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domingo, 17 de fevereiro de 2013

miradas


Nos quedábamos ahí, más o menos sin rumbo, en búsqueda de cualquier cosa que hiciera sentido en noches cálidas o mañanas frías. Pucha, qué cliché, decíamos, culpa siempre del vino y del amor. Pero no me amas, yo me acordaba, y casi ya no hay vino. Qué importa, vaya, mira al mar, por las arenas de la Barceloneta todavía se encuentran rastros de todos los amantes que vinieron antes de nosotros. Pero ya no me amas, yo intentaba acordarme, y has bebido todo el vino. Qué importa, ¿por que te preocupas tanto?, qué importa si ahora llove, si nuestras espaldas se ponen resbaladizas, tú has cambiado tanto y – ¡híjole! – mira,  de verdad, ya te veo tan escurridiza. Nos quedábamos allá, menos o más sin rumbo, esperando que viniera el sol o las estrellas, lo que hubiera llegado antes. Pucha, de nuevo, vuelves con esas palabras sin nexo, hay tanto lo que no hacer y lo haces todo, te olvidas, no me cierres tus ojos. Las gentes y sus bicicletas volaban cerca de nosotros, ya éramos otros, caray, el tiempo, siempre el tiempo, otro cliché! El tema es que nos habíamos vuelto clichés, me daba cuenta con tristeza. Era una lástima, como no estar cerca de aquel rostro, como alejar de él mi corazón, olvidarme de los besos y de los barquitos de papel. Había mucha vida siempre alrededor, a las nueve de la mañana, a las tres de la misma mañana, a las diez de la noche, a las siete de la tarde – porque allá la noche llega siempre con retraso.

Echo de menos las horas en que nada era muy complicado y nos sentíamos libres, yo me sentía libre, había vino y tanto amor.

Extraño.
Añoro.

Saludos, pero ahora me voy.

domingo, 9 de dezembro de 2012

nonada: donada

Seguia as pegadas do rio. Um rio que quase nem estava, mas generoso me tocava, como amigo que conforta aquele que fica depois que todos vão. Eu não me conformava: queria ir também. O barro sedoso me acariciava os pés, alisando cutículas e quereres diminutos, cuidando dos calos, das unhas grosseiramente aparadas. Garras. Vez ou outra, me largava de joelhos, como se pedisse clemência, ah meus pecados todos, esses dizeres que eu digo e depois não consigo apagar. E logo ganhava um abraço, efêmero, fluido, da água morna.
Araras. O sol ardia, a saudade ardia, a cicatriz recente doía, doía -- doce, abrupta, cor de mel. Os buritis davam ritmo aos minutos, já que o tempo tinha se perdido de mim. Que sons eram aqueles? Cavalos? O rio não tinha pegadas, mas eu continuava seguindo rastros quaisquer: era por ali que eles tinham ido. Minha sombra corria na frente de meus delírios, meus sorrisos nervosos despediam minhas sanidades e ao longe, mas lá bem ao longe, vozes me confundiam, me confundiam com os pássaros, as vozes se confundiam com os pássaros, eram de novo as araras, os cavalos?
Me deixava embarrear com generosidade, esbarreava, embarreava, nada já me barrava, amigo esse rio, que não tinha vergonha de sua fragilidade escancarada. Quase nem rio, tão rio, quase sem água, vazio, mas tão cheio. [Eu o preenchia inteiro.] Os buritis. A cicatriz. As margens arenosas do período de seca acolhiam nossa mútua companhia às margens de dentro, quando estávamos ali. Carcaças. A seca que sorvia a água e desamparava o rio me desamparava também. As boiadas deviam passar longe, bem longe dali.
Era agosto, e as poucas nuvens no céu não suportaram o ardor das queimadas nas entranhas dele: acolheram-no, cordato e gentil, todos cordatos e gentis, todos menos eu. Segui as pegadas do rio no próprio rio, em sua estranha sobrevivência de quem chora sem lágrimas e ama sem amor. Tocava o fundo de mim mesma ao tocar o fundo exposto daquele rio quase seco, experimentando a nossa síntese.
Quando optei pela urbanidade, tinha a enganosa expectativa de ficar ainda mais e mais e mais na margem arenosa sorvendo os sons, as sedes, as súmulas, os sumiços e os nossos sonhos por mais um pouquinho assim de eternidade. Mas não era mais verdade -- e hoje jazo sob o concreto sujo, seco e duro, sem comiserações. Não existem mais rios. Não rio mais.


sábado, 8 de dezembro de 2012

eu e ele, um capítulo nosso

(ya sabes que es para ti)


Antes, *ela* era apenas um personagem em duas fotos bem colocadas na estante dos CDs. “E isso importa?”, ele rebateu, quando interrompi nosso primeiro beijo para apontar o tal porta-retrato, eu, toda acuada no sofá. Encostei meus lábios nos dele e contive sua pressa com minha língua. Aos poucos, encontramos um ritmo nosso, intenso como nós dois, insolente como nós dois, mas respeitoso à austeridade das histórias que nossos corpos carregavam, das histórias do mundo que nos transpassavam. Não, *ela*  pouco importava. Pouco importou até um mês e meio atrás.

