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domingo, 14 de agosto de 2011

Plástico vermelho



Era um dia daqueles. Pesado, modorrento, cheio de poeiras do passado teimando em grudar no suor do presente. Daqueles dias em que não há poesia possível no enfado de uma vida inteira. Daqueles dias em que o tempo se recusa a cumprir a programação habitual de 60 segundos formarem um minuto e assim por diante. Um minuto estava durando quase meia hora. Dia daqueles.

Acomodada no banco do fundo do vagão, fiquei ao lado da janela, mas longe da porta. Tudo bem, tudo bem, ia descer no fim do mundo, havia muito trilho ainda e o enfado do tamanho do mundo. Esse caminho longuíssimo para quê? Para chegar em casa e tudo continuar igual? Os outros passageiros pareciam padecer do mesmo aborrecimento. Caras fechadas, caras distraídas, olhares mortos ou cinzentos, todos querendo ir logo, porém ir para lugar nenhum. Estar no metrô, estar no trabalho, estar em casa, tudo dava na mesma. Estar já era um fardo; ser, então, nem se fale. E a porcaria da porta não fechava, quem o motorista estava esperando para dar a partida naquele trem?

Uma moça sorria no meio das manchas amorfas chamadas de gente por pura educação naquele fim de tarde, naquele fim de linha, naquele último vagão. A moça estava bem de frente, naqueles bancos que vão de costas. Que enjoo ir de costas, mas muitos não se importam. Para eles, o tempo passa ainda mais devagar porque se despedem com mais docilidade dos instantes. Talvez seja isso que cause enjoo em alguns, nos mais ansiosos. Ou nos mais defendidos. Mas a moça sorria, caramba. Como conseguia? Tinha um livro nas mãos. Claro, a moça sorria porque tinha um livro. Essa bolsa que carrego não me faz sorrir. O rapaz de gravata verde segurava uma pasta de couro e não sorria. A senhora ao lado mantinha apertada uma sacola de plástico e tampouco sorria. Só a moça com o livro. E já sorria antes mesmo de a porta fechar. Ufa, finalmente.

O livro estava coberto com uma capa de plástico vermelho. Ninguém mais encapa livro com esse tipo de plástico, meu Deus. Essa moça veio do túnel do tempo? Não parecia. Blusinha bacana a dela, não dava para ver os sapatos, mas ela tinha frescor. Esquisita essa capa. E, droga, não dava para ver o título do livro. Sobre o que seria? Uma história de amor? Não. Todas as histórias de amor são iguais. Começamos virgens e terminamos mais virgens ainda, só que no fim somos acidamente virgens e rancorosos. Como poderia haver espaço para um sorriso? Talvez ela esteja no começo do livro, então pode ser uma história de amor, ora. História de amor açucarada? Não, não. A moça tinha jeito de exigente. O modo de ler com avidez, os olhos dela não desgrudavam das páginas, os dedos firmes na capa de plástico. Talvez fosse um romance policial. Avidez com sorriso... Sorriso ao ler sobre um assassinato? A ficção nos permite extravasar agressividades-tabu: talvez seja o que nos mantenha ainda relativamente afáveis uns com os outros.

Agora ela apertou os lábios, que cara safada é essa? Em pleno século da solidão e do enfado, no dia em que a humanidade dentro daquele trem empurrava o tempo com desesperança e agonia, aquela mulher ousava existir. E resistir à modorrência cotidiana. Rosto nem bonito nem feio, ar simpático. Deve ser daquelas que, depois de umas taças de vinho, seguramente – e de modo sábio – aperta os lábios (como agora), fecha os olhos, dança leve, livre e solta no meio da pista, braços-pássaros, pés ágeis, quadris mais ágeis ainda. Uma alegria, uma energia, uma sensualidade. Os olhos pasmacentos dos machos presentes, antes ocupados com os alvos óbvios, a seguem vidrados.

