quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

* cacto *

E, quando o efeito passou, não se sabe bem se pela manhã bem cedinho ou perto da hora do almoço, ouviu-se um ca-ta-bum tão discreto que nem parecia som. Um acorde perdido entre espanto e barulho de passos, canto de pássaros e fechaduras de passagens. Quando o efeito passou, ela virou mulher e ele voltou a ser menino. Ambos se olharam e, por fim, se viram. Enxergaram-se, ainda que previssem o susto. O desencanto. O deslocamento. O descompasso. O pequeno fio de abismo entre eles se transformou num penhasco de grandes proporções. Dez anos passaram num segundo – envelhecendo-a, rejuvenescendo-o, afastando-os.

Você dirá que, segundo a alma etc., segundo o coração etc., citará frases bonitas que justifiquem seu pensamento etc., mas você nem imagina. Você acha muitas coisas, porém, talvez, agora seja mais adequado manter o silêncio. Ou melhor: não intervenha nesse silêncio que se formou entre aqueles dois.

Não houve reencontro depois que o efeito passou. Ambos se desencontraram. De verdade. Desencontraram-se. Olhavam-se, mas não se viam mais. Ele via uma mulher mais velha. Ela via um garoto mais novo. Qualquer possibilidade entre eles parecia agora absurda, obscena, nada factível.

Ali, naquela praça, ela seguiu para a esquerda sem olhar para trás, apenas para dentro. Ele tomou a direita, também sem olhar para trás, somente para dentro. O choque, um ruído afetivo. Uma raiva miúda e repentina. Nó na garganta, um quase engasgo. Depois, a falta. A ausência, o vazio. Aquele pequeno vazio que sobrevive agudo como um pequeno cacto doméstico nos espaços interiores, mais íntimos, por anos a fio.

sábado, 11 de dezembro de 2010

meias

Se nós fôssemos palavras escritas com uma velha máquina de escrever, ele seria um borrão. Um “b” encharcado de tinta, as teclas “bo” batidas ao mesmo tempo, espatifadas na folha de papel, manchando o espaço entre as outras letras. Se nós fôssemos borboletas, ele seria uma mosca na parede – uma mosca displicentemente esmagada na parede. Se nós fôssemos dias, ele seria aquele mais nublado e cinzento, com chuvas encardidas e ventos gelados.

Em meio a tanta falta de cor, à insipidez de suas calças marrons e de seus suéteres pretos, à voz grave e indefinida, aos olhos caídos e desiludidos, lá estavam elas ousadas e pueris: suas meias coloridas. Cinza, marrom, negro, opaco, apagado, estático – todo um contraste com a alegria marota, com a bossa de suas meias. E ele fazia questão de misturar os pares, de ousar combinações. Por meio de suas meias, ele vivia a ousadia que lhe faltava no cotidiano, a coragem, a picardia, sua verdadeira revolução. Mas ainda que insistissem em carregá-lo para horizontes impensados, ele resistia. Ele resistia.

Se fôssemos, diante de seus olhos, homem e mulher, poderíamos viver o clichê de uma história de amor ou então partilharmos caminhos trôpegos traçados pela combinação entre pés viajantes e meias coloridas. Se fôssemos. Se um encontro fosse possível, ele não estaria tão cinzento, tão escuro, tão borrado. Ele seria uma mosca ressuscitada e tornada vagalume ou abelha. Mas ele preferia os desencontros, os lapsos, os abismos. E se escondia nas meias coloridas, quando sentia que correnteza da vida podia ser demasiado forte ou quando suas pernas teimavam em levá-lo de e para os mesmos lugares de sempre.

domingo, 24 de outubro de 2010

nuvem feito onda

No dia em que meu chão sumiu, uma nuvem gigante avançou feito onda céu adentro. Eu estava, em pé, no Largo da Carioca, sem saber para onde ir: se para outros braços, se para o mar de Ipanema, se a chorar aos pés de Santa Teresa, se jogar minha sorte nas ruazinhas da Urca. No dia em que meu chão sumiu, eu era simplesmente uma mulher sozinha tentando absorver o ir e vir de tanta gente. Uma paulistana em meio a arranha-céus cariocas, enxergando familiaridade nos desconhecidos, torcendo para que aquela nuvem engolisse minha tristeza. Afinal, ele acabara de telefonar: me desculpa, mas não quero mais te ver.

Tínhamos nos conhecido numa de suas breves passagens por São Paulo a trabalho. Foi numa livraria, durante o lançamento de um compêndio de filosofia. Entre taças de vinho, ignorando os escritores, engatamos uma conversa sobre nossas banalidades mais essenciais. Quando ele me levou para seu hotel, para ver da cobertura do edifício a cidade iluminada naquela madrugada fria e aí sim falarmos de nossas vãs filosofias, eu ainda não tinha decorado seu segundo nome nem ele o meu. Luís-alguma-coisa, carioca, conversa com Ana-tralalá, paulistana, sob um céu nublado universal. Houve um beijo, um daqueles beijos que valem por semanas de malabarismos de sedução, e nada mais. Nem precisava.

Rumei para casa, ainda em transe pela noite tão especial, retomando frases dele ditas com charme e sotaque como se tivesse na mente um gravador quebrado. Na manhã seguinte, ele voltou ao seu “pequeno paraíso de dois quartos em Copacabana, a três quadras da praia”, com a promessa de não desaparecer. Nas semanas seguintes, vieram telefonemas, e-mails, torpedos via celular, muitos suspiros, risadas e um CD, que chegou para mim na véspera de uma viagem dele para o exterior. Assim você não me esquece, ele disse. Era uma coletânea de choros, chamada “Noites Cariocas”. Junto, veio um bilhete: em cada faixa, imagina que eu te conduza por meus recantos preferidos no Rio.

Naquele mês sem qualquer notícia dele, ao som de chorinhos diversos, recriei uma Cidade Maravilhosa dentro de mim, só minha e dele, emprestando da memória fragmentos já opacos de uma viagem feita há tempos e recusando qualquer notícia vinda da realidade (blitz, mortes, morros, violência, arrastões). Comíamos bolinho de bacalhau nos botecos pés-sujos nas tardes de sábado, passeávamos de mãos dadas por Ipanema nas manhãs de domingo e assistíamos juntos a shows diversos nas casas noturnas da Lapa. Sempre que eu me perdia pelas vielas de Santa Teresa, ele me encontrava com um sorriso e me presenteava com beijos como aquele da primeira vez. No fim de tarde, tomávamos suco num quiosque da Lagoa Rodrigo de Freitas. Depois, seguíamos com nossas vãs filosofias e banalidades essenciais, entre um chope e outro na Cinelândia. O que seria de nós, Luís e Ana? E, na Toca do Vinícius, nos deliciávamos com os segredos desvendados pelos chorinhos todos. Eu quase me esquecia que vivia em São Paulo; pensava que ao virar a esquina da Paulista com a Consolação, fosse encontrar o Real Gabinete Português de Leitura. Que ao caminhar no centro, logo veria a igreja de São Francisco da Penitência. E que, ao sair do trabalho com o dia ainda claro, pudesse caminhar um pouquinho à beira-mar.

Já havia se passado mais de cinco semanas, quando me dei conta de que não tinha ideia se Luís já voltara do exterior. Os passeios imaginários pelo Rio de Janeiro, acompanhados pelas faixas do CD, haviam amortizado aquela saudade doída e permeada por um desejo crescente e sôfrego de tê-lo nos meus braços. Telefonei, deixei recados. Escrevi e-mails, mandei torpedos. Um silêncio do outro lado. Dúvidas: será que ele está bem? Ansiedade: será que ele conheceu alguém?

Alguns dias depois, recebi algumas linhas dele. Pedia desculpas pela demora em responder, dizia que mal voltara de férias e já lhe tinham entupido de trabalho. Talvez viesse a São Paulo em algumas semanas. Ah, o CD? Havia gostado? Que bom. E, nada mais, um beijo, boa sorte. O que me chamou atenção, aliás, como se fosse um berro no meio do metrô, foi o fato de ele ter começado o e-mail com “Querida Paula”. Eu, que era a “DoidivANA”, a “ANAlógica”, a “Mariú-ANA” e outras Anas loucas, me transformara na séria e compenetrada Paula, a srta. segundo nome, segundo escalão, mera desconhecida. O que teria acontecido ao Luís, o obscuro Alberto?

Comprei uma passagem para o Rio no ímpeto. Fiz as malas, entre afobada e desaforada, enquanto ouvia o CD horas a fio. A libido, que não dava trégua, misturava-se à indignação. Telefonei, deixei recados, escrevi e-mails, mandei torpedos avisando que eu estaria lá, diante dele, totalmente Ana. Ele não se manifestou. Viajei mesmo assim. E, no dia em que meu chão sumiu, saí do Metrô Carioca e ouvi-o falar, no celular: me desculpa, mas não quero mais te ver. Uma nuvem gigante avançou feito onda céu adentro. E me levou de volta a São Paulo, horas depois, sem sequer ter confirmado se aquele Rio de Janeiro, o das fantasias, existia mesmo.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

~~ oceânica ~~

"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: quero uma verdade inventada"
(Clarice Lispector)



Pois hoje, embora o sol não tenha se dado ao luxo de acordar cedo, consigo ver a linha do mar. Consigo ver o mar. Consigo me imaginar, oceânica e ondular, alcançando costas e continentes nunca antes tocados ou desbravados.

Pois já fui uma pessoa não-pessoa para um certo alguém-ninguém.
Pois já fui alma penalizada despenada, dispensada pelo simples fato de encantar alguém-ninguém desencantado.

Sonho baías, sonho encostar minha cabeça numa falésia aconchegante, sonho abraçar uma ilha-mundo. Oceânica, pois sim.

Pois me tornei um vento úmido e frio que ele espanta com álcool, flanela e fósforos.
Pois o que nunca soube me falar agora solta feito mariposinha de verão: e que mulher você é, que mulher.

Pois nunca fui uma “que mulher”. Fui uma pessoa despessoalizada, despersonalizada por um sentimento peçonhento de alguém-ninguém medroso e vaporoso.
Pois nunca estive ali, naquele recanto quente com os olhos cinzentos voltados para mim. Pois sempre estive cinza, ainda que colorida e quente, diante daqueles olhos que não enxergavam futuro em mim.

Hoje, entre identidades, identificações, passaportes e tarjeta de extranjera, tento recuperar o prejuízo que aquele alguém-ninguém provocou em minha alma tão humana e tão feminina. Por isso, quero entregar-me à pessoalidade – de mim, de si, do mar.
Por isso, não mais alguéns e sim homens.