Havia devorado meio saco de batatas fritas com a plena consciência de que isso não suavizaria a angústia de sempre e que a única serventia de meu ato rico em gordura saturada seria sublinhar o cansaço. Porque também me sentia uma espécie de gordura saturada: densa, saborosa, ciente de minhas propriedades, mas definitivamente perigosa para corações alheios. Corações alheios! Ele estava agora preparando sua viagem a Genebra a fim de encontrar *ela*, a nobre e digna *ela*, que terminava um curso de observadora internacional de processos eleitorais problemáticos. Em breve, disse ele com orgulho, *ela*  receberá uma missão para seguir a algum canto do mundo. Sem ele, obviamente. A tão bem-preparada *ela*  que aparentemente pouco se importava com a anatomia física e intelectual de seu ele, com sua arrogância de literário, sua habilidade em preparar arrozes variados e bifes à milanesa. O porto seguro desse homem que escrevia e transava com a urgência de quem dispõe de apenas uma hora: uma hora de divã, uma hora de visita conjugal, uma hora de descanso, uma hora de exercícios nas barras, uma hora de viagem até o recanto preferido na praia.

As minúsculas guerras cotidianas que cada ser humano trava diariamente dentro de si, estando o não consciente disso, são tão sangrentas e estúpidas quanto esses atos coletivos de catarse e barbárie. Eu sabia que alguma comoção lhe causava, ao mesmo tempo em que tentava eliminar qualquer possível expectativa que teimasse em brotar dentro de mim. Não estou apaixonado, você me entende? Não estou. Ele me repetiu isso três vezes num dia em que saímos. Outras três vezes três semanas mais tarde. Acho que já sei qual é seu número mágico, ironizei. Numa tarde de inevitável comoção, não quis me olhar e comentou que sonhara com três filhos. Sabia que, aos 50 e poucos anos de idade, era uma visão quase piegas e melancólica da tal família perfeita, mas, se sonhava com isso, fazer o quê? 

Ele voltou a tocar minha mão: "se não eu e *ela*..." Não disse mais nada. Eu não queria ouvir qualquer murmúrio, porque a única coisa em que pensava era em meu desejo imenso de ter um filho com ele. Que juntos pudéssemos escrever nossas obras, cuidar de orquídeas e de oliveiras-anãs, cozinhar especialidades várias e cuidar de um bebê. E que *ela* se apaixonasse por algum alto executivo das Nações Unidas, mudasse de nome, pintasse os cabelos e fosse para bem longe, deixando-me em paz e a sós com meu homem.

Mas hoje era uma quinta-feira como qualquer outra, passava das 14 horas, eu havia devorado a metade que restava das batatas fritas e aquela tarde de sábado de quase um mês atrás tinha virado uma fotografia em algum porta-retrato da memória dele. “E isso importa?”, ele teria perguntado.
 
Lonjuras.

Talvez naquela imagem escondida e largada entre as lembranças reprimidas de nossos corações estejamos ambos de olhos fechados, sonhando com tardes lilases nossas, à beira-mar.

terça-feira, 6 de março de 2012

Huellas



Terminarás odiándome, me dijo.
Yo miraba la ventana de la cocina, intentado mensurar los aportes de la lluvia al jardín. La tostada en mis manos ya estaba por crear tela cuando la decidí comer. Y comenté en voz alta, así casualmente, como se hablara a las migajas sordas sobre la mesa, a mi café ya frío, a hormigas invisibles: tu mermelada de fresa está riquísima.
Él tenía esa costumbre – coger frutillas silvestres para preparar mermeladas. Estaban ahí en la mesa, acompañando huevos revueltos o queso fresco. A veces las hacía de naranja con jengibre, en otros momentos de plátano, a menudo de fresas. Mi sueño, me comentó cierta vez, mi sueño es construir una casita en el pueblo de mis abuelos, meter ahí mis discos, mis libros, una mesita donde pueda escribir. Quizás tener un perrito juguetón, unas ventanas inmensas de donde se vea la montaña. Y por lo menos tres veces a la semana coger frutas para mermeladas. Yo, despistada, pronto imaginé una bodega rústica llena de potes coloridos de sabores diversos. Creo haber añadido la posibilidad de un huerto o de un jardincito con flores. Él no me miró; mantuvo sus ojos clavados en el horizonte. Había algo de dolor en aquel silencio.

