –, metiéndome la lengua en la boca, haciéndome tragar su saliva, atrapando mi sexo, acariciándolo con las dos manos, y, por fin, encogiéndose como una anguila sobre sí misma, llevándoselo a la boca.”

Ulalá. Que dupla.
E são dois homens, os dois escritores, descrevendo. Dois narradores masculinos – um onisciente, outro não.

Ver um homem pelado é toda uma experiência. Dependendo do estado de espírito, do homem, da ocasião e dos etecéteras, ora pende-se para a “função Florence”, ora para a “função Niña Mala”... Embora curta ser menina má quando convém, eu prefiro o jeito Lóri: “Foi então deitados no chão que se amaram tão profundamente que tiveram medo da própria grandeza deles. (...) No começo ele a tratara com delicadeza e um senso de espera como se ela fosse virgem. Mas em breve a fome de Lóri fez com que Ulisses se esquecesse de todo a gentileza, e foi com voracidade sem alegria que se amaram pela segunda vez. E como já não bastava, já que tinham esperado tanto tempo, quase em seguida eles se possuíram de novo, dessa vez com a alegria austera e silenciosa.”
Isso rende outro post, mas em outro momento. Há as cenas de sexo do cinema... Coelhinhos saciados, me voy.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

crítica da razão pura

(nota: é a razão pura quem critica, não eu quem a critico)

Pois então, acho que agora enlouqueceu de vez. Como se não bastassem as idéias malucas no plano das idéias, agora elas começaram a brotar no plano das ações. Ações malucas? E os riscos todos estão aí, as pessoas à volta parecem cada vez mais chocadas e atônitas, o voto é obrigatório, é bom fazer Papanicolau uma vez por ano, há que comer fibras e cortar o açúcar branco, o ideal é hidratar a pele duas vezes ao dia, mínimo, e essas coisas todas. E assim por diante. E o manual está aí, distribuído gratuitamente, por que não o relê? Nadar contra a corrente! Hahahaha. E agora deu para se achar artista, dona de uma criatividade que faz bem à saúde. São esses argumentos que vão salvar o mundo? Acha que sorrisos e simpatia e bochechas rosadas acabam com uma guerra? Ah, vai cantar? Ah, vai improvisar? Sei.
Improvisar? Repete. Nada de controle, então?

Vai viver de que, meu bem?
Vai fazer o que ali, meu bem?

Love is all we need? Qualé, larga esse Beatles ultrapassado.
Sumi com seu "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres" porque Clarice faz mal à cabeça, mas aí você foi ver aquele anime, "O Túmulo dos Vaga-Lumes", e pirou mais um pouco.

Olho no espelho e falo com você: "agora pirou de vez". Você escuta, se confunde, tropeça nos livros pelo chão e não dá bola. E fala: eu vou, eu vou. E volta? Vai voltar? Volta algum dia?

Sua alma está sussurrando demais, também não é assim.
E tenho dito. Cuide-se. Cuidado. Pelo menos, não ande descalça quando faz frio, tá?