Para um homem, uma mulher.
Para um alguém-ninguém, nada. E não no meu mar.

sábado, 18 de setembro de 2010

expurgo

"E eu vim-me embora, meu Deus, eu vim-me embora."
Lixo e Purpurina, Caio Fernando Abreu




Hoje não tem beijo. Nunca mais vai ter. Não olho para trás, mas minha nuca o observa sorrateiramente. Ele ainda está lá, em pé, olhos baixos, ombros caídos. Sua prepotência contrasta com aqueles malditos ombros caídos. Agora constato: ele parece um armário mal-acabado. Um armário de cores pálidas, bloco compacto sobre duas palafitas. Ele fica lá, em pé. Ele espera a outra. Ele nem se importa mais em disfarçar. Não, me disse, devorando um bolo de chocolate – porque ele adora doce, porque ele se empanturra de doce para não se empanturrar de sentimentos, porque ele é feito de pedra e de pavor – não, não quero pertencer a ninguém. Então, antes de você, depois de você, antes das 20h, durante as 20h, depois das 20h, sempre haverá alguém. Uma outra, qualquer outra. Assim como você é uma-qualquer-você. Uma pessoa, diz ele ao telefone à outra, estou com uma pessoa. Naquele momento, diante daquele homem com uma horripilante e minúscula baba de desprezo escorrendo do lábio fino e encardido, naquele exato momento, não sou nada além de uma pessoa. Uma pessoa desprovida de pessoalidade, sem cheiro, sem sexo, sem suco, sem sangue. Uma pessoa-rubrica, um nada-pessoa.


Hoje não teve beijo nem nunca mais haverá. Não olho para trás, mas sei que ele permanece em pé, derrubando ainda mais os ombros, como se não suportasse a própria prepotência. Em dois, três segundos, tudo estará acabado, quando eu cruzar aquela porta, quando a outra chegar, talvez antes até, quando ele se sentar, tudo estará acabado. Definitivamente. Não, eu não olho para trás, mas minha nuca revela que ele procura migalhas sobre a mesa, que ele sente um certo desconforto, que o relógio marca um atraso que não deveria acontecer: o ponteiro já deveria ter avançado à hora seguinte, mas teima em girar em torno do traço anterior. Um traço-pessoa, um apêndice de qualquer coisa que deveria ter ficado dentro do armário.


Não guardo mais beijos, todos ressecaram, todos estragaram, cheios de carunchos, cheios de vazios, cheios de cansaço. Lavo desesperadamente meus lábios que quase tocaram aquela baba repugnante que pingava daqueles lábios finos e cínicos. Lavo desesperadamente as mãos que quiseram investigar as ranhuras daquele armário blindado. Lavo meu corpo, esfrego até sangrar todas as partes que roçaram o não-corpo daquele não-homem. Sangro, sangro doidamente, doídamente, sangro infelicidades dormentes, mas sangro humanamente até me expurgar.


Se eu pudesse, quebrava aqueles malditos ombros caídos para eles nunca mais derrubarem alguém. Se eu pudesse, arranhava aquelas infames palafitas que sustentam inverdades e sarcasmo. Se eu pudesse, ah, se eu pudesse, eu empurrava de volta toda a crueldade vomitada por aqueles odiosos e repugnantes lábios finos.



Tenho muito nojo.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Ah, esse som esse suor esse sumo que escorre de você direto direito diametralmente perfeito Ah, esse sim esse sei esse a gente o tudo o nada agora e depois Ah, quanto quando quase creme acinzentados doces esses olhos sua minha sim minha boca rósea rósea e túrgida Ah, as costas as pernas as coisas apenas porém tão e tão Ah, as mãos a respiração sua versão minha tentação nossa vamos voz vez de novo Ah,

Ah

Ah

Ah

domingo, 12 de setembro de 2010

rascunho

tinha algo fora de lugar naquele quadro de cores fortes e uso tão adequado de luz, com dois personagens bonitos, embora imperfeitos em seus traços, diferentes mais aparentemente condizentes, tudo em perfeita harmonia: eles, o ambiente, as cores, a luz, o então, o desejo, os olhares, os sorrisos, o antes, o durante, o tempero, até as entrelinhas. mas tinha algo que faltava, tinha sim. àquele quadro tão interessante, do qual se podia dizer um quase-começo de uma quase-história de um quase-amor, faltava profundidade.

fugidios

Haveria de encontrar uma epifania escondida naquele estar-ali. Estar-ali com ele. O sol continuava em seu lugar, as ruas reluziam de alegria simples de existir. No ar, misturavam-se cheiros: cigarro, fuligem, perfume, fritura, doce, poluição, suores e hálitos. Muitos hálitos. A vida seguia normalmente, às vezes esperando o sinal verde para atravessar a faixa de pedestres. Ou freando no vermelho, se estava muito acelerada.
A epifania. Onde estaria?
Houve um relampejo de algo precioso. Um relampejo apenas, em meio à floresta onde o caçador gaguejava para si mesmo a vitória de ter laçado sua mais almejada presa. A presa não se sentia presa, sentia-se livre, selvagem, dona de si. Num pequeno momento, caçador e presa foram apenas dois seres humanos unidos por um desejo de lançar-se juntos a algum voo especial. Um desejo que não se consumou.
Estar-ali.
Talvez a epifania se encontrasse justamente encravada no estar-ali, naquele momento, naquela partilha diáfana e fugidia, naquela partilha que queria a todo momento escapar daqueles dois, um tão preocupado (com a caça), outra tão despreocupada (com ser presa). O ter-estado-ali, na intensidade de todos aqueles segundos, foi o que de mais belo poderia ter acontecido àqueles dois. Sim, ela concordaria, aí residiria a epifania.
Encontrara-a, por fim!
Ele voltaria à floresta, ao caçar. Satisfeita com aquela miúda descoberta, ela velejaria além-mar.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

La ra la da

Lara, doce Lara, andava no meio-fio, cantava a meia-voz, dormia no meio da cama e sempre estava onde dizia estar. Lara ralava cenouras enquanto meditava sobre ramos, amoras, amores, aromas, marolas – sua vida, enfim. Lara refletia sobre o nada – sabia que “nada” em bósnio (ou croata, ou sérvio) significa “esperança”? Em bósnio, nada é tudo. E tudo era justamente o nada (em bósnio) que Lara desejava. Ali estava Lara, à beira mar, na beirada das rotas e dos rumos alheios, sempre buscando uma trilha selvagem-miragem. Ah, Lara, suspirava ela para si mesma e para as joaninhas dos matos adentro, das flores afora. Ah, Lara clara, Lara escura, Lara amendoada, Lara escondida, Lara cindida. Coragem, Lara, caramelo chinelo chave chuva luva lava Lara. Laura laureada no aprender.


Dia desses, Lara assim, Lara assado, Lara saiu para passear e não voltou mais cedo, mas mais tarde. Descobrira, por fim, que era a autora e a personagem de sua própria história. Porém, não a revisora. E isso era muito, muito bom. Sus sur rou La ra la da.

sábado, 31 de julho de 2010

gota

Insondável e indomável, inventava dócil e vagarosa o momento em que ele se lançaria decidido na imensidão que ela julgava oferecer. Sem volta.

Snezana e o Homem de Pedra

Ela se chamava Snezana, “Branca de Neve” em sérvio. Mas ela poderia se chamar também Meryem, “Maria” em turco, ou Francesca, “Francisca” em italiano. Seja o que for, Snezana era Snezana. E ela é a personagem dessa historieta.

Snezana era intensa e densa, era rosada e quente, bem diferente de seu nome pueril e um tanto frio. Ela saltava para dentro ou para fora com um impulso digno de uma atleta; mas em vez de preferir as pistas de areia, ela praticava seu esporte nos relacionamentos, especialmente os amorosos. Snezana se entregava com o mesmo ímpeto com que desistia; vivia narrativas inteiras, com começo, meio e fim, independentemente de seu parceiro em questão. Ele podia ser omisso, insensível, apaixonado ou o último dos românticos desesperados, mas Snezana trilhava dócil seu caminho singular: um salto para entrar, outro salto para sair. Não havia nunca volta: tudo era tão intenso e tão denso, tudo acontecia tanto naquele curto espaço de tempo em que o corpo ficava no ar e a alma alcançava uma trajetória curvilínea tão próxima e tão distante do infinito, que nenhum homem tentava retomar o relacionamento desde o início. Porque já havia provado um fim. Ou porque Snezana já o havia enterrado há muito tempo. Ou porque as cartas haviam envelhecido sobre a mesa, tesas, sóbrias, insolúveis. Xeque-mate. Na rainha ou no rei?

O último desses saltos de Snezana aconteceu faz pouco. Ela achara que havia encontrado alguém com a leveza adequada para seu momento esvoaçante, embora sempre denso e solene e veemente. Mas, na verdade, se deparou com o Homem de Pedra. Ele era leve, sim, apesar do peso do nome, e também objetivo e direto. Mas era duro, duro, duro. Era seco. Não tinha coração. Não era mau ou cruel, mas tampouco era sensível ou gentil. Não era. Enxergava Snezana como uma fêmea desprovida de singularidades: se a prova de toque confirmasse “mulher”, estava tudo bem para ele. Ele não queria conversas; aborreceu-se ao terceiro encontro, de novo conversa furada?, nem se importou com os beijos trocados. Como um super-herói dos tempos contemporâneos, ele dominava todos os sistemas de siglas secretas e anglicismos com maestria, não sofria com as mazelas cotidianas, tinha força de sobra e não queria nada mais elaborado do que sexo. Com as necessidades básicas satisfeitas, poderia salvar o mundo. Não o mundo de Snezana, nem o mundo de sudaneses, palestinos ou afegãos. Um certo mundo, válido provavelmente, mas com outras perspectivas.

Snezana saltou quando o Homem de Pedra já se preparava para sair. Aliás, ele saiu sem dizer “tchau”, deu de ombros e não respondeu ao último alô de Snezana. O fim da história para nossa personagem precisou ser acelerado, já que ela até que estava acreditando que um dia o Homem de Pedra viraria gente de novo. Fim, enfim. De novo.

E Snezana segue muito mais esperta e menos iludida que sua homônima dos contos infantis. Come maçãs sem nenhum problema e desconfia dos anões sentimentais que cruzam seu caminho. Tem pedido para os aspirantes a príncipe ou a super-herói deixarem currículo com carta de motivação, mas nem os lê. Passa os dias colhendo fagulhas de sol e exercitando seus saltos. Mas um dia, ela sabe, precisará se aposentar e escolher um canto para não mais abandonar.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

...

Às vezes, quando caminhava pela Avenida Paulista, contava as graminhas teimosas que quase surgiam nas beirinhas das calçadas. As beirinhas. Quase. Graminhas teimosas. Na Avenida Paulista. Às vezes. Quando, quando. Caminhava e contava.