Terminarás odiándome, me dijo.
Yo organizaba los libros en el estante, intentado cambiar la distribución de espacios y así darle a la pequeña biblioteca una cara nueva. El postal ya medio amarillo se quedaba ahí, sobre la alfombra verde, ignorando por completo mis movimientos mientras yo buscaba fuerzas para tirarlo a la basura. El atardecer en Tossa ya se vía descolorido, las letras ya habían perdido energía y el sentido: gracias por compartir tus nubes y tus brisas.
Él me comentaba de sus caminadas en la playa, temprano en la mañana, la parada para algunos ejercicios en las barras, los gatos que surgían de todas las partes cuando aquel señor viejito pasaba por allá con sus trozos de pan duro y seco. Tenía su escondrijo ahí, un banquito estratégicamente puesto atrás de unas piedras, ya sobre la arena, muy cerca del mar. Un día se inventó un barco imaginario que lo llevaría del Mediterráneo al Caribe, ultrapasando distancias y fronteras, reglas y prohibiciones. Yo, animada, pronto me apunté para hacerle compañía. Creo haber sugerido la posibilidad de bajarnos al Atlántico, viajar con los delfines y encontrar una isla desconocida disponible para nosotros. Él tampoco me miró, quizás ni haya escuchado; sus ojos, como siempre, los mantuvo clavados en el horizonte. Había algo de ruptura en aquel silencio.

Vine a comprender su enigmático aviso algunas semanas después, cuando partió sin avisar o despedirse. Cargó toda su ropa, todos los libros, algunos muebles y aderezos de la casa. Su mejor amigo me comentó que el plan era jamás volver. Capítulo cerrado es capítulo cerrado para él, dijo. Fue a vivir una historia de esas que decía odiar, con el clásico final: “y vivieron felices para siempre”. Pasé unos días confundida, sin comprender a veces por que llovía, ventaba o por que motivo las berenjenas se quedaban demasiado cocidas. Tampoco entendía por que la gente alrededor hacía tanto ruido, por que el reloj tardaba tanto a cambiar de horas o por que mi corazón súbitamente se callaba. Pero no terminé odiándole.

Aún hoy dibujo el personaje “él” que en mí se quedó en hojas ya amarillas del tiempo o en tostadas saladas, en ciudades sin mar. No terminé odiándole, al revés.
Había algo de ruptura en mi propio silencio.

Necesito decirte: adiós.

sábado, 15 de março de 2008

ÁTIMO

(2007, MF)

“Mas de repente tudo já não cabia mais só dentro dele; precisava de um acontecimento externo que justificasse toda aquela largueza de dentro. A coisa externa não acontecia. E, se acontecia, não justificava. Por que não se render ao avanço natural das coisas, sem procurar definições?”A Chave e a Porta, Caio Fernando Abreu






Foi por um átimo.
Caminhava distraidamente. Nem notara a faixa de pedestres, a buzina agressiva do carro apressado, o esbarrão proposital do rapaz engravatado. Seu pensamento era um caos de fragmentos de outros tantos pensamentos. A madrugada de domingo. A garrafa de vinho pela metade. O primeiro encontro. O encanto surgido não sei onde, não sei quando, no meio de tantos cacos de sentimentos. A palavra mágica: venha. Os dez reais emprestados para o táxi da volta. A colcha amontoada do lado da cama, esperando a ida à lavanderia. A camisinha vazia, a camisinha cheia. A camisinha não usada, a sensação do gozo em suas mãos – quente e urgente. A frase que terminava em vírgula. O olhar assustado. Seu próprio riso, envergonhado. O vento morno, o vento frio. A negativa, a confusão. Frases que agora terminavam em ponto final. O beijo de novo, beijo úmido. O toque dela, o arrepio dele.



Ah,
Outra faixa de pedestres. Sem buzinas, sem esbarrões. Uma multidão, mas ela se imaginava sozinha, como se encapsulada. Nada protegida, porém ao menos se encontrava vestida – vestida pela aceitação da ausência dele.
Ah, aquele dia em que descobriram as coincidências todas. Ah, aquela noite em que se deu conta de que o desejava. Sonhou com ele, quase teve um orgasmo. Uma freada pudica brecou suas lembranças quase indecentes. Não podia ir rápido demais, nada acontecera. Nada? Beijo, abraço, sexo...? Nada? O que havia acontecido? Um irresponsabilidade consciente, ele dissera. E para ela? O tiro da roleta russa. Bala no coração. Ele nem se comovera com a metáfora. Tinha a namorada – finalmente a mulher idealizada! –, depois de tantas mudanças queria segurança, era mais visual que sentimental (isso significava que ela era feia?), onde foi parar a estabilidade. Saudade.