Uma noite de sexo. Pela avidez com que a moça lê esse bendito livro com capa de plástico vermelho, deve ser uma descrição daquelas, que chegam até a palpitação dos músculos vaginais – das personagens, é lógico. Bem, há leitoras que, por tabela, também os sentem. Confessemos, por que hipocrisia numa hora dessas? A população imóvel do trem móvel, naquele tempo ausente, não parece a ponto de deixar sua apatia. Tampouco há sinais de outro espectador para a moça – e para mim. Então, confesso: já tinha sentido, sim, excitação ao ler certas passagens de livros, inclusive desses livros-cabeça que apenas eu, uma amiga e mais dois ou três críticos literários lemos. Meu Deus, a moça está gemendo baixinho, feliz. O homem mordiscando seus mamilos, passando a mão pelo interior de suas coxas, agora beijando o pescoço, tocando seu clitóris e... O que foi aquela encoxada, perto da escada? Quanto tempo fazia? Três semanas? Quase um mês. Ele a pegou de jeito. Foi tão rápido e tão bom. Talvez ela tenha suspirado agora. Chegou ao orgasmo? A personagem, quero dizer. Como o metrô é quente.

Essa franzida de testa. Pode ser que seja um livro de crônicas, e agora ela esteja lendo sobre a morte de uma galinha. Não era sobre isso aquele conto da Clarice? Divertido esse conto. Ela riu no começo, ficou meio triste em seguida, mas não mordeu safadamente os lábios depois. Nem franziu a testa. Era a hora da briga do casal? Rusga rimava com ruga e fazia sentido. A gente franze a testa quando não entende certas atitudes. Por exemplo: prometer ligar durante a semana. E sumir. E não dar notícias. E, depois de uns tantos recados no celular, torpedos e e-mails, uma resposta de uma linha só. Estou confuso, precisando de um tempo sozinho, foi bom estar com você, mas agora não rola. A moça ficou triste de repente. O que foi? Desculpa esfarrapada? Sim. O rapaz, no mesmo bar, com outra moça. Confuso, mas divertindo-se. O mesmo braço ao redor da cintura. A mesma piada da chamada para Tóquio. Os mesmos petiscos, o mesmo chope. Os olhos continuavam ávidos, mas ela realmente estava triste. Porque dói. Entre o despeito e o desrespeito, esse ponto é o que dói. Depois, um recado, um torpedo e um e-mail com a mesma mensagem irônica e afiada. Tirando satisfações, que decadência. A noite da encoxada foi tão boa que valia essa humilhação? Porque não foi só uma encoxada nem só encoxadas. Mas que história idiota é essa? Banal, tão óbvia, não, não e não. Quem leria tamanha bobagem? O livro de capa de plástico vermelho certamente é uma alegoria da sociedade contemporânea, de trens lentos e opressivos, de corpos e mais corpos se tocando sem qualquer pudor, mas sem qualquer amor, de braços estendidos para ninguém. Um livro sobre pessoas que não querem mais estar. Nem ali nem lá.

Por que a moça não havia escolhido ler algo original? Que merda de dia. As horas não passam. O telefone não toca. O trem não sai do lugar. É essa moça quem passa, quem toca, quem se movimenta. É essa moça com o livro de capa de plástico vermelho que, naquele segundo, faz a vida – qualquer que seja a definição para “vida” – acontecer. Por que nada muda? Queria fechar o livro, mas o livro não me pertence. Viro a página, então. O reflexo na janela me olhava triste. Não quero pena nem comiseração. Quero apenas... – ainda? – um romance em lugar de contos curtos e sempre finitos, muitas vezes ruins, ou então repetitivos. Um romance. Cenários diferentes, uma história que avança, personagens que não somem no meio da trama, estilo apurado, narrativa original. Capa de plástico vermelho: transparência e paixão. Sou de uma obsolescência medonha.