Os pensamentos diversos, universos, eram todos um incremento de seu momento de suspiros e voos. Voos voados, voos planejados, voos caminhados. Tanta gente gente gente, tantas fagulhas de histórias misturadas num instante preciso: dá-lhe, já! A noite de ontem, a conta de hoje, o almoço de amanhã, a escola dos filhos, a escolha dos pais, a escada dos avós, a escama dos peixes, a esquisitice dos chefes, a exuberância dos amantes, a gravata de presente, a gravação do parente, a cirurgia e o paciente, o passo, o piscar, o pisoteio singelo nas graminhas teimosas que quase surgiam nas beirinhas das calçadas.

Ah, gemia gostando, ela equilibrava-se nas beirinhas das calçadas da sistema-sufocado-sugador, na beirinha quase caindo, nas beiradas das convenções, na beirada do edifício do amor: pulo ou não pulo. De que amor estamos falando?

Ah, um pequeno vaziozinho ao notar que ele desistiu logo que constatou que ela contava graminhas, que ela acumulava graminhas, que ela andava pelas beirinhas, enxergando e ouvindo coisas que ninguém mais sabia. Porque ele não entendia. Ele desistiu porque não entendeu. Ao não entender, não quis saber. Não quis arriscar. Não quis acompanhar a mocinha risonha em suas caminhadas pela Avenida Paulista. Tinha mais o que fazer: outras garotas, outros advérbios, outras praticidades. Sem tempo para graminhas. Sem coragem para beiradinhas. Sem vontade para ela. Então, tá.

Às vezes, quando circulava por São Paulo, observava a mudança de estação pela janela do ônibus e contava os sorrisos teimosos que quase escapavam dos transeuntes distraídos. Distraída, transeunte. Sorria. Mudava, mudava. Às vezes. Estação circular. Paulo. Ônibus. São... teimosos? Escapava.

domingo, 27 de junho de 2010

coisas que esquecemos pelo caminho

Entre os sentimentos em desuso, amontoados num canto do coração, sentimentos esquecidos sob a luz escura dos fundos, alguns com certa poeira, outros com certo desdém, encontrei aquela ternura com caimento quase perfeito que descobri, em meio a poesias e exemplares da arquitetura franco-árabe, em 2006. Comíamos pistaches – não tão bons quanto os de Istambul – e falávamos de amor. Beijamo-nos em La Goulette, vendo o mar, o céu estrelado, promessas de um novo mundo. Perdida, entre quereres e decepções, entre ausências e silêncios alheios, estava a lembrança daqueles olhos azuis que me tiravam do anonimato e me nominavam: mulher. Talvez eu já tenha encontrado aquele cujo encaixe parecia exato, embora não fosse totalmente; mas, na imperfeição doce de nossas identidades, nos encontrávamos com nós mesmos e um com o outro. Ele, contudo, me enchia de porquês enquanto o que eu mais queria era desfrutar daquelas pequenas descobertas sensoriais que vinham à tona quando estava lá, a seu lado. Por fim, deu a lógica: eu aqui, ele... quem sabe. Sou eu quem guarda essa pequena trança colorida, iniciada em 2001, retomada em 2006 e ainda inacabada. No fundo do armário, quase mofada, sem utilidade definida.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

pequetita

(dos tempos de criança, mfv)

Era pequena, tinha bonecas, mas gostava mesmo de brincar com cotonetes. Ou o genérico bastonetes de algodão, tanto faz. O careca era o príncipe; a de cabelo comprido, a princesa. Às vezes, com o batom de mamãe, tornava a criada ruiva. Passava pasta no outro, fazia o irmão punk da alteza. Se esfregasse o algodãozinho no pó compacto, logo criava a moça má, que queria roubar o príncipe da princesa. O lago, formado por uma poça de água misturada a talco no tampo de vidro da mesinha da sala de estar, era turvo e tenebroso. Brincos e pulseiras faziam as plantas, as pedras, os pássaros. Já havia melancolia ali, naquela singela brincadeira de criança. Por mais felizes que as histórias terminassem, meus personagens nunca estavam 100% felizes. (Um moço me pergunta hoje: é possível ser 100% feliz? Uma moça me pergunta hoje: você consegue ser 100% alguma coisa?) Mas meus singelos bastonetes de algodão tampouco eram 100% infelizes. Eram melancólicos e solitários, ainda que a princesa ficasse com o príncipe no final, que a criada ruiva quebrasse padrões e se casasse com o punk, que a moça má virasse boa e criasse patinhos no lago turvo. Quando meus cotonetes se davam conta de que não passavam de bastonetes de algodão na mão de uma criança, bastonetes alijados de sua função primordial – limpar orelhas –, quando se viam sonhados, personificando personagens fictícios, davam-se conta de sua miséria coisífica, de sua pequenez no universo de existências tão imensas e importantes, de sua inutilidade, de seu carisma passageiro. Porque essas histórias sempre tinham um fim, o fim sempre estava próximo: é hora de ir à escola, (meu nome). (Meu apelido), jogue essas coisinhas no lixo, lave a mão e venha almoçar. E eu, naquela altura do campeonato soltando um suspiro longo, longo, fundo, fundo, mais melancólica e solitária que aqueles meros bastonetes sujos já sem condições de limpar a cera do ouvido, me dava conta – com as boas limitações de uma mente e um coraçãozinho infantis – de que eu era apenas uma criança que cresceria um dia, teria dúvidas filosóficas angustiantes, tais e quais às dos cotonetes, que ainda encontraria muitos laguinhos turvos pela frente e que talvez vivesse aquelas tais histórias de amor, sem a certeza de que terminariam bem.

sábado, 12 de junho de 2010

manjar branco

Diana apertou a mão de Clara, que retribuiu com um sorriso. Ambas imaginavam céus e sonhos no teto branco do quarto ainda mais branco em que Clara estava internada.
Te amo.
Nem os tubos, nem as cicatrizes, nem as manchas de relações passadas e ignóbeis causavam algum tipo de repulsa em Diana.
Te amo.
Os olhos oblíquos e aguados, agora opacos, outrora vívidos, de Clara retribuíram docemente os choros e a entrega de Diana. Não precisa dizer nada. Sinta, sinta, sinta que eu sinto, sinto, sinto também.
Impossível precisar quandos, comos e porquês. Uma tinha marido; a outra, uma agitada lista de parceiros casuais. Uma vivia entre violetas e begônias, distâncias e ausências; a outra lutava contra a escuridão torpe que, de vez em muito sempre, invadia armários, gavetas, malquereres e não-fazeres. No tempo elástico dos inícios, quando o amor ocupa pequenas brechas e deixa os minúsculos indícios, já instalado em ambos os lados, Clara se aconchegou no ombro dolorido de Diana e chorou suas feridas. As visíveis e as invisíveis. Ocorreu à Diana acariciar as mãos da amiga, tocar seu rosto, sorrir triste e cúmplice. Clara suspirou profundo, aproximou seus lábios daqueles outros lábios, e em segundos ambas se olharam extremas. Corajosas, mas reticentes, carentes e decididas, lançaram-se. Lançaram-se sem pensar, apenas sentindo, sentindo, sentindo. E não tinha mais como deixar de ali estar, naquele aconchego maduro e pleno de afeto, um mundo de janelas, jardins e ar fresco, de dois seres que se compreendiam muito bem. Extremamente bem.
Diana apertou ainda mais a mão de Clara, com uma delicadeza imensa, com uma presença intensa, mas apenas fiapos de uma existência agora fugidia conseguiram captar aquele gesto desesperado e dolorido de uma mulher em plena explosão de amor. Clara já se despedia daquele quarto branco, daquele teto branco, do sabor do manjar branco que Diana preparava quando queria fazê-la sorrir.
Com calda de ameixas...
Diana encostou seu rosto no de Clara para não perder um murmúrio que fosse. Já não havia mais quase cor no rosto de traços firmes, sobrancelhas grossas, longos cílios. Com calda de ameixas – desenhou Clara no ar, com dificuldade, com sonoridade, com a discrição das formigas miúdas. Diana chorava com ternura e dor, captando qualquer movimento daqueles lábios queridos, e concordando: é claro, um manjar com calda de ameixas. Para nós duas. Inevitavelmente, uma parte dela, Diana, ficou ali, naquela tarde, naquele quarto, naquele branco todo insosso, impávido talvez, muito distante dos dias felizes. Com calda de ameixa, Clara, com muita calda de ameixa.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

entre ela e o além-ela

(Pintura de artista de St.Brieuc, França)


Entre ela e o portão, muitas, muitas ratoeiras, armadilhas, arapucas, várias arapucas, plantas carnívoras, objetos pontiagudos, facas, pregos, areias movediças, fossos profundos, tubarões famintos, pedras incandescentes. Entre ela e o portão. Ou poderia ser entre ela e o portal, a janela, a linha, a fronteira, a muretinha, não importa. Entre ela e o limite dela, uma série de obstáculos perigosos e daninhos, pegajosos e desestimulantes, totalmente irritantes. Entre ela e o além-ela, um muro maior que o de Israel na Cisjordânia. Maior que a pedra no meio do caminho de Drummond. Maior até que o dilúvio na época de Noé.

A tralha, o monte de lixo, restos de restos, sobras de sobras, tudo isso foi se juntando ao longo do tempo, entre os ensaios de sair ou não sair, deixar entrar ou não deixar entrar. E o limite dela foi alargando, alargando, embora ela se enroscasse num casulo cada vez menor. Apertadinho. E, então, para atravessar todos esses desafios farsescos, saltar a Muralha da China, o arame farpado e a cerca elétrica da prisão de segurança máxima (de sua prisão privada de segurança máxima), precisava mais que uma corda, um bote, um jato, uma vara, asas de Ícaro, fios de Ariadne: precisava de um homem que lhe desse um voto de confiança. E a quem ela também lhe pudesse dar o seu. Con-fi-an-ça. Entre ela e o homem, o portão. E toda, toda, toda aquela montanha de nãos.

palavras sem cabimento

Dias e mais dias escrevendo a fio. Escrevendo tudo, de tudo, sobre tudo. Escrevendo receitas médicas, listas de supermercado, diários meus e de outros, cartas de amor e de desamor, textos acadêmicos e jornalísticos, histórias, fábulas, recadinhos para mim mesma, devaneios, desabafos, nomes de ruas, números de telefones, títulos de livros para não esquecer. Escrevendo e escrevendo dias e dias a torto e a direito, no avesso da carta, no vão da porta, na parede, na meia-calça, no papel higiênico.
Anos.
Me dei conta nesses dias e dias de escrita infinita que há anos escrevo uma história cujo fim não vou terminar de compor. Palavras, pequenos excrementos de meu ser marginal.