Suspirou. Todas as indagações inspiradas se transformaram em lamentos expirados. Sofrimento desse tipo precisa ter data de validade. Sonhou-se criadora, criativa: pois bem, novos personagens, novas paisagens, novos cenários, novos roteiros. Ele era prolixo, mas não falava mais com ela. Da última vez, balbuciara qualquer coisa como “você vai pegar o metrô?”. Ela mal escutara e já respondera que não. Ele estava cinza naquele dia. Sem viço. Não era o mesmo homem, não era possível. Parecia uma lâmpada prestes a queimar e sem nada a dizer. Ploft. No entanto, para os outros, para o mundo, seguia com seu blábláblá.




Ah,
Outro suspiro, outra faixa de pedestre não notada – a calçada parecia uma reta contínua, eterna, e ela, uma mancha colorida recém-saída de um quadro de Miró –, nada contra o blábláblá dele, ela até gostava de ouvi-lo falar às vezes, mas preferia quando ele deixava aflorar o lado nada teórico. Quando ele falava de si, quando ele contava suas histórias, quando ele respondia as perguntas dela. Uma delas ainda pairava no ar: você foi um menino tímido? Ela sabia a resposta. Só que ele se esqueceu de responder. Ou não quis. Há mais de uma semana usava um nick em que afirmava que os olhos de alguém iam ser atendidos. Não eram os dela. Certamente – ela inspirou uma melancolia alheia, que passava ali naquele exato momento, exalada não sabia de onde – não seriam os dela. Expirou, suspirou.




E foi quando olhou para frente e o viu. Ainda estava na mesma rua, já havia caminhado bastante, cruzado tantas travessas. E, alguns passos à frente, ele, surgido de modo inexplicável. Puxa. O coração não acelerou, pelo contrário; contraiu-se. E soltou uma batida tão forte, assim, encolhido, que ela olhou constrangida para o lado. O senhor de boné e as duas moças que acabaram de passar à sua esquerda a olharam, curiosos. O engravatado à direita não ouviu. Nem ele. Piscou – ele ainda estava lá? A calçada, a rua, as pessoas, os faróis, as faixas de pedestre, os carros, as fachadas – tudo se transformou num grande quadro vivo de Pollock. Beat, batida, coração, seus olhos sendo atendidos. Em vez de um sim, veio um não. Muito forte para acreditar. Que seus olhos sejam atendidos?! E ele ali? A pincelada mais forte, mais intensa, mais chamativa daquela grande tela de Pollock? E o que ela, mancha de Miró, fazia ali? Quem estava fora do lugar?




Era o acorde mais alto de uma música pop. Era a pelotinha de sal na salada feita às pressas. O nozinho de lã no cachecol tricotado pela avó. A espinha na testa. Aquele fragmento negro na película há séculos em cartaz. Quem estava fora do lugar, então? Ele na vida dela? Ela na vida dele? Danem-se essas buzinas todas, essa brecada ruidosa. Não vem que não tem. Não me impeçam! Agora não estava mais encapsulada, continuava desprotegida, ficara desnuda, corada, acelerada, sentimental.




Ele é visual, lembra? Ele não a viu.




Foi por um átimo. Motivos misteriosos fizeram com que ele voltasse a cabeça para trás, como se quisesse certificar que estava sendo seguido, como se buscasse algo esquecido para trás, num tempo não muito distante mas não mais presente. Havia manchas entre eles – de Van Gogh, de Monet, de Paul Klee – ah, aqueles passarinhos amarelos do quadrinho do Paul Klee –, de Gustav Klimt. Muitos quadros se cruzando ao mesmo tempo, como se os museus e galerias do mundo tivessem despejado tudo naquele pedacinho de planeta. Mas ela podia ser também uma personagem de Almodóvar, de um dos últimos filmes do Almodóvar, enquanto ele estava definitivamente num filme de Antonioni. Godard, talvez. Ela, no primeiro episódio de Three Times. Ele, no último. Não houve um segundo, foi um átimo. Entre eles, uma multidão de figurantes, de coadjuvantes, de fragmentos e de scripts, de novidades e de medos, de desejos e de blábláblás, de des – vários des.




Ela o perdeu de vista. Ele virou para frente novamente.
O mundo readquiriu suas feições de mundo. A calçada, a rua, as pessoas, as faixas de pedestre, os carros, os faróis, as fachadas.




Por um átimo, por um átimo.



Sentiu uma gota na bochecha. Estava chovendo? Outra gota, mais outra, uma multidão de gotas. Carregava uma nuvem nos olhos, era isso. Putz.
Quando finalmente virou a esquina, tocava uma música: Dance Me To The End Of Love, na voz de Madeleine Peyroux.

domingo, 7 de outubro de 2007

Hoje me despedi de um tio da infância.
Houve roupas de cor