Ser ou não ser

Cobertor no sofá que acompanhava o filme da noite. A xícara cujo fundo ainda suporta um fino arco de café com leite já seco, embora bebido há pouco. Roupas sobre a poltrona, sutiãs inclusive, roupas limpas tiradas do varal cuidadosamente e casualmente separadas das roupas usadas anteontem, que estão sobre uma cadeira da sala de jantar. Sacos plásticos da compra do supermercado, livros e mais livros consultados ontem ou há meses, DVDs espalhados pelo tapete, pelas cadeiras, um até sobre a geladeira. As flores. Nas orquídeas, nas begônias, numa humilde violeta, porque as demais, com preguiça, só apresentam folhagens. Uma folha amarela no lírio da paz. Uma folha branca ao lado do telefone, mas muitas outras escritas ou rabiscadas pela mesa, pelo chão. No rádio, a música pop-melada-animada que me persegue. No CD, a mesma música. No suspiro da hora do banho, idem. Essa música algumas horas antes de ele entrar no apartamento, meia-noite e meia, cheirando a charuto e tesão. Mas essa lembrança nem tem mais cheiro. Ficou apenas a música.
Dia tão claro, tão claro, mas a casa anda meio e meia escura. Faltou abrir a janela do quarto – dificuldade para alcançá-la, entre mais roupas pelo chão, lençóis e sapatos sem par. Por que tudo é tão difícil? Não há resposta evidente. Há um porta-jóias que só carrega bijuterias, queridas todas, mas bijuterias, ao lado de um quadro encostado sobre o bufê improvisado da sala de jantar. Por quê? Não se sabe. Uma garrafa de Casillero del Diablo faz companhia. Ela cheia, o Bailey’s quase vazio. As coisas não fazem sentido. A desorganização, sim, a bagunça, sim, mas as coisas – elas por elas mesmas – não fazem sentido. Tudo é tão difícil.
Suco de maracujá à tarde, café puro e forte à noite, chá de camomila pela manhã. Isso não faz sentido. E o sistema nervoso central, será que é ele?, confuso e bagunçado. Não faz sentido. Difícil, difícil organizar as coisas por aqui. Dentro e fora. No apartamento, no sistema nervoso central, no lugar de onde saem os sentimentos e as emoções e as aflições e os fermentos espirituais. Chamo de coração. Não acho meu coração dentro do meu corpo – deve estar num lugar tão ou mais estranho que a touca para banho. A touca para banho está ao lado de um prato repleto de migalhas de pão integral, de um dicionário de sinônimos e antônimos (ah, tá, isso faz sentido), de um vasinho com flores da fortuna de cor tão bonita quanto melancólica. Com essa vizinhança absurda, não me parece fácil ser touca para banho. Encontrá-la, assim, despretensiosamente. O mesmo acontece com meu coração. Não o acho. Está perdido no meio da bagunça.
Ontem, toalha amarrada na cabeça procurando o pente para o cabelo (estaria ao lado do vinho?), me senti personagem de uma história escrita por não sei quem, não sei por quê, até isso é difícil. Nada faz sentido, mas o roteiro é tão coerente. As decisões sendo tomadas de modo impetuoso e voraz. O apetite transcende a gordura abdominal: está no excesso todo esparramado pelo apartamento, pelo coração (onde quer que ele esteja), pelos pensamentos. Grávida de possibilidades.
Eu personagem-ser-humano tive um pouco de frio e medo ontem à noite, depois do filme, mesmo com o cobertor. Agora, menos medo, menos frio – calorzinho até – mas sigo com o sentimento de estar do avesso. Estou do avesso... e tudo é tão confuso. Agarro-me às coisas concretas, como as notícias de jornal, que me dizem que pertenço de carne e osso, fluidos e surtos, a esse momento presente, a essa época, à vida presente, aos homens presentes. O avesso não é a sombra. O avesso é o avesso, o outro lado, essa bagunça toda, vizinhanças que não fazem sentido, sinônimos ajuntados de um lado e antônimos também agrupados, o que torna tudo ainda mais difícil. Um quebra-cabeça sem figuras, totalmente branco (como o da mãe de Dvir no filme Exuberante Deserto), só com encaixes. E eu não sei encaixar tudo.
Um alívio: aos poucos, me libertar da fabriqueta de bolinhos, aquela produção em série de massas fofinhas e adocicadas e tão cheias de conservantes e adicionantes e bicarbonatos e gordura trans, assepticamente acondicionadas em plastiquinhos coloridos com uma pulseirinha (ou, talvez, um chip) de brinde. Mas a saída do sistema-problema-produtividade-a-todo-custo-e-remuneração-mensal me deixou meio bêbada e meio equilibrista. Com apetite voraz. Sem papel no musical superprodução. Difícil. Tenho monólogos agora, mas nem todos têm paciência para acompanhá-los. Agora sinto que cada passo seguinte é conseqüência do passo imediatamente anterior que escolho dar. E que nada acontece conforme planejamos, o que me agrada muito e me deixa corada e sorridente.
Não agüento mais perguntas que faziam sentido antes, quando eu era bolinho querendo escapar da fôrma. Ainda quero entrar em forma, mas não desse jeito. As sinapses seguem a todo vapor, daí o suco de maracujá, seguido de café, temperado com camomila. Música de novo, caramba! Mundo, mundo, faça sentido por favor, só para aquietar meu coração – por onde quer que ele ande, pois eu não tenho nem quero ter controle. Tenho medo. Medo de ficar sem dinheiro, não pelo dinheiro, nem pela necessidade de mais livros ou roupas ou CDs ou saquinhos de Sabores da Terra de inhame ou cremes para peles sensíveis. Sem dinheiro para viver com alguma dignidade e para a realização de sonhos mais prementes e mais profundos. Mas o maior medo, o medo grande, líder dos demais, é encontrar-me novamente presa a um cotidano esquemático, superficial e frio, operando no automático por oito ou mais horas diárias de submissão e massificação. Dessa vida o que levamos? Essa calcinha esgarçada que visto hoje, por exemplo, não vai comigo à transcendência. Nem esses óculos que me caíram tão bem. Então por quê? Ficam minhas pinceladas, isso sim. E meu coração, feito cinzas (onde quer que ele esteja agora), adubando flores para novas orquídeas e folhagens de plantas preguiçosas. Me pergunto por que sou assim e não há resposta. As coisas são como são e não do jeito que cada um de nós gostaria que fosse. Simples, mas difícil.
Achei um pregador de roupas ao lado dos textos de Fernando Bonassi que tenho de estudar para o próximo encontro do grupo de teatro, “Entre Paredes” é um deles, porque é verdade que tudo chora quando é hora do choro, mas eu gostei mesmo de “Falatório” tirando palavras da minha boca: “Estão falando que animação também é sinônimo de confusão.” “Estão falando dos meus sapatos, dos meus vestidos, dos meus decotes.” “Eu fiquei em silêncio. Eles é que estão falando.” Junto estava um CD dos Beatles, faixa 9: “With a Little Help of My Friends”. Quem me entende p-o-n-h-a-o-d-e-d-o-a-q-u-i, q-u-e-j-á-v-a-i-f-e-c-h-a-r. Quem não me entende mais, porque perdeu a conexão, mesmo com banda larga, por conta de pavio curto, me respeite apenas e já ficarei feliz. E lhe acenderei uma vela, e lhe cantarei uma canção durante o banho.
Claro que dá saudade, mas as vagas são sempre limitadas, mesmo que existam muitas, e isso faz sentido.
Entre o pregador e os textos, estava um fio. Um fio comprido, comprido. Um fio que não sei o que é nem de onde vem ou para onde vai. Tenho a leve impressão que me levará a meu coração.
Então agora eu vou seguir o fio, mesmo que seja difícil. E que não faça muito sentido, sentido algum.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