Mas a vida não cabe inteira nas palavras, sabe.
As palavras são imberbes diante do mundo, diante de mim. São inexatas. São indecorosas, são audaciosas, mas não carregam a vida inteira nelas, não.

Me perco de propósito das palavras quando acho que elas querem dizer mais do que realmente eu sei. Do que sinto. Do que salto. As palavras jamais subiriam um pico nebuloso e e se jogariam lá do alto. Fariam rima, é certo, riso talvez, mas não dariam conta de toda a imensidão desse universo compactado dentro de mim. As palavras se perdem cá dentro quando minhas sensações tocam o chão e o céu, quando me encego, me ensurdo, me emudo, emismemada – inventando neologismos e emprestando os que não são meus.

Meu Deus.
Por que então tanta escritura?
Deus tampouco cabe nas palavras que Ele mesmo ditou. Nas maiúsculas, nas minúsculas. Toda palavra é imperfeita. E eu fico aqui escrevendo, escrevendo, escrevendo, como se esse inconcebível quebra-cabeças fosse solucionar todos os meus problemas de coração. Mas vai, sim: escrever é minha humilde e datilografada salvação.

Tudo se escreve e me descreve: ela desfia, tece, costura, cozinha, pinta, borda, lambe, cospe, enrola, amassa, assa, passa, lima, pica, corta, estica, exala... tantas palavras quantas forem necessárias para se viver. Ela sou eu. Agarrei-me aos verbos, seduzida pelos adjetivos.

E continuo em minha febre de escrever tanto tudo todos em qualquer lugar tentativas, perseguindo a fragrância inexata que “certa palavra deixou no espaço que ocupou em determinado instante” como um profeta, um detetive, um legista, um geólogo, um obstetra, um atleta, um presidente, um crente, eu mesma silenciosa e aturdida.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

fabulinha fabulosa

A porta estava muito bem trancada. As janelas, implacavelmente fechadas. Nem fechaduras havia para não dar margem à invasão. Como é que o Ar novo entrava, então? Pelas frestinhas do tapete, do colete, das torneiras e dos ralos. Ar novo é sujeito teimoso, petulante, adora fazer cosquinhas nos calos. E Medrosinha, dia desses, estava lá, bem menos encapsulada, mas ainda tão escondida, garota bonita largada, displicente até com os próprios dentes. E, incerto mas esperto, Ar novo mal entrou e logo começou com as cosquinhas. Ai, meu Deus, tremia Medrosinha! O que vem por aí, o que será? Às vezes, Ar novo trazia vírus; em outras, notícias de Shangri-lá. Carregava esperanças, fragrâncias, mosquitos e sentimentos esquisitos. E foi assim que o “Invasor” chegou, de carona com um sabor, que o Ar novo espertamente para dentro empurrou. Veio bem devagarzinho e se chamava – olha que fofo – Amorzinho. Discreto e quieto, Amorzinho andava com as pontas dos pés. Queria surpreender Medrosinha, mas sem recorrer aos fáceis cafunés. Só que havia um porém: Amorzinho era invisível, parecia com ninguém. Mas também era surdo às desculpas que Medrosinha sabia usar tão bem.

Vou lhe contar que no início, ai que difícil, foi um jogo de esconde-esconde. Cheio de trombadas de bonde, ou película de espionagem: com direito a autossabotagem (de Medrosinha) e tentativa de ultrapassar a linha (Amorzinho). No entanto, aos pouquinhos, parece que o espanto virou encanto: deixemos de ser crianças, vamos nos dar um voto de confiança! Tudo podia soar perigoso, Medrosinha em pânico se via; mas Amorzinho era jeitoso e de conquistas ele bem sabia. A entrega foi poética e lenta, e esta que lhe conta tampouco é isenta. Foi lindo, muito lindo, ver esse encontro acontecer. Como sair de uma rota escura para, enfim, provar uma relação madura. Medrosinha de nome mudou; sabe-se Mulher em plenitude. Dentro dela, Amorzinho se instalou: no corpo, na alma, na atitude. Sempre é hora do Ar novo na vida circular; esta que lhe escreve ainda vai experimentar. Um suspiro, dois suspiros, tento a porta destrancar: oi, oi, você está me ouvindo, sr. Ar?

sábado, 5 de junho de 2010

* baú *

— Você ainda se comporta como adolescente.
Susto.


Falávamos sobre o amor.
Nem fazia uma semana que eu havia me deparado com um pequeno grupo de fios brancos, escondidos na parte posterior da cabeça, acima da nuca.


— Adolescente?
Olhos fixos e perdidos nas pernas estendidas sobre o banquinho. Pernas tortas de menina com o peso dos anos de uma mulher.


Falávamos sobre o amor. E eu sabia que ela tinha razão.
Que, ao andar sozinha, opção inconsciente mas tão confortável, eu avançara até subterrâneos e horizontes impensados de mim mesma, do universo a meu redor. Porém, nesse contato estreito com o homem, genérico do gênero masculino, talvez houvesse mesmo parado no passo seguinte à descoberta da alteridade. Susto. Uma mínima, quase imperceptível entrega, e logo o recolhimento. Não me movo de mim. Passo películas na qual sou a protagonista, acho que me apaixono, acho que sofro, acho que partilho, que interajo, que me transformo, tudo tão intenso. Nada, contudo, se passa. Não me movo de mim. Os tumultos e as ondas se limitam à superfície, enquanto vejo tudo lá do fundo, no silêncio absoluto, na solidão impassível.


Falávamos sobre o amor.
E eu contava e recontava mentalmente aqueles fios brancos, encontrados ao acaso, tão bem instalados acima da nuca. Achava aquela minha indiferença petulante tão madura, mas ela repetia: adolescente.


Enquanto ela falava, eu recontava meus anos.
Naquele instante, lembrei-me dele. Pareceu obsceno demais para minha ingenuidade amorosa. Pareceu um velho baú enterrado no fundo do mar, bem ao lado de onde eu estava, soltando pequeninas bolhas de ar entre os cardumes enquanto esperava o barco lá de cima se afastar. O baú de tesouros atiçava a curiosidade da garota, mas a mulher de cabelos brancos já não tinha mais forças para abri-lo. Ele sempre ao meu lado, discreto, quieto. Amigo.


Talvez eu tenha nascido amorosamente velha, já cansada dos mergulhos. Fui logo para o fundo e lá me conformei.
— Uma velha com comportamento adolescente?


E por conta desse descompasso temporal que provocava um vácuo justamente no presente, pensei em subir devagarzinho à superfície, soltando o ar e as desilusões devagarzinho, a fim de evitar uma embolia no corpo e na alma. Eu sabia que o baú também se moveria, em seu ritmo, no momento em que tinha de ser. E partilharia seus tesouros.


Porque ser madura significa igualmente aprender a navegar: também posso me mover de mim, sem me perder.


adieu, les enfants!

Garota moça mulher feminina fêmea, sim.
Mas, por opção, desilusão ou decepção, assexuada.
O fato é: o gênero oposto já não me interessa em nada.

Foi assim:
Um dia, bom dia, acordei e senti: não há mais espaço para um homem aqui.
Na cama no caminho no carinho no corpinho na chama na vida. Em mim.
Era assim um desgostar tranquilo, um sem-gostar. Um deixa-estar-para-lá.

Bem longe. Fiquemos todos bem longe.

Não tinha nada de rebeldia revolução mudança lesbianismo ou santificação. Não.
Era, simplesmente, um desgostar e um desligar normais. Hoje-constatei-sem-surpresa-que-de-homens-não-gosto-mais. E ponto. Sem reticências nem anuências.

Nada ia mesmo acontecer – agora é que não acontece mesmo.
E, com uma a menos para farejar os parcos espécimes disponíveis, a mulherada até que ficou contente. Desvarios compreensíveis...


p.s.: e eu tô falando sério.

sábado, 29 de maio de 2010


Sempre haverá algo que não vejo,
que não verei,
mas que há.
(Foto: presente da Rô)

it's all about


No princípio, era o verbo.

(A protagonista de meu livro tem roubado meus posts. Mal terminei um, agorinha, e ela veio e o surrupiou. Aprendi a gostar dela apesar de sua insistência em existir. Teimosa, me soprava no ouvido suas frases, me pedia histórias, suplicava por parágrafos densos e copos de água. Suplica ainda por experiências diversas que começam a me atiçar. Ela me disse: use essa desculpa para sair do casulo. Enquanto isso, ela também sai -- de mim. Não fuja, me disse. Não fuja, lhe disse.)

E, ENTÃO,


NO TEMPO FABULOSO DOS INÍCIOS,
EU


FINALMENTE


PARI.



E assim começa a história de uma escritora e sua protagonista, suas duplicidades, seus desatinos, seus desacordos.

sábado, 15 de maio de 2010

(medo do goleiro diante do pênalti)

Mais uma xícara de café, entre cadernos de notas, canetas sem tampa, fios e cabos USB, livros abertos, brincos usados em dias anteriores, bilhetinhos diversos, aquelas incômodas cartas de banco. Mais uma xícara de café com o fundo borrado, ressecado, uma xícara a olhar a mulher descabelada, com roupa de casa, suspiros fundos e ideias confusas que brotavam aos borbotões, mas não saíam. Era uma prisão de ventre mental, ou o quê? Culpava a inspiração, culpava o cano de saída das ideias da cabeça, culpava seu desalento emocional, o barulho da rua, cidade ruidosa essa, descobria-se hiperativa, descobria-se com a síndrome da distração não sei o quê, talvez por não descobrir-se continuava coberta de medos e receios e nada acontecia na tela vazia do computador cansado. O computador estava cansado e seus teclados já se encontravam gastos. Estamos aqui, disponíveis, minha senhora. Mais uma xícara de café, o líquido borbulhante, o sabor único, encorpado, forte. A experiência única, encorpada, no corpo dela, forte, presente. Por que não começar daí? A literatura era a única salvação, era, não era? Tantas histórias impressas em seu corpo, em sua memória, em suas emoções. Era o casulo da escrita, era a escrita, a literatura, a salvação, a metamorfose! Rilke ensinava: “confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever? (...) Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com essa necessidade”. Viver para contar, como havia dito Gabriel Garcia Márquez. Não via outro sentido. Então, por quê? Por que o fluxo se encontrava emperrado em algum ponto? Por que condenava a si própria, em sua volúpia de escritora, por que vetava de antemão o que estava a ponto de explodir?


Silêncio.


Silêncio passivo. E escuta.
Silêncio ativo. E escuta.