No amontoado de gente, não distingui mais a moça do livro. Onde se escondeu? Ela escapou da sonolência existencial da população do trem? A história acaba assim, então? Sem necessariamente ter um fecho? Saudade das narrativas da infância em que sempre existia um fim, ao menos uma linha, dando assim uma satisfação ao leitor. Acabou, sabe como é. Minha viagem também chegava ao fim. Bufei, desapontada.

Já na rua, noite anti-social, ser anti-social – dependo sem qualquer vontade da humanidade inteira –, ansiosa em pular para o dia seguinte, me senti cansada. Como se tivesse lido todos os ranços de uma história muito minha num livro. Naquela merda de livro de capa de plástico vermelho, mantido altivo e desafiante pela moça que sorria. No meio da massa aturdida pela realidade implacável, aquela mulher roubava os últimos golfos de energia emocional dos infames do mundo. Bem, talvez estivesse devolvendo-os.

Convenci o dono da papelaria a buscar, em sua sala de sobras, um pedaço de plástico vermelho desses de encapar. Sorte a minha que queria vermelho, me disse, pois era o único. Manchado de pó, resto de vendas antigas. Ninguém mais compra isso, afirmou o homem. Já em casa, encapei o molesquine novo e aspirei, com alguma excitação, o frescor de suas páginas em branco. Na primeira, com letras garrafais, escrevi: “Pois essa história termina aqui. Finalmente abro espaço para um recomeço”. Sorri, apertando os lábios, quase ofegante de tanto tesão.



sábado, 5 de março de 2011

TARÔ



Aquele dia você me viu de vermelho e logo intuiu que havia algo aí relacionado com amor. Dizem que o amor é lilás, na verdade, que o enamoramento seria róseo e que as paixões e loucuras do desejo oscilam entre o vermelho e o bordô. Importa? Não sei. Aquele dia você me viu, me viu de vermelho, e logo lhe ocorreu a imagem de um caldeirão medieval, comandado por uma bruxa muito sexy, dessas com decote e cinta-liga, misturando uma agressividade animal com uma delicadeza de anjo. Borbulhas, borbulhas, a mistura ferve, e em seguida se acrescentam atitudes masculinas a um ventre feminino. Sangue, muito sangue, sangue humano, sangue de mulher. E unhas, unhas compridas. A mistura borbulha, borbulha, fervente. Enquanto a bruxa sexy cuida de sua poção mágica – pitadas de lucidez, pitadas de Deus, fagulhas, muitas fagulhas –, chega o Homem. Entra discretamente. Homem – cabeça, barba, coração, pênis, pernas, pelos, sêmen, intestinos, inteligência, faro, testosterona, cabelos, pés, mãos, ossos, músculos, força, fé, fome, ternura, compreensão, homem. Ele. O homem arquetípico. O imperador? O sacerdote? O louco? O Homem olha a bruxa – bruxa não no sentido atual e mau, mas principalmente na síntese de Lilith, desafiadora e voraz – e ela se surpreende com a presença do Homem.

O decote é apenas um convite.
O homem não é apenas etéreo: ele tem uma ereção.
Os lábios. Os lábios dela estão vermelhos, tintos, veementes.
As mãos. Dele. As pernas. Dela.
Ventanias nos ventres.
Vozes, gritos, sussurros, músicas.

A mistura ferve, ferve, ferve. Borbulha, borbulha, borbulha.
Algo se passa ali: algo cai no caldeirão. Não se sabe se é suor, se é gozo, se é saliva. De um deles, de ambos.