VÔMITO

Quem são os 40 cretinos-cains que votaram pela absolvição do calhorda-caim Calheiros? E houve seis ignorantes que se recusaram a votar. Quem são esses 46 infames?

Por que eu tenho de ajudar a pagar o salário dessa gente? Saiam daí, seus inúteis! Comparsas! Cains! O Brasil é nosso, não de vocês!

E o calhorda-caim-mor ainda comentou que sua absolvição foi fruto da democracia, ou algo assim. Por que nosso presidente-carruagem ainda o defende?

Palhaçada, palhaçada. Porcalhada, porcalhada. Canalhice, canalhice, calheirice. Porca calheirice!

Novo termo, que essa reforma na língua portuguesa brasileira (ai, meu Deus) o incorpore: CALHEIRICE – subst.: (1) defeito de fabricação típico dos políticos brasileiros, especialmente os de centro, de direita e do governo, independentemente do partido a que pertençam, que os torna corruptos contumazes, ladrões sem-vergonha, indivíduos animalescos soberbos e arrogantes; (2) característica dos cains, das bestas-sem-cabeça e dos sociopatas de luxo; (3) adesão covarde e hipócrita, por pura rabice-presa, ao cidadão Renan Calheiros, comprovadamente indigno de qualquer respeito moral e ético.