Sozinha e desamparada.
A maior solidão da existência. A própria existência como solidão.


Tinha medo.
E assim começou, de forma inexorável e inevitável, sem volta ou sem perdão, seu romance.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

de novo!

Pela metade
O copo o corpo o como
Presente
No intenso imenso imerso
Universo
De fatos de falos de fêmeas

Ele ali,
Na frente dela.
Janela.

Inaudível
Seu pedido gemido doído
Na mesa
Vinhos desalinhos espinhos
Esperança
Em retomar em reatar em remar

Ambos amam o mar.
Um barco apenas.

Antenas
Entendimento sentimento momento
Princípio
De perdão de sensação de tesão
Por inteiro
Um carinho um caminho um casal.

Lenço, lençol, lançados.
Uhh, lúcidos.

domingo, 9 de maio de 2010

sexta-feira, 7 de maio de 2010

#meufilme

Queimo, queimo meu filme, sim, queimo meu filme ainda que meus vídeos sejam digitais e minha câmera registre tudo no HD. Queimo, queimo meu filme, sim, por você não suportar me ouvir falar de profundidades quando sua expectativa comigo era discutir política. A dos outros, não a nossa: fronteiras, muros, bombas, sanções, seu conselho de segurança nega a veracidade dos argumentos de meu sentimento-premiê...

Queimo meu filme, falo de mim, me exponho cruamente no abracadabra de seus desejos ocultos, sou como um vírus de hardware, você me deleta de seus sentimentos e eu sigo avançando por seu corpo adentro até que, insolente, estupefato, suado e confuso, você chegue até minha porta e grite:

Queimo meu filme, queimo sim, falando daquele outro, dos outros, de todos os outros que amei e que hoje contam pedaços da minha história. Queimo meu filme assumindo que me apaixonei por outro enquanto você não me dava bola, que me apaixono por outro enquanto você não me dá bola, que seguirei me apaixonando por outro mesmo que sua condição sine qua non para me dar bola seja justamente minha ausência de gols. No outro. Nos adversários. Ora, não há adversários...

Queimo, queimo ardorosamente meu filme ao me rasgar virtualmente para você do modo mais singelo e honesto que um “@”, que um “.com.br”, que um tweet podem fazer. Mas você não me lê – ou finge, porque está todo dia ciscando no meu blog atrás de minhas pegadas, dos rastros que deixo, das migalhas de verdades ofuscadas por delírios infinitos e tão sinceros. Sei que você busca me entender.

Queimo meu filme me queimando por dentro querendo lhe dizer que é você você você você e nada mais. Mas queimo meu filme dizendo alto que eu quero um monte monte monte monte de coisas, que não você.

Queimo meu filme como se lhe dissesse: por favor, me esqueça, me deixe, me ignore, me desdenhe, me evite, me chame de “spam”. Queimo meu filme fingindo que não sei o que você espera de mim. Mas eu não sei mesmo.

No fundo, quem queima o filme é você.

Porque não quer que eu o decepcione.
Porque no fundo não quer que eu o decepcione.
Porque minhas profundidades são insuportáveis e eu não consigo simplesmente tomar sorvete e deixar por isso mesmo.

Porque eu não preciso da TV pública para gritar publicamente que faço de meu bem-querer bem público – para e por você.

Queimo meu filme porque 8mm são insuficientes para tudo o que eu poderia lhe fazer sentir. Hoje, baixam-se sentimentozinhos e vínculos em downloads insossos, isso pode lhe parecer mais prático e mais indolor... Você é um blockbuster nominado ao Oscar, enquanto eu sou uma proposta alternativa de cineclube vespertino numa sala abafada e escondida no centro da cidade.

Por isso, queimo meu filme. Só para lhe fazer fumaça.
Lóri Capitu, ela mesma, agora tuíta. Acompanhe: http://twitter.com/loricapitu. Uma mulher em sua inteireza, fêmea em ritual de amor, ensaiando suas compreensões do mundo. Ou dos mundos -- o dela e o ao redor...

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Sem açúcar

(MFV; serei uma dessas?)

— Sem açúcar.
— Perdão?
— Quero o café sem açúcar.
— Ah, sim.


23°
16h32


O que ele escreveu mesmo? Aliás, o que ele não escreveu? Buscava as entrelinhas. As entrelinhas do que ele disse. Buscava justamente o que ele não disse. Por que ele deixou de dizer? Não sei se ele sente, não sei se ele não sente. Ele não diz. Ele não disse. Bem, ele escreveu. Algumas vezes, sentimos saudade de coisas que, quando se apresentam, talvez não sejam totalmente como as planejamos. Será que devemos aceitá-las tais e quais aparecem?


23°
16h38


Suspiro longo e profundo. O suspiro mais longo do mundo. O mais profundo suspiro do mundo.


22°
16h45


Não sei o que pensar. Sinto: sinto um espinho delgado adentrando pele adentro, corpo adentro, esperança adentro. Eu tinha uma esperança. Ando ansiosa demais. Parecia a pessoa certa na hora certa, mas sem certezas, mas sem que eu estivesse certa disso. Ou ele. Ou seja, nada. Ou tudo. Não sei o que pensar. Sinto: não me deixe aqui sozinha, por favor. Choro. Choro morno e silencioso, choro público.


23°
16h57

― Moça, por favor, acabou o guardanapo.
— Já lhe trago. Algo mais?
—...


23°
17h01


Merda.
Não tinha grandes expectativas. Só queria que fosse ele. Que ele fosse “ele”. Não planejei relação nenhuma, não sonhei com nenhum encontro excepcional, não consegui nem nos imaginar fazendo amor. Só queria que fosse ele. Porque ele não nasceu de nenhum empurrãozinho de minha razão. Porque, inclusive, minha razão ficava fazendo joguinhos de autossabotagem para mim e para ele. Porque ele simplesmente me atraiu. Porque meu corpo, meu coração, minha inquietude o pediam, todo o tempo. Porque fui surpreendida por meus próprios sentimentos. Porque saí de meu script. Porque... não sei de nada.


21°
17h14


Sinto frio. Sinto dor. Sinto solidão.


23°
17h35


Não fui arrebatada. Ele não me arrebatou. Nem eu o arrebatei. Talvez eu persiga justamente isso: um homem que me arrebate. Um cavaleiro que me pegue pela cintura, não me deixe pensar, e me leve para dentro de seu castelo-coração. Um homem que, ao olhar para mim, sorria ao sentir-se tão prometido. Que me faça sorrir, prometida. Persigo um homem que me arrebate e que seja arrebatado por mim. Será esse meu erro, “perseguir”?
Sou uma romântica de merda.


23°
17h59


“Travessia”, de Milton Nascimento, ecoando entranhas adentro. “Vou querer amar de novo/ e, se não der, não vou sofrer./ Já não sonho/ hoje faço com meu braço o meu viver.”


21°
18h04


Mais um daqueles suspiros imensos. Meu mundo, neste momento, cabe nesse suspiro. Mas eu fiquei maior que meu mundo. E afundamos, eu e meu mundo, em meu coração. Que também cabe nesse suspiro. Sim, de fato é imenso. Um suspiro imenso.
— Um chá quente, por favor. E broas. Broas de fubá.


22°
18h25


Eu me lembrei do cheiro de sua barba. Achei estranho aquele cheiro. Não me senti nele, sabe. Era um cheiro que não me incluía. O cheiro de sua barba não me incluía. Porque você não me inclui. Você me beijou como retribuição dos meus sentimentos por você, não foi? Sua barba o denunciou. E eu compreendo você, sabe. Fomos ambos surpreendidos. Eu, por esses sentimentos malucos todos. Você, por minha verborragia corada e sôfrega. Até me lembro de que lhe falei: “não estou loucamente apaixonada, não é isso”.


23°
18h26

Não estou loucamente apaixonada, não é isso.


24°
18h28

Não entendo mais nada. De mim mesma, de você, do mundo, de alguém.


22°
18h30

— Por favor, um outro café.
— Sem açúcar?
— Sem.


23°
18h43

Tampouco quero voltar para esse mundo aí. Estou cheia. Cansada de Obama, Netanyahu, Ahmadinejad, Sarkozy, Chávez. Cansada da revista Veja. Cansada das merdas ditas e feitas pela bancada ruralista no congresso nacional. Cansada da impunidade – dos corruptos e dos milicos ex-torturadores da ditadura brasileira.

Peço dispensa de minha humanidade hoje nesse mundo de merda. Mas estou trancada. Só poderia fugir para seus braços, se você quisesse me receber. Mas você aparentemente não quer.

Como você escreveu? Não gosto de “não sei”, mas agora é o que me vem à mente. Como levar adiante isso?

Quero ser dispensada de ser humana por hoje, pelamordeDeus!


23°
18h58


Sou uma romântica de merda.


22°
19h09


— A conta.
Venta, isso, venta, venta, venta noite fresca de outono. Me venta inteira, me reinventa, me arrebenta. O escuro não me deixa ver as pegadas, mas eu sei que elas estão aqui. O escuro não me deixa ver as feridas, mas eu sei que elas estão aqui. Enquanto isso, enfrento esse mundo imundo e sem fundo. Enfrento a solidão do abrir-se. A solidão do doar-se. A solidão do ‘não’. O dãodãodão da solidão. A imensidão da solidão.

Nessa cidade de 19 milhões de habitantes, estou sozinha com essa tal imensidão da solidão. Que cabe no meu suspiro. Então, esse suspiro realmente é grande.

E eu sou uma romântica de merda.
Sem açúcar.

terça-feira, 4 de maio de 2010

INCONTRO (versione in italiano)

Era una piccola scoperta, che ho fatto in segreto anche da me stessa, forse per paura, forse per alcune stupida resistenza ancora viva dentro me.

Lui.

Quando pensavo a lui, il mio spirito tremava. Ma era una sensazione nuova, strana. Il mio spirito tremava come un morbido terremoto che vineva del cuore fino la bocca: un sorriso inaspettato, pieno di desideri insensati.

Lui.

Quando ci siamo incontrati di nuovo, quella volta era il corpo che tremava. No, non sò cosa succede, che cosa è questa sensazione di nuovo?

Io.

Sorpresa, sedotta. Distratta però così attenta, emozionata. Panico. Tra le sue braccia. Panico. Nel suo abbraccio. Panico. Sono una donna presa al panico, cerco di scappare quando ho voglia di essere là?

Io.

Quando arriva il momento, ando via.
Anch’io!
Ma io semplicemente ando via.
Io, almeno, dico addio.
Non lo faccio.

Noi.

— Ho chiamato per dirti “arrivederci”.