Aquele dia você me viu de vermelho e intuiu de onde venho, de que sou feita. Aquele dia lhe ocorreu a imagem do encontro da bruxa com o Homem. Aquele dia você riu, um tanto bêbado, um tanto pícaro – indecente, eu diria. Ah, o amor? E gargalhou. Eu vestia vermelho e me alimentava de vinho. Vinho e açúcar, açúcar e espinhos.
Pois é, há aí algo relacionado com amor. Ou com as paixões, o desejo. Tudo ficou evidente naquele dia... Naquele!

sexta-feira, 4 de março de 2011

Mujer Poeta

(Sitges, España)




Perdón, Neruda.
No te he conocido en vida – no organicé tus cartas, no revisé tus poemas, no escuché tu susurrar mientras buscaba la palabra perfecta o la imperfección justa para una rima precisa.
No soy una poeta. Tampoco lancé botellas al mar con la ilusión de que alguien un día las recogiera; solamente he dejado notas en bolsillos ajenos sin esperanzas ocultas, apenas por el placer de semejar posibilidades narrativas a vidas grises.
Neruda, jamás he publicado un libro. Pero me dejaba estar horas delante del mar inventando nubes, alegrías o platillos para el alma. Horas, Neruda, horas.

No he cambiado el rumbo de la humanidad, pero he estado siempre muy atenta a los designios misteriosos que ordenan las piezas invertidas o contrarias en la vida de uno. Te podría describir olores escondidos entre las piedras del camino. O los sabores de atardeceres olvidados, cálidos y húmedos, preciosas sinfonías silenciosas del cotidiano. Te podría dibujar sonidos demasiado agudos en el comportamiento de algunos amigos o recitar momentos del más bello y puro dolor. Todo eso lo hice, Neruda, mientras cuidaba de algunas violetas, de una orquídea blanca y de un olivo enano. Mientras cocinaba para gentes alrededor, fijaba si las sábanas seguían limpias, si entraba luz por la cortina de la sala. Si todavía mi rostro aparecía en el espejo.

A veces, había demasiado polvo en la cama. Los inviernos casi congelaban el vidrio de la terraza y ya no tenía fresas en la nevera. Aún así, Neruda, aún así no he dejado de coser pequeños sueños y detalles para los vecinos.

Pues sucede que un día me sentí cansada de ser mujer. De cargar senos, útero, vagina, uñas largas, nalgas aparentes. Cansada de ser mujer, de esa sensibilidad que me hace llorar con un reencuentro, enamorarme de la luna. Cansada de escuchar otras mujeres en sus búsquedas tan arquetípicas y casi histéricas. Cansada, yo misma, de ser histérica – o agresiva, o romántica, o delicada, o celosa. Sucede que el sentimiento ya no pasa. Que me siento cansada de los fragmentos de Eva, Lilith, Medeia, Penélope, Helena, Madalena… que componen mi cuerpo y mi corazón. Estoy cansada de ese cuerpo, de ese corazón. No, Neruda, no quiero enfrentar las mañanas calientes con una falda corta y deseos infinitos. No suporto más la satisfacción en devorar una sandía o la necesidad de tanto, tanto, tanto silencio.

Hay demasiado ruido en el mundo – y yo me siento cada vez más excluida, encarcelada, insultada, violada. Sucede que el cansancio puede ser vigoroso y insomne y llegar a convencerme de que soy exageradamente ligera para el peso de la feminidad. Parece que no hay lugar para un simple baño de sol sin pensamientos ni hablas.

Pues poco a poco empecé a guardar mis trozos de silencio reprimidos en frases y párrafos inadvertidos. Con el tiempo ellos se volvieron cuentos y poemas traviesos, trabajados con la paciencia de un monje, con la soledad de un eremita, con la solicitud de una hembra salvaje.

¿Quien los leerá, Neruda? ¿Cuando se los leerán?
No sé, y la respuesta poco me importa. Sucede que estoy cansada de ser mujer, pero tampoco sé existir de otro modo. Y escribo a fin de evitar que mis silencios mueran, escribo sin que el mundo sepa – solo así ellos sobreviven, solo así puedo yo vivir.


