sábado, 11 de dezembro de 2010

meias

Se nós fôssemos palavras escritas com uma velha máquina de escrever, ele seria um borrão. Um “b” encharcado de tinta, as teclas “bo” batidas ao mesmo tempo, espatifadas na folha de papel, manchando o espaço entre as outras letras. Se nós fôssemos borboletas, ele seria uma mosca na parede – uma mosca displicentemente esmagada na parede. Se nós fôssemos dias, ele seria aquele mais nublado e cinzento, com chuvas encardidas e ventos gelados.

Em meio a tanta falta de cor, à insipidez de suas calças marrons e de seus suéteres pretos, à voz grave e indefinida, aos olhos caídos e desiludidos, lá estavam elas ousadas e pueris: suas meias coloridas. Cinza, marrom, negro, opaco, apagado, estático – todo um contraste com a alegria marota, com a bossa de suas meias. E ele fazia questão de misturar os pares, de ousar combinações. Por meio de suas meias, ele vivia a ousadia que lhe faltava no cotidiano, a coragem, a picardia, sua verdadeira revolução. Mas ainda que insistissem em carregá-lo para horizontes impensados, ele resistia. Ele resistia.

Se fôssemos, diante de seus olhos, homem e mulher, poderíamos viver o clichê de uma história de amor ou então partilharmos caminhos trôpegos traçados pela combinação entre pés viajantes e meias coloridas. Se fôssemos. Se um encontro fosse possível, ele não estaria tão cinzento, tão escuro, tão borrado. Ele seria uma mosca ressuscitada e tornada vagalume ou abelha. Mas ele preferia os desencontros, os lapsos, os abismos. E se escondia nas meias coloridas, quando sentia que correnteza da vida podia ser demasiado forte ou quando suas pernas teimavam em levá-lo de e para os mesmos lugares de sempre.

3 comentários:

Usui de Itamaracá disse...

Curti! Bem original o desfecho!

Faz tempo q não escreves, menina!

NelsonMP disse...

Não sinto que ele esteja escondido atrás das meias. Acho que ele está escondido de si mesmo, como todos nós fazemos dependendo do angulo em que somos abordados. A construção dessas pessoas "cinzentas" é muitas vezes consequência de acúmulos de ressentimentos não transmutados. Mas, se ele se escondeu de muitos ângulos da vida, ainda restou o das meias mostrando por onde ainda pode ser resgatado. Isso caso surja alguma compaixão interessada em fazê-lo. Há casos muito mais difíceis onde o ponto de resgate é tão pequeno que já nem é mais visível, e só pode ser percebido através do coração.

Fêê! disse...

fazia tempo q não vinha aqui, vc tinha parado de escrever!!!!
adorei sua volta