E nós? O que faremos?

sábado, 8 de setembro de 2007

entre travessuras e confissões

Me despedi de Vargas Llosa ontem à noite, entre choros e risos, um aperto no coração e uma saudade antecipada da Niña Mala, essa mulher tão autêntica tanto mais falsa, e do Ricardito, esse louco apaixonado, de sonhos medíocres e devoção desmedida, que enchia a menina má de huachaferías. Saudade das aventuras malditas da Ninã Mala pelo mundo, porque assim Llosa nos levava – a mim e a Ricardito – a passear por países e épocas e situações muito ardentes e eletrizantes. Saudade da saudade de Ricardito, em sua añoranza doentia pela menina má. Saudade da satisfação do niño bueno ao fazer amor com sua amada malvada, em sorvê-la com gosto e penetrá-la com alguma dificuldade. Saudade da boa prosa – li em espanhol – de Llosa. Namorava o livro há tempos quando ele gritou por mim em pleno aeroporto internacional da Cidade do México. Não pude me conter y me lo compré. Foi comigo a Puerto Escondido, esteve na casa do homem que não quis mais ser herói (ai, que fofo esse homem!) e agora aterrissou na bagunça desse apartamento numa São Paulo mais terna que de costume, mais limpa também, apê em que recuerdos de viagens antigas se misturam com guias das viagens futuras, roupas e meias e sacos plásticos e caixas de CDs escutados à exaustão.

Ei, toca o telefone!
Será a Niña Mala querendo falar com o Ricardo?
Será Ricardito na linha com mais uma huachafería?

Enquanto isso, sabores se misturam por aqui e por ali. Tortillas na geladeira e agora tchai té no armário! Saudade de tudo. Saudade do país da serpente emplumada, dos toritos em Veracruz, da tlacuya em Puerto Escondido, daquela piña colada bebida no restaurante mais pop de El Pachán, em Palenque, sob o céu estrelado de Chiapas, padrisimo todo, saudade da copa de viño com Paul e María mirando el lago de Michoacán e sob o céu estrelado de Pátzcuaro, saudade do telão a céu aberto em San Miguel Allende com as aventuras de Pedro Infante e curtas tão interessantes. Saudade do homem que não quis mais ser herói! Saudade daquele dia na Cineteca, vendo “Play”, sentindo “Play” (chileno, mas cabia na ocasião), saudade de outras viagens, saudade de Istambul, caramba, saudade da sensação daquela noite na Tunísia, saudade do primeiro dia – o primeiríssimo – em Roma no ano 2000, saudade de Paris no verão, saudade daquele dia em que vi “Antes do Pôr-do-Sol” no cinema pertinho do Opera House e de Circular Quay numa Sydney estrelada e morna, ui, saudade da Praia do Leão em Fernando de Noronha, saudade daquele moço no albergue do Uruguai e da gente na rambla sob mais um céu estrelado e depois laralalá, saudade da lua cheia naquela prainha minúscula e linda de Itacaré, saudade da noite dos fogos em Genebra, à beira do lago, e o fofo Ekrem de Kosovo gritando 'mamma mia', saudade de quem sente saudade de mim neste exato momento, saudade do meu Ricardito chileno de Viña del Mar (tive o meu, em dose miúda)! Cadê você, Ricardito?

Estoy volviendo una huachafita!
O “El Pasado” continua esperando que a leitura siga, Sofía e Rímini deram lugar a la niña mala y al niño bueno, mas quem me chamou foi Ian McEwan com seu “Na Praia”. Comprei de supetão hoje, apesar do flerte de meses. Essa frase me cativou: “Eram jovens, educados e ambos virgens nessa noite.” Virgens somos todos na primeira noite, na primeira vez. Também comprei de supetão “Jerusalém”, do português Gonçalo M. Tavares. Tinha lido no blog do vintanne guapito que respeito muito (leu Proust no verão e Mann no inverno... ou terá sido o contrário?), um comentário bem favorável. E aí, na Livraria Cultura, topei por acaso com um outro amigo que respeito muito e ele me disse algo como: minha obsessão no momento são os livros do português Gonçalo Tavares. “Jerusalém” é sensacional (ou algum adjetivo nesse nível). Também estou louca para conhecer a Jerusalém de verdade, a Jerusalém das três religiões, a Jerusalém da fé, da história e das histórias. Achei tudo meio coincidência, um excesso de sinais do universo para já. Voilá: então, fazendo companhia ao meu novo guia de viagem, porque la nave va de novo em breve, temos McEwan e Tavares (na contracapa, comentário de Saramago: “Tavares não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater!”).