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

m*i**c*u*e*r*p*o



Tengo un cuerpo. Este. No es un cuerpo griego, lamento, tampoco bíblico. Pero es un cuerpo de Lilith, que me pertenece. A mí. Un cuerpo entero, pleno. Un cuerpo abrahámico, un cuerpo ancestral. Salvaje, primitivo, lleno de cicatrices de historias. Las mías. Cortes, heridas, transiciones, transcendencias. Mi cuerpo. Este. Un cuerpo político, un cuerpo contradictorio. Un cuerpo con olor a sexo y pureza. Un cuerpo agresivo, imperfecto, harmónico en sus desarmonías. Este cuello, este culo, estas nalgas, estos senos. Medidas que no siguen reglas. Panza. Codos. Rodillas. Pelos. Tengo brazos, largos y delgados, ligeros. Manos que empiezan y terminan en uñas. Animal. Hembra. Tengo un útero, una vagina dispuesta y disponible. Carne, comida. Fluidos. Flujos. Sangre, sangre. Un cuerpo, mi cuerpo. Marcas, manchas, entradas y salidas. Piernas, espalda. Un cuerpo con cara, ojos, boca. Una boca hambrienta, boca de hembra hambrienta. Mi cuerpo, un cuerpo que es mío y único, un universo encerrado en si mismo, un camino desconocido. Pies llenos de secretos. Los míos.


Tengo este cuerpo. Este. Aléjate. Déjalo. Vate.
Olvídate de mis manos.
No toques mi cuello.
Devuélveme mis ojos, mi boca de sonrisas, mis sudores, mis palpitaciones.
Revuélveme.
Destrózame.
Toma mi aire, mis gritos, mis rumores más íntimos, mis suspiros.
Pero me devuelva las estrañas, las sañas, los furores.


Saca eses besos que pegaste en mi piel.
Coja la savia que me metiste entre las piernas cuando me follaste, todas las veces en las cuales me follaste.
Borra las ranuras de de tu pasaje.
Vate.


Este es mi cuerpo. Mío. Un cuerpo que sigue su historia sin tu presencia.
Un cuerpo vivo, túrgido, urgente.
Mi cuerpo.


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

sanguessuga


Sedenta. Faminta. Insone. Ofegante. Cheguei à beira do rio, lambuzei a sola dos pés na areia quente, no barro ardente. Já passava da meia-noite e a terra conservava o fervor de dias inteiros escaldantes e intensos de ousadias. Suava. Eu suava enquanto sentia a água gentil acariciar meus tornozelos indignados. Não, eu me engolia, não, eu lhe dizia, não, eu contestava, não, eu escutava, não as ruas, as chuvas, os postes, os montes, não as lágrimas, os perdões, as voltas, os vultos, não então? Suava de haver corrido, suava de haver morrido e ressuscitado umas quantas vezes, suava de haver amado, amado desesperadamente, inconsequentemente, palavras grandes e longas, sentimentos solenes e urgentes, advérbios bem colocados e evocados com tanta compaixão. Havia, portanto, amado suntuosamente. E a grama que roçava meus dedos cheirava à cólera, cheirava à calma, cheirava a contradições várias, cheirava à alma. Meus pensamentos pesavam, sobravam, escorregavam de minha cabeça ofegante, insone, faminta, sedenta e espatifavam-se no asfalto da estrada nua e crua que acolheu o meu fugir. O meu desgrudar. O meu reinventar. Sobravam, portanto, gritos surdos e macios quase a ponto de escapar de meu coração:

Por quê?


Por quê?


E agora?


Cheirava-me à alma, cheirava minha própria alma em busca de consolo. Embebia-me na água do rio, mas morria aos pouquinhos de sede. Outra sede, não a sede de todo mundo, de todos os dias, de todos. Fêmea, explodia em sangue de vários tons. Todos meus.Todos repletos de sons. Tons, tons, tons. Sons. Tons, tons, tons. A decepção é marrom. A raiva é tão vermelha quanto o despeito e o desejo. O amor era lilás. Mas hoje, em meio à água-irmã, era toda sangue. Sangue, barro, areia, água. Meu útero jorrava sangue, jorrava indignação. Meu útero: o mais belo presente que poderia haver partilhado. Meu útero que lhe encantava visitar de tempos em tempos. Lugar sagrado de meu próprio corpo, templo de oferendas, onde ele entrava só quando era dia de lua e tempo de paz. E hoje havia luto, sangue e fluxos.