Chi sà quando ci incontreremo di nuovo, chi sarà ...
Coltiviamo il silenzio, perché camminiamo – i due – per il deserto, il grande deserto della vita, sognando sotto le stelle, ascoltando il saggio che a volte attraversano le nostre strade (non importa dove ci troviamo), ci lanciando nella profondità.

Tempo.

Nel frattempo, tratto dei sentimenti diversi. Affetto, mancanza, gelosia. Anche gelosia.
Nel frattempo, cerco di capire il mio panico. Il mio desiderio. La mia femminilità.
Nel frattempo, genero una vita dentro di me; non è ancora un bambino (mío, nostro?), ma sono io stessa, senza pelle: sorpresa, sedotta. Distratta però così attenta. Nuda, per andare anche più lontano.

Deserto.

Hey, tutto ciò che ti chiedo è questo: non ti perda da te.
Che non ti perda da me.

ENCUENTRO (o: dos viajantes en un día de primavera...)

a tí, S.



Era una pequeñita descubierta, sobre la cual hice secreto hasta para mí misma, tal vez por miedo, tal vez por resistencias tontas que aún cargaba acá dentro.

Él.

Cuando pensaba en él, mi espíritu estremecía. Pero era un sentimiento nuevo, raro. Mi espíritu temblaba, como un terremoto suave del corazón a la boca: una sonrisa inesperada, llena de deseos insensatos.

Él.

Cuando nos vimos de nuevo, fue la vez del cuerpo estremecer. No, no sé lo que pasa, qué es esa nueva sensación?

Yo.

Sorprendida, atraída, distraída más tan atenta, emocionada.
Pánico. En sus brazos. Pánico. En su abrazo. Pánico.
Soy una mujer en pánico, por que quiero escapar cuando tengo ganas de quedar?

Yo.

Cuando llega la hora, yo parto.
Yo también parto.
Pero yo simplemente me voy.
Yo, al menos, me despido.
Yo no.

Nosotros.

― Te llamé para decirte ‘hasta luego’.

Quien sabe cuando nos volveremos a ver, quien sabe...
Cultivamos el silencio porque caminamos – los dos – por el desierto, el gran desierto de la existencia, soñando bajo las estrellas, escuchando los sabios que por veces cruzan nuestros caminos (no importa donde estemos), lanzándonos a la profundidad.

Tiempo.

Mientras tanto, manejo sentimientos diversos. Cariño, añoranza, celos. Hasta celos.
Mientras tanto, manejo mi pánico. Mis ganas. Mi feminidad.
Mientras tanto, genero una vida dentro de mí: aún no es un hijo (mío? nuestro?), pero soy yo misma, sin cáscaras: sorprendida, atraída, distraída más atenta. Desnuda, a fin de llegar aún más lejos.

Desierto.

Hey, sólo te pido esto: que no te pierdas de ti.
Que no te pierdas de mí.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

DEADLINE


Tlim, tlom.
Tic-tic-tic-tic-tic.


O nó na garganta não subia nem descia. Estava entalado, apertava o coração lá embaixo, agitava os pés descalços, que roçavam displicentes o tapete estampado. Os olhos embaçados de choros que não vinham porque não estavam prontos. Os joelhos, curiosos, espiando pela bainha da saia sua dona aflita.

Ele escreveu (e não foi para ela): a gente não pode ter tudo o que quer.
Citou Rolling Stones: You can’t get always what you want.

As horas passavam.

Ele lhe deu um beijo de despedida, ele perguntou no dia seguinte, quando ela telefonou do aeroporto: por que você não me avisou que só voava à tarde? Ele disse que queria vê-la antes da partida. Agora não quer mais?

O tempo passava.
Seu corpo, seu corpo parecia sempre o mesmo, porém mais flácido. Menos dela, mais coletivo.

Tic-tic-tic-tic.
O cansaço gradativo e miudinho das células é implacável.
Tic-tum. Morria uma. Tic-tam. Esmorecia outra.

Ele pediu “ele e ela”, ela provou os dois, mas ficou só com ele. Ele optou por elas. Ela e ela. E era da outra que falava: a gente não pode ter tudo o que quer. Ah, aquele abraço era de nada no fim das contas. Ou tinha sido aquele abraço bom naquele dia, naquele momento e ponto.

Tlim, tlom.
Ele furava poços mundo afora. Mundo conflituoso afora. Eles se encontraram, algo brilhou, mas nevava muito. Escorregadio. Havia outra, sabe. Estou tentando construir um relacionamento, ele disse. Entendo, suspirou ela.

O corpo. O abdômen. Gordura adiposa pura, nada de mais.
O corpo. As trompas, os ovários, o útero – todos contando os dias para a aposentadoria.
Ei, ele! E ele?

Os joelhos continuavam a observar sua dona, impassível em sua dignidade de mulher-fêmea-flor. Flor. Cheia de pólen, cheia de amor, cheia de medo, cheia disso, mas vazia daquilo. Ah.

O tempo, o calendário, a idade, a veracidade, a durabilidade, os genes, os óvulos.
Almoçaram. Ele disse: quando é hora de partir, eu me vou. Ele, um peregrino. Ele, um homem do mundo, dos tempos, dos ventos, das areias e dos desertos. Ele, tão parecido com ela. Mas ele não se despede, ele simplesmente vai. E foi.
Tsi-tsi-tsi

Ela?
Ela olha pela janela, ignora os pequenos alarmes, ela sonha com aquele abdômen repleto do amor de um encontro profundo e intenso. Ela sonha com. Ela ainda sonha com. Ela, um explosivo sem hora certa para se espalhar, semear.
Ela cheia de sementes. Com aquela flor no cabelo. Com aquele nó entalado não se sabe onde. Ela e seu sorriso escondido para ele, um ele, um deles.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

peyote

Ya no sabía adonde iba ni sabía porque me quedaba, pero era lo que me suenaba cierto. Flotaba. Flotaba y hablaba aún más alto cómo si intentara desafiar mi voz, provocando mis oídos. A todo escuchaba – de los ruidos de los espinos hasta las risas del viento. Jamás el desierto me pareció tan verde. Flores en las palmas, flores en los cactus, y los ojos desde la tierra a mirarme. Ya. No me importaba si eso era factible o no, sino apenas que fuera lo que me tocara vivir. Quienes y cuando, eso tampoco me preocupaba. Había llegado al centro y probado la sencillez de caminos sin fronteras o límites de preconceptos, prejuicios, texturas o materiales. Un cielo mezclado al mar, un águila en forma de mujer.

segunda-feira, 29 de março de 2010

paredão, paredona


Há anos tenho me apaixonado por paredes. Paredes altas, paredes magras, paredes em geral morenas, umas mais simpáticas, outras meio carrancudas, parede disfarçada de muretinha, uns muros nada-a-ver, paredes duras, paredes de várias texturas e profundidades. Sempre paredes machas ou masculinas, minha grande maldição.

Me apaixono, me encanto, me desfaço – e as paredes lá, impassíveis, impossíveis, inevitáveis em sua condição de paredes. Mudas. Surdas. Insensatas e frias. Insolúveis.

Anos e anos de tentativas inúteis de conquistar uma parede me fizeram verborrágica (detesto os contos de fada em que o sapo vira príncipe, porque uma parede jamais vira príncipe ou rei, paredes são sempre carrascos. Carrascos surdos). Verborrágica, prolixa, quase histérica, falando, falando muito, falando demais, falando o que não devia, declarando-me declaradamente declarada não-calada. Por quase todos os meios possíveis – escritos, principalmente. Com quase todo o vocabulário afetivo que me permito usar. Em quase todos os tons especiais que conheço. Reconhecendo-me fêmea, feminina, feliz, felina, fera, ferida, fetiche, fechadura, ainda que as unhas às vezes estejam manchadas de esmalte velho ou o cabelo, arrepiado de indecisão. Parede, adorei te conhecer. Parede, eu te quero bem. Parede, você é uma pequena epifania. Parede, quer tomar um café comigo? Parede, gosto de sua poesia. Parede, queria te ver de novo. Parede, eu tenho tanto pra lhe falar... Parede, . Parede, ? Pa? Re? De?

Paredão. Paredões.

Anos e anos de tentativas inúteis diante das paredes de todo o mundo – não podem me acusar de não haver tentado até paredes internacionais! – me transformaram numa... parede. Paredona. Parede refratária, um tanto desiludida, meio descuidada, agora habituada a despejar logo de cara tudo quanto é verborragia possível para ficar cansada rapidinho e demolir o paredão da vez do meu coração. Parede cada vez mais intransponível. Parede invisível. Parede com sonhos de virar montanha e se jogar no mar. Parede com vontade de renascer borboleta, minhoca, leoa, begônia, nuvem, qualquer ser que interaja com o universo. E com vontade de encontrar uma borboleta-macho, uma minhoca-macho, um leão, uma begônia-macho, uma nuvem-macho com quem possa interagir.
Falar, mas ouvir. Ouvir mais que falar.
(Parece inacreditável esse sonho).

Hoje mesmo comecei a demolir um paredão, que era até gentil. Porém, como de hábito, um paredão de outros mapas, geografias, censos e populações, que tinha janelas e jardins. Mas, claro, não para mim.

Continuarei parada.
Tal e qual parede embalsamada...

domingo, 28 de março de 2010

* foule sentimentale *

Louca sentimental
Meticulosamente fenomenal
Perdida
Jogada
Entupida nessa grande maluquice de amar total
Sem qualquer mesura
Pura, depurada
Desesperadamente
Encantada
– esgotada e suja de pudor
Pede-me, a mim, não me impede
De apaixonar-me apaixonar-te
Fazer nossa essa tal arte
De tear
Ter ar, ter mar, ter nós, ter-nos a nós
Endoida-te de cansaço meu
De meu vício de Senhorita Prometeu

Fogo, fogo, fígado, fisgada
Não, não fujas, não sumas, não
Não me digas não

Eternamente presa, acorrentada
A esse humano e feminino desejar
– desejo-te, desejo-lhe, desejo-me –
(Uma mulher que preenche um homem)


À espera de Hércules
De uma águia
Ou de ti.

#Florescência 2

Vem me dar um cheiro, vem, minha pequena – ele, o pernambucano, recém-acordado e já totalmente atiçado, suspirou no ouvido dela, apertando sua coxa com uma delicadeza matadora. Hmmm, hmmm, hmmm. Sua nudez obscena e tão atrativa a deixou quase desmaiada. Eram raios tímidos de sol ou estrelas no teto alto, alto, tão alto... daquela casa baiana... naqueles lençóis de antigamente... sei lá, de linho ou de percal?... Estrelas, ora direis? Hmmm, hmmm... O corpo se desfazia na mesma proporção em que se aquecia: havia se transformado em água em ebulição evaporando-se? I-s-s-o-s-ó-p-o-d-e-s-e-r-u-m-s-o-n-h-o-b-o-m. Abriu os olhos abruptamente, pensou inutilmente: cadê minha camisola surrada, e se lembrou do mineiro, ali do ladinho, em seu pijama de listras grossas, roncando em dó maior, com a calcinha dela no pescoço. Oh, hmmm, oh. Aquela aliança no dedo, as galinhas no quintal, cocorococó, quáquáquá, ela nua naquele casarão, aquele pernambucano maravilhoso nela, as estrelas no teto, os lírios de plástico (da cozinha) voando docemente pelo amplo quarto... ela... ah?... eu... ai... uuuuhhh...