Saudade do primeiro retorno. E da primeira partida.
P.S.: E se eu contar que tive uma sessão Roberto-Carlos-Detalhes ninguém vai acreditar... Pois é, pois é. Pues sí, pues sí.
P.S. 2: SALVE TRICOLOR PAULISTA DO MEU CORAÇÃO! São Januário, excuse-moi, mas hoje foi dia de São Paulo.

Bem, bem, agora só está faltando conseguir escutar novamente “Aranjuez, mon amour”, saboreá-la como se fosse uma huachafería criada especialmente para mim por meu Ricardito imaginário (bem, ao contrário da niña mala, pues soy una niña buenísima onda, prefiro um Ricardito menos burocrático e mais ambicioso). Ouvi a interpretação de Miles Davis para “Aranjuez”. Me deixou sem fôlego de tão boa. O que essa música veio fazer na minha vida? Distraidamente, eu ali, blusinha branca, sainha marrom, chinelinho-sandália Ipanema, escutando a orquestra alemã de metais num dos recantos culturais de Querétaro, e pimba. Cooptada e captada e raptada por “Aranjuez, mon amour”. Agora estou apaixonada. Mi amor, amor mío.
Niña mala, o que você faria se estivesse no meu lugar? (Ricardito, preste atenção na resposta... pode ser uma dica ótima para você).

“Me equivocaba. Ahora sé que tu eres para mí la felicidad.”

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Corações.

Depois que todos já viram e comentaram, eu que caminhava em rotas nunca antes trilhadas por mim mesma, recém-acolhida a uma Paulicéia mais limpa e mais luminosa (ao menos, para meus olhos ternos), fui, numa dessas tardes pré-primaveris, assistir ao mais recente Resnais, “Medos Privados em Lugares Públicos”. Tinha lido alguma coisa a respeito antes de decolar. Ao aterrissar, semanas e semanas depois, obviamente não me lembrava mais de nada. Assim que o vi totalmente disponível. O que tenho a dizer? Talvez um Drummond dos mais melancólicos, um Vinícius dilacerado, um Chico dolorido, uma canção de Madredeus daquelas que dão nó no peito. Impressionante.

Momentos fugazes e fundamentais em fragmentos de vida, em um dos fragmentos que compõem cada uma daquelas vidas. Fragmentos de sentimentos em algum momento da vida. Fagulhas e chispas despertadas sob uma neve implacável, numa Paris gelada, distante e difusa. É Paris, mas não importa. Os espaços externos são bonitos: alguns coloridos, outros clean, todos limpos e corretos, mas também isso não importa muito. A grande questão, no filme, passa pelos espaços internos. Pelas veias e artérias dos personagens, por suas memórias, por seus desejos e fantasias, por suas buscas, por suas fraquezas e por suas defesas. Por seus corações, portanto. Pela solidão que cada um experimenta a seu modo, a seu próprio tempo.

A implacável neve contorna a solidão dos personagens, dando-lhes disfarces e máscaras. Estão todos muito bem, muito ativos e presentes no cotidiano que desenharam. Estão, no fundo, todos muito sozinhos, melancólicos, dilacerados e doloridos. Estão todos circulando por lugares públicos numa tentativa às vezes desesperada, outras vezes muito discreta, de ocultar seus medos privados, tão privados, tão profundos. Seria bom se esses medos ficassem ocultos também para eles mesmos, para cada um deles, mas sabemos todos que é impossível. O público sempre lembra o privado de que ele, privado, existe e está ali. Em algum instante, escapa pela janela.

Nenhum dos personagens busca a coerência. Todos são incoerentes; no privado, divergem da imagem pública que convenientemente usam. No público, não são como no mais privado deles mesmos. Humanos, enfim.

Valeu, Resnais. Filmaço. Bem dirigido, bem atuado, bem iluminado, tão visceralmente verdadeiro.
É um longa-metragem para ser visto quantas vezes o coração pedir.
De tão humano, congela e esquenta. Desconfortável, acolhe nossas dores.
Depois da partilha no lugar público que é o cinema, cada qual volta à casa para ter com seus medos privados. A sós.