Paz. O mundo das águas é puro silêncio e reverberação.
Paz. Tudo passa. Paz. Meu corpo absorvia líquidos alheios, meus olhos aos poucos reaprendiam a repousar.


Os troncos úmidos e pegajosos da beirada ribeirinha foram gentis: era manhã quando me espreguicei, abraçada por mãos inventadas e firmes. Me protegiam da correnteza sem me tirar a leveza. Ainda tinha sede, ainda tinha fome, mas já não havia mais vermelho. O suspiro matinal tinha cor de abóbora: doce e suculento. E forma de broto: recomeço.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

terça-feira, 25 de agosto de 2009


Dobra as dóceis pernas quando caminha, fera felina e humana,
Aninha mansidões em trechos extensos de bem-querer
E profundas indignações em cantos obtusos de seu peito circular
E caminha e caminha e caminha
Já que nunca chega e não chega nunca e nunca não chegará

Solidões são sólidos limões que correm escorrem morrem no Solimões?
Estalactites ecoam dúvidas deprimentemente individuais
– seiva: fissuras são normais

A frieza das indiferenças das incompreensões dos descompassos e dos marcapassos
socioeducativoculturais – puros sais de banho
O apelo ardente do frio lá fora clamando por coragens interditas e paciências infinitas
Na era do gelo – mero cobertor para a incessante dor
Desdobram contrastantes interações com esse tal de “mundo lá fora”
(não use aspas)

Agora: -pare com isso de ferimentos experimentos excrementos e jumentos
De quem quer que seja, sejam meus, seus, nossos, ou dele!
Cuide do bolo empantumado no forno de suas – não minhas – excomunhões
Pare, pare, pare de falar de cumprir de exibir de esculpir obrigações,
Por que não me rasuro de suas contas caras do passado?

Paz, pelamor, paz
Silêncio, sêclemente, ouvidos

Fera felina caminha e caminha, caminha as dóceis pernas que se dobram
Na dor no salto no bote no desapego na oração e na morte
São vastas vastas vastas essas trajetórias inconclusas e difusas
São vastos vastos vastos esses ires e voltares em tons estelares
Novos grandes largos frescos ares
Ah, humana felina santa cruel princesa enternecida,
Dama e bruxa no beabá.

Quase, quase, quase e lá
Um horizonte ofuscado pelo tempo kairós de uvas sem caroço e de mulheres sem moços
Um heróico esforço de delicadamente mastigar
O fulgor o estupor o pavor o temor de ultrapassar
A fronteira entre o existir e um inevitável eternizar-se.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Eu, menina de lá, de cá

('A Menina de Lá' roseana, do Morro da Garça)


Menina pequena, ela tinha seus companheiros imaginários. E criava histórias sem-fim, onde as fronteiras não existiam e todos os mundos do mundo faziam parte de uma mesma trajetória, a dela. Pensava em passarinhos verdes e borboletas grandes e azuis e, embora não desejasse arco-íris, sabia fazer chover às vezes. Subia em jabuticabeiras, pés de pitanga e criava experimentos com formigas no quintal da avó. Criança criação criatura... No playground paulistano, inventava brincadeiras que recebiam logo adesões. Caça ao tesouro, show de calouros, nave espacial e, no comando de uma bicicleta, imaginava travessias e longas jornadas: carregava leites de caixinha e frutas para sobreviver fantasiosos longos períodos, caminhando num esmo de rumo certo.