!!!

Condensou-se, virou chuva e desabou corpo suado, boca aberta, olho estatelado, na cama. Meu Deus. O pernambucano, aquele homenzarrão de cachinhos no cabelo, levantou-se, sempre agressivo em sua nudez asfixiante, espreguiçou-se gostosamente, recolheu umas roupas no chão e disse, com um sorrisinho maroto: Eu volto à noite, pequena.
Ela nem conseguia organizar as ideias. O que significava tudo aquilo, quem era ela, quem era ele, o que faziam naquela cama. Suspiros, longos suspiros. As estrelas, aos poucos, voltavam a ser raios de sol no teto. Não existem lírios voadores. A respiração encontrara o ritmo normal. Mas ela ainda estava atordoada. Ops. Sentiu um toque em seu seio esquerdo. Era o mineiro, acordando...


(continua em algum momento)

sábado, 27 de março de 2010

Dos trópicos e do amor


(ao som de ‘Amor de Índio’, de Milton Nascimento)
Ao C., sempre querido


Ele era um índio.
Ela era uma branca.
Mas, ao contrário dos anais da história da América Latina ou dos fundos de armário de Hollywood, ela não era européia importada. E nem ele era índio incivilizado.
Ambos eram filhos do mesmo continente, do mesmo hemisfério, mas não das mesmas fronteiras ou do mesmo mar.
Ele era pacífico.
Ela era atlântica.
Falava-se espanhol dali, português daqui. Sorrisos, mãos, humor.


Foi ele, o índio, quem pediu um filho a ela, a branca. Ela apenas riu.
Os dois reconheciam o sagrado que exala da concepção – e não tinham pressa.
O tempo das coisas, as estações, as monções, o dia e a noite.
Foi ela, a branca, quem disse sim a ele, o índio, pelo filho que ele lhe queria dar. Ele apenas olhou com candura.


As mãos tostadas agarraram-se às brancas.
As bochechas rosadas engordaram-se em mais um sorriso junto à tez morena.
Houve um beijo, houve chuva, houve caravelas, velas, arco-íris e vulcões. Um fluxo de cores, de etnias, de relatos humanos entrelaçados naquele ato.
Houve toda uma história continental, a história de conquistas, conquistados e conquistadores, reescrita e recontada, de outro jeito, sem sangue ou espadas, sem navios abarrotados de esperança e pobreza, apenas repleta de amor e de curiosidade.


Com a bênção dos trópicos, com a bênção.
Um índio.
Uma branca.
E um mestiço, filho legítimo da porção sul continental do lado ocidental do planeta, filho da terra, artista da Amazônia e da Patagônia, com mãe e pai e os genes todos do mundo: um latino-americano.

terça-feira, 2 de março de 2010

encontro, despedida

Capiberibe
-- Capibaribe


Hoje deixei ele e a cidade dele, com seus mangues e arrecifes, com seus cachos e doidices. Acho que ele não sabe de nada e nada naquilo que eu não acho – mas isso soa muito bom. Assim, não me preocupo, não me culpo nem esculpo expectativas e narrativas que não rodam mais de uma volta no chão.

Hoje deixei ele e a cidade dele, deixei a mim e um pedaço de mim, minha nova cidade e meu fragmento de universalidade, com rotas recém-descobertas e minha coradice de ouvinte esperta. Voltarei num dia de segunda, de chinelos e mamulengos, para retomar conversa fecunda (assim espero) numa vontade de me enrolar em todos os bolos de rolos, de miolos engoiabados de seu, dele, meu bem-querer.


Ao I.,
desculpe-me por ter fugido mais cedo de seu abraço
(mas acho que você nem percebeu)

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

fitinhas

Tinha um restinho de paixão entre os dentes
O corpo, o cotovelo, o calcanhar ainda indolentes

Tinha um pouco de chita ainda na saia de seda
Um pouco de sede, de medo, o escuro da queda

Tinha esse jeito solar tão lunar tão cheio de intensos
Viciada em suores, em toques, em cheiros de incensos

Amava sotaques, sonhadores, sem disfarces
Esparramava-se marota entre os Zeus e os Martes

Tinha, tinha, tinha um desejo grande de enrolar-se
Enrolar-se na rede, nos braços, nos amassos, nos cachos

-- regozijar-se

Havia um tanto de felicidade no canto dos olhos
Um encanto no encontro, um espiar entre os ferrolhos

Havia um mar, um mapa, um céu e uma descoberta.
Entre ela, ele, o coração e aquilo tudo: pré-amor, na certa.

Tinha, tato, fitinha, fato: olha, olha, aqui, vem,
tem, sente, sabe, achado, achegue-se. Laço, gata, gato.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

#Florescência

Acordou um dia e levou um susto. Estava num desses casarões antigos, de janelas imensas e assoalho de madeira, teto descascado, armários imponentes e penteadeiras de espelhos avultados. Havia até banheira, daquelas quase-piscinas, no banheiro comprido, de azulejos brancos e piso de lajotinhas vermelhas. Mas o verdadeiro susto veio antes do reconhecimento da casa: acordou e se viu numa cama de casal. E com dois homens. Dois! Ela continuava ela mesma – a camisolinha surrada, o cabelo fino arrepiado, as pintas na face corada, o calinho no quarto dedo do pé esquerdo. Mas havia dois homens na cama, um de cada lado. Dois roncos diferentes. Um de pijama e um nu. Um de cachinhos e outro de cavanhaque. Um pernambucano e outro mineiro. Estava estupefata. Não era o som das buzinas e das construções paulistanas que ecoava lá fora. O canto da Bahia entrava pelas frestas das portas coloridas e altas, pelo quintal com as galinhas, pela cozinha onde o cheiro de café perfumava a mesa azul, coberta pela toalha de renda e um vaso de lírios de plástico. Dois homens! Tinha perfume de loção pós-barba no travesseiro. Sondou o próprio corpo e encontrou os ares típicos de uma noite de sexo. Com quem?, agoniou-se na sensualidade típica de mulher satisfeita, ai. Viu na mão esquerda uma aliança. Oh, meu Deus! Virei dona Flor!, gritou para si mesma, em silêncio. E logo sentiu um calafrio daqueles dos bons, que atiçam o corpo e endoidam a cabeça. Eram os dedos marotos do pernambucano deslizando por sua coxa. Ui!


(continua)

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

#imperfeições


e quanto mais fundo vai o mergulho, mais imperfeita me apareço. me apeteço, mas me assusto, não me reconheço atrás do verniz antigo, me assusto, me espanto, me encanto, são bonitas essas minhas qualidades, e me desencanto, são tantos esses meus defeitos, deserdo-me, recompenso-me, e sempre mais imperfeita, por que tantas manchas, por que tantos pontos obscuros, quase perco a respiração mais fundo mais fundo mais fundo uma quase embolia, agonia, quero subir, tão imperfeita eu, mais que imperfeita, suspeita de mim mesma, estremeço, oh, de fato não me reconheço, suspiro, piro, não tem tinta mais nem verniz, só eu eu eu


tosh tosh tosh
o barulho dos anjos fazendo amor nas nuvens


tosh tosh tosh
eu digo a ele: carregue esse beijo que não dei em tantos, beijo-o em você


tosh tosh tosh
uma mulher bonita me olha atônita no reflexo! desvaneço, recomeço


tosh tosh tosh
tóxica imperfeitamente tóxica e bela muito bela


tosh tosh tosh
eu eu eu subo dos profundos rincões de mim mesma tão suja e escrota quanto ele sujo e escroto escatológico mas somos ambos seres humanos confusos de tanta dor de sermos humanos seres confusos


quanto mais me limpo me sujo, quanto mais me aperfeiçoo me atormento de imperfeições. nua, totalmente nua, e cheia de pintas, e estrias, e vincos, e poros, e pelos, e pontos de interrogação. belamente nua, e cheia de pintas, e estrias, e vincos, e poros, e pelos, e pontos de exclamação na alma.

viver é perigoso porque dói! dói! e nos extasia loucamente de sabedorias.

quero mergulhar de novo. sempre.
nem que isso signifique nova queda de meu próprio céu.

a mim e ao V.,
duas faces diversas da mesma dor de ser gente

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

desertora

Meu carnaval não teve tantas serpentinas, embora algumas frágeis cordas de papel tivessem roçado meu braço, meu rosto, minha cintura enquanto maracatus e batucadas ecoavam esquinas abaixo, ladeiras acima. Confetes sim, aos montes, nos chãos, nos sorrisos, nas vontades e nos olhares plenos de pura picardia. Meu carnaval não foi sóbrio nem bêbado. Não saiu da linha, embora eu dançasse, dançasse muito, eu pulasse, pulasse muito. Tinha um não-sei-quê que me tirava de lá, ainda que lá eu sempre estivesse, ouvindo Zé Ramalho, rindo da baderna alheia, suando meu vestido de chita, abrindo os braços de felicidade de tamanha liberdade. Mas algo me tirava dali, das serpentinas, das buzinas estridentes daquela displicência comportamental típica do carnaval, em que todos são de todos e tudo é mais que tudo. Na minha habitual solidão de indivíduo, fui tirada da arruaça e fiquei no balanço do jardinzinho de meu coração, tuc-tuc, toc-tão, cansado dos truques carnavalescos do bem-viver, do bem-querer. Não me movi de mim – estive onde sempre estou – e foi isso que me levou embora de lá, ainda que meu riso fosse bem ouvido e meus passos marcassem o asfalto de todas as gentes. Sem serpentinas, sem cordões, sem cordas, sem grilhões e sem querer ser apenas um ser entre tantos, tantos, tantos outros com lábios e corpos, sem pudores ou humores. Sem querer, então, laialaiá, fiquei no bloco dos desertores.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Dia de clown



Tudo parecia uma brincadeira,
Ou, talvez, um exercício sem maiores conseqüências.
Liberdade demais, disponibilidade demais.
Corpo vivo, braços vivos, alma viva,
Mas pés plantados no chão.
Andando pelo espaço!
Agora você tem uma cor, uma forma,
Um preenchimento – vapor, água gelada,
Vento, fogo, areia, pedra, barro.
Sonho, muito sonho.
Desejo? Dúvida? Dádiva?
Sentia lagarta virando borboleta
Dentro de um casulo que não era meu,
Que não era eu.
Era ele? Quem era ele?
Olho-azul-cabelinhos-de-anjo-negros.
Ponha o nariz e sinta o cheiro do mundo
O cheiro da vida
Deixe vir à tona sua sombra e sua luz
E vire do avesso diante da plateia.
A plateia...
A plateia éramos nós
–E eu, sem saber, estava do avesso,
Já completamente entregue.
Ele ainda anjinho de cabelos negros:
Vou até o paraíso,
Aqui eu desço, vinho, você.
Não importava nem a forma nem a cor,
Só o preenchimento:
Tudo, tudo o que estava dentro.
Medo a princípio:
Quem era ele? Quem seria eu?
E na sobriedade daquela madrugada,
Quando o táxi chegou,
Nada tinha sido exatamente consumado,
Mas tudo havia se apresentado.