P.S.: Palmas ao ator Pierre Arditi, que faz o barman Lionel numa interpretação magistral, na qual menos é mais. Sensacional!

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Da aprendizagem das velas.

Era uma menina ainda quando pediu, de presente de aniversário, uma vela. “Sim, sim, vai ter velinha em seu bolo, filha”, disse a mãe. Não, não era nada disso, e a menina teve que explicar que queria uma vela de presente, uma vela só para ela, uma vela sem hora de acabar, sem hora certa para se apagar, uma vela que brilhasse bonito e quente. Então, num dia ensolarado e feliz de fevereiro, além da boneca e do livro, a menina ganhou uma vela dessas que se usam em procissão, comprida e fina, inodora e incolor. Namorou por dias a fio a vela até arriscar-se a experimentá-la. Era um sábado. Acendeu-a com cuidado à tarde. “Não vai queimar nada, hein”, exclamou o pai. O irmão acompanhava-a, curioso, iluminado lateralmente pela luz vibrante da vela da menina. A luz, ah, essa luz. O sorriso da mãe, sua batata da perna esquerda que a menina achava linda que só. Os pés e a barrigota divertida do pai. As mãos miúdas do irmão (naqueles tempos) miúdo. A mãe de novo, a careca do pai, ela mesma no espelho, sua boneca Susi, a Narizinho da capa de seu livro do Monteiro Lobato, seu tênis furado, a bicicleta Ceci, o diário, a pasta de papel de cartas. O porteiro que veio entregar uma correspondência. Obteve a permissão dos pais para ir ao playground com a promessa de não queimar nada nem ninguém. O jardim. Os amiguinhos. Os vizinhos do quarto andar, que chegavam cheios de sacolas de supermercado. O porteiro de novo, que só dava risada. O vaso ao lado do tapete. O canto do tanque de areia. O faxineiro e sua vassoura. A velha senhora reclamona do bloco B. Mais uma vez, o irmãozinho, que não tirava os olhos da vela. Os sorrisos da criançada que a rodeava. A parede cheia de sombras – mãos transformando-se em bichos, sorrisos virando pinturas, a ciranda formada espontaneamente. E já era noite, quando o pai chamou os dois filhos. Eram ainda três quando subiram, pois a vela teimava em brilhar, presa entre os dedos da menina. Tinha se tornado um toquinho no momento em que a mãe grudou-a na pia da cozinha. Ao sair do banho, a menina encontrou apenas um punhado quente de cera. Missão cumprida, pensou, distraidamente.
A luz, ah, essa luz.
E foi a partir desse dia mágico, quando era ainda menina e mal sabia das coisas (apenas as intuía, talvez), que ela descobriu sua verdadeira vocação. Acender luz. Dar luz, dar à luz. Compartilhar luz. Luzir, iluminar-se e ser iluminada, deixar-se iluminar. Mas esse aprendizado, o da descoberta da mais profunda vocação de um ser humano, é um dos aprendizados mais difíceis. Parece maratona de intermináveis quilômetros combinada com corrida de obstáculos e estrada para o litoral cheia de curvas e declives. E haja serenidade para alcançá-lo nesse cotidiano entupido de preocupações inúteis, exigências fúteis, valores rasos e um montão, montão, montão mesmo, de pseudo-eletricistas.
Ah, a luz. Essa luz.
Sem saber, porque a vocação também vai saindo aos pouquinhos, como goteira ou torneira mal fechada, a menina já adolescente, depois jovem, em seguida adulta, seguiu acendendo velas. Iluminando cantos escuros e também, inadvertidamente, inexperiente, janelas já iluminadas (algumas esquecidas disso, mas tudo bem). Cantos escuros de pessoas queridas, cantos escuros de desconhecidos. Cantos escuros dela mesma. E quanto mais iluminava, gradativamente consciente do que se passava, mais se deixava iluminar e se surpreendia com os aposentos de seu próprio coração.
Vela nas mãos.
Deu-se conta.
Teve uma iluminação?