Menina grande, ela lia e escrevia, escrevia e lia, observava a chuva da janela com aperto no coração e sonhava beijos em rapazes quase sempre impossíveis. Sonhava asas também, caminhava sozinha por suas florestas escuras de castelos embolorados. Aprendeu as rotas quase todas e desse convívio consigo mesma surgiu uma amizade duradoura e dourada. O inóspito do externo não atemorizava tanto, só a sofria muito, mas suas invenções continuavam a inspirá-la: suspirava nos infinitos de seus cheios e acampava em seus vazios, quando a lua chegava cheia e o sol se despedia gentil.

Mulher, ela redescobriu as veredas e os buritis que intuía, porém não apalpava. A travessia virou verdade e ela mudou seu compasso na hora de atravessar o tempo. Já sem agitos ou delitos contra si mesma, já bem mais favorável às temperaturas de si e do vento, do mar e do momento, das miudezas todas. Grande, grande, enorme, se tornou mais pouso para passarinhos verdes e passou a enxergar mais borboletas, de todas as cores, especialmente as azuis.

Enamorou-se dos primeiros cílios longos em Belém, compreendeu o desapego no Nada Yoga Ashram, chorou o chão de El Mosote, fez um trajeto noturno e mítico na Sierra Nevada. E, à beira do Córrego do Onça, reconheceu sua versão para “A Terceira Margem do Rio”. Chegou à outra margem, tendo passado pelo período de ‘dúvida pedrina’, quando andar sobre as águas exige uma coragem daquelas (como a dos castelos bolorentos e profundos), sob tormentas e escuridões, e pisou chão firme no desconhecido. Madrugada, quase manhã. E agora?

“Tant sols cal que entenguis realment el significat d'aquests versos grecs... No es fàcil... Jo encara ho intento... Quan ho entenguis, estaras més tranquila ja que sense saber on, sabrás perqué hi vas”, ele surpreendeu-me.

Sense saber on, sabrás perqué hi vas.
Está quase.

(A menina já do lado de cá)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A Whiter Shade of Pale

Quando a música deu seus primeiros acordes, todos os presentes olharam para trás. Não havia pompa, não havia ostentação. Havia, sim, dois inteiros – dois universos inteiros e diferentes – buscando uma união sob as bênçãos divinas. Simples assim, complicado assim.

Eram duas vidas cruzadas ali por puro mistério. Um pouco pálidos, talvez pela solenidade do enlace, mas os batimentos acelerados revelavam que seus corações andavam corados. E ali, naquele momento, entre “A Whiter Shade of Pale”, o buquê de rosas e eles, esse ritmo róseo era o que realmente importava.

Um dia, ele partiu. Não foi repentino: a separação provocou a mesma dor da união, posto que desencaixe do encaixe. Tudo seguia muito simples, sem qualquer ostentação, e todos os presentes olhavam para frente. Não houve música naquele dia, os ventos mineiros espalharam as folhas secas por cima da laje de mármore da família e espantavam as borboletas. Ambos estavam pálidos de verdade. Ela, pelo impacto da ausência. Ele, pela partida irremediável.

As cores sempre voltam a seus sabores. E, graças a esses dois mundos, estou aqui – um universo largo e difuso, mas belo pela própria natureza de universo humano.
E, se hoje passa uma nuvem muito grande e pesada sobre mim e sob o sol, acato a necessidade da pausa, da solidão e da transformação. Uma breve sombra pálida que não tira meu rosado, mas o realça: a novidade, como diz o genial Rilke, passa ao sangue depois de ter sido solenemente absorvida pelos intestinos e interstícios do ser naquele período pesado de tristeza e de paralisia momentânea diante da vida.

Fui gerada assim também: num instante pálido, como uma novidade, gestada no silêncio sôfrego das indefinições e brindada ao mundo por meio de sangue, placenta e amor.

E cá estou, pois. Estamos.
Bem-vinda, novidade. A seu lar que sou eu.