E eu já voava pelo espaço
Sem que ele me pedisse nada.

(2006)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Era uma vez

ao Bico


Criancei-me novamente antes de me jogar no Bocó. As águas esverdeadas não se embarreavam nem com a chuvarada que caía sem parar – porque os rios da infância nunca mudam de cor. Via jacaré no tronco lascado, via cobra na folha enrolada, via eu mesmo de sorriso no rosto, marca de pernilongo na perna e muco no nariz que bem sabia respirar. Cada salto era uma grande novidade, a aventura de abraçar as águas que queriam me ninar. Tinha perigo de sanguessuga, a garotada falava em cobra, tia Senhorinha dizia: menino, acabou de comer mingau de banana com farinha... Mas eu estava lá, bocoiando no Bocó, bocoiando-me eu também, pois na aparente bobagem de criança a gente sempre é mais que sábio. Daí todo mundo ia se secar lá na praça, o pé grosso de barro, a camisa pingando de alegria, vontade de comer jaca e jogar futebol no time do Paulão. Sabia que no outro dia de sol o ribeirão estaria lá.

Mas podia ser que não.
Porque era uma vez um projeto de barragem, dessas de gerar energia para os monstros-indústrias, que queria inundar tudo, mandar a gente embora e acabar com o Bocó. Pra sempre.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

ORGIA

Sensação de crepúsculo quando ainda é dia mas a madrugada vem velozmente despertar-me do torpor que a solidão me provoca especialmente quando sorvo a mistura de expectativas com limão e não me detenho ao espaço entre um soluço e outro Às vezes não sei se confundo propício com indício tempo com vento ou se acerto na combinação entre disponibilidade e encontro Tenho medo de haver criado a narrativa em que me encontro truque divagação ou ilusão premeditada Não sei quem saberá A janela me revela nublados que não consigo compreender ainda e deixo escapar átimos de senões ou entões Porque quando ele se faz presente tudo se torna diferente e tão mais gentil O universo se transforma numa eternidade pequenina feita sob medida e a alma geme dentro de mim a alma geme quando o escuto Naquele fragmento de encontro naquele desmomento cheio de instantes novos e virgens Na pequena fagulha na minúscula partilha No entrecruzar de pernas de vozes de sorridências Na minha entrega mais virulenta Como desdizer ao mundo que o cadeado impede a entrada Como enfurecer o mundo com meu grito doido de mulher doída pela saudade futura de um acontecimento ainda em gestação Como me explicar se perco de propósito a razão e me refaço como duna hoje aqui amanhã acolá Ah Suspirações Metamorfoses Loucuras E estrelas amalucadas a rebrilhar sobre meus ares tão indolentes Uma autopaixão um enamoramento provocado por mim mesma a mim mesma Um pacote que entrego a ele em mãos sem selos sem laços de fita sem cadeados Abre-te porta abre-te coração abre-te mulher Ame-me homem vibra-me homem expedicione-me homem

Entreguem-se os dois!!!





The audience was quiet and attentive. It was extremely hard for them to understand the whole thing. They have got pieces of meanings from here and there, but this was not a big deal. Actually all of them became quite surprised about her performance and overall about the melody from her words. In fact she has been totally impressive, even not being aware of that (or perhaps just because she was not aware of that). Love was in the air, they were almost able to prove that, since they have already tasted it through her.


"Talvez"

(céu do ser-tão, 2009)


segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

E ele tem olhos para que, para quem?

Eu me encontrava no nono andar de um bairro sem grandes encantos na megalópole chuvosa, febril, agitada, estressada. Reverberante, regurgitante. Cercada de luzes escuras. Eu sentia um pouco de azia, eu sentia muita solidão.

Atividades mil, o país daqui, o país de lá, são décadas de tantas vivências. Nele, cabem vida e meia minhas.

Nas minhas ingênuas fantasias, era eu a única indisponível. E, quando finalmente corrigisse essa trava gigante em minha entrega, viveria a mais verdadeira das experiências amorosas – sem romantismo, sem inocência. A narrativa mais honesta.

Porque assim eu não só seria achável como possível.
Porque, por fim, atracaria minha caravela.

Mas, subitamente, ao me ver disponível e – por isso – vulnerável, encontrei um mundo ainda mais complexo e difícil: eles eram também todos indisponíveis e quase improváveis.

Mas ele? E ele?
Ele me vê?

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Eu, mulher


((nesse blog, eu não sou nada fiel.))

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

~ metonímia ~

(a foto é de Montevidéu em 2002, mas a lembrança...)

Então, ele segurou minha mão como se. Não sei mais de nada. Os sinais apagaram, só piscava amarelo de atenção, atenção, atenção. Os cruzamentos estavam cheios, entupidos, engarrafados: vou, não vou, saio, não saio, olho, não olho, enrubesço. Enrubesci. E a mão lá, em segundos eternos, sentindo o calor daquela outra mão que a tirou do limbo e a fez sentir-se... mão. Porque fazia tempo que ninguém segurava minha mão. Assim. Ou de outro jeito. Que nenhum homem segurava minha mão assim. Ou de qualquer outro jeito. Naquele momento, éramos apenas eu, meu coração palpitante, minhas bochechas enrubescidas e minha mão. Não sentia minhas pernas, nem meus ouvidos, nem minha razão. Algo havia acontecido ali, naquele momento: eu só tinha olhos para ele. Ele, que antes era um alguém opaco, alguém de alguns ois, alguns tchaus e outros talvez. E subitamente... Uma imensidão densa, como o Mar Morto, mas viva, esgarçadamente viva, como um tremor de terra devastante, naquele instante captado por duas mãos que se encontravam, surpresas e acanhadas, num mar de peles, corpos, pelos, cabelos, pessoas, sons, cadeiras, garçons, pratos e luzes. Meu Deus! Duas mãos. A dele e a minha. Metonímias, particularidades. Suaves, quentes, gentis – um encontro! Oh! Velozmente, vorazmente, agudamente, mais e mais, de um jeito estúpido porém cálido, eu me transformava numa imensa e esbelta mão direita abraçada com tanta ternura por outra mão direita, maior que eu, mais grisalha que eu, volúvel e dissoluta, infinitamente mais tímida que eu. E eu...


Quando me dei conta, já estava na porta do restaurante e meu amigo me olhava com marotice:
“Não foi nada.”
“Foi o quê?” – desfaleci.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Banco de praça


Ele veio passear em meus pensamentos de novo, enquanto eu comia um purê cremoso-grudento de mandioquinha e abobrinhas cozidas à moda crocante. Nada de mais a comida, mas ele estava lindo e bem-humorado e atiçava meu paladar com um despudor travesso. Vestia camisa branca e jeans, seus óculos de aros escuros, mas se eu quisesse logo apareceria mais esportivo, com camiseta de cor pouco importante e calça preta impermeável como na última vez que nos vimos.

Ele permaneceu em minhas recordações por longos meses, sentado num banco de praça batendo papo com os transeuntes, falando ao celular ou rabiscando ideias fugidias e deliciosamente marotas. Às vezes, eu ria sem saber – e ria dessas invencionices dele, escondidas entre neurônios e células sanguíneas. Eu quase nem sabia que ele estava lá, entre uma fantasia e outra, a não ser quando na vida cotidiana chegava alguma mensagem sua que logo o trazia para a borda dos meus pensamentos. Audacioso, ele não se contentava com a praça, lançava-se logo ao mar de meus desejos, abrindo ondas e descobrindo rios navegáveis onde eu já não mais me lembrava. Era um malabarista, um blasfemador. De um instante para outro, já estava na minha pele, nos meus lábios, nos meus ouvidos, no meu suor.

Na última vez que nos vimos, ele baixou a guarda, assumiu-se frágil e curioso diante de mim, a mulher. Escancarou as portas. Convidou-me para um último encontro, que tal beber alguma coisa, conversar, nos conhecermos melhor. E usou aquele “vai” de fim de frase, clemente, pedinte, quase se arrastando discursivamente aos pés de meu veredicto. “Me liga, vai.” Ele lá, exposto, doce, inteiramente revelado. Um sorriso, o olhar provocador, a cabeça inclinada. Recuei, aflita. Um homem, afinal. E me recolhi à preguiça da não-descoberta.

Acho que ele me perdoou e logo veio se instalar no bendito banco de praça das minhas recordações. Mesmo quando eu o esqueço, aturdida com alguma outra aparição masculina no cotidiano de fato, ou quando ele desaparece, quem sabe imerso em suas inúmeras atividades de pai-secretário executivo de instituto-filho-meio estrangeiro-meio brasileiro, quem sabe passeando de mãos dadas com alguma outra garota ou levando uma mulher desejada para ver um por-do-sol, ainda assim, nos encontramos sorrateiramente na tal praça, eu com nariz de palhaço, sem disfarçar o meu ridículo, ele com o sotaque ainda mais afetado que é para ficar sem graça de imediato. Comemos tapioca, rindo, e nos lambuzamos com um maltado. E assim nos entendemos, rolamos em purês de mandioquinha e de pequenos riscos, falamos abobrinhas, recolhemos nossas sabedorias e nossas ingenuidades um no outro.

É bonito estarmos juntos sem que estejamos necessariamente – é bonito sabê-lo. Partilhamos poesias espontâneas porque viramos trovadores um diante do outro. E cacheados, os dois. Distraída com a quase-possibilidade de revê-lo, às vezes me perco no encanto que sinto. E rapidamente me desfaço de expectativas ou planos, obstruo as rotas de fuga, apago os sinais de saída. Quero a descoberta. Porque sempre haverá aquele banco de praça, porque sei que ele existe e sua existência já me deixa mais feliz. Ele, o homem.