Pensou: epifania. Disseram-lhe: diosidade. A amiga: escutou a alma, que lindo! O moço jarocho: gracías, tu fuíste esa luz. O colega do grupo de performance: que pessoa iluminada. Jesus Cristo, via Bíblia: ninguém acende luz para deixá-la embaixo da cama. A amiga sul-coreana, lá na distante Montreal: uma vela para você se lembrar da gente. A amiga mexicana em Puebla: esse presente é para você pôr suas velinhas e enfeitar sua casa. A amiga brasileira num aniversário: espero que você goste de velas. O ex-namorado norueguês: vinho com entardecer ou vinho com velas?
A mulher-moça-menina aprendeu, então, as velas de iluminar e as velas de velejar. Combinou-as, assim, divertindo-se e saboreando-se. Descobriu as lâmpadas, os candelabros, os abajures e spots, conheceu rapaz no avião – ela para Puerto Escondido, ele para Guadalajara – que desenhava “luzes de mesa”.
A aprendizagem do velejar com velas e ventos doeu, doeu pra caramba, mas não foi em vão. A mulher que aniversariava em fevereiro envelhecia, apagando velinhas, mas rejuvenescia acendendo-as em todas as partes – especialmente, acendendo as velas invisíveis, essas que a gente mais fosca, tosca e desanimada não logra enxergar, não quer enxergar, porque pensa no dinheiro, no tempo, no poder, no rótulo, no sucesso e nos cocôs de passarinho e nas cascas de banana do caminho (em vez de desfrutar tão-somente), no chuvisco que encaracola os cabelos e na flacidez da pele (quando a da alma já escorregou até o umbigo). Essa gente que busca reluzir de ouro e pó de purpurina, mas que volta ser borrão às escondidas.
Porque a mulher-menina-de-fevereiro (peixe dentro d’água, quando no mar, quando no ar, quando entre as gentes, mas peixe quantas vezes fora d’água, ui, aprendizado de vida) sempre soube que todo ser humano nasce, pelo menos, com uma vela, uma vela imensa, tipo Círio de Páscoa. Às vezes, com pavio mais curto, mais seco, mais úmido, mais fino, mais frágil, mais grosso, menos apto, mais inapto, pouco atrativo, deveras atrativo, tímido, atirado, apressado, lento, lerdo, verde ou roxo, preto ou branco, colorido, fedido, cheiroso, curto ou comprido, silencioso ou estridente. Mas todo mundo tem um – um Círio, um pavio. Pelo menos um.
Obviamente houve dias em que a mulher sentiu-se apagada e opaca, uma noite escura num dia claro. Lógico que houve dias em que a mulher mais parecia uma fábrica de fogos de artifício, iluminando até demais, gastando energia adoidada. Mas a descoberta da luz e da vocação de acender velas sempre suavizou os tropeços e topadas, as derrapadas e as cagadas, os excessos e os insucessos. As velas viram montinhos de cera, montinhos que podem dar origem a outras velas – não mais as mesmas, outras. Então, com o aprendizado das velas, velejantes e vibrantes, velas que brilham e velas que guiam, veio também o aprendizado do desapego. Ninguém pode impedir que a vela cumpra sua missão até o fim do pavio. Mas o fim não é um fim definitivo, é sempre um recomeço, um fim para um começo de algo diferente – e não menos iluminado.
Era uma mulher que acendia velas, então. E quanto mais as acendia, como já tinha percebido na infância, mais se sentia acendida e iluminada pela luz dos outros.
E, novamente, e desta vez mais forte e mais visível, ela peregrinou para iluminar e ser iluminada. E quanta coisa bonita viu, sentiu, provou, ouviu, falou, partilhou, descobriu, sonhou, desenhou, escreveu. Porque a luz não pode morrer e nosso dever, como seres humanos, homos sientens (esqueçamos um pouco essa função “sapiens-sapiens-sapiens”), é brilhar e fazer brilhar. Porque minha luz só tem sentido se encontra a do outro, eu acredito. Como diz o poeta espanhol Antonio Machado, valemo-nos de fé poética, “não menos humana que a fé racional”, e creiamos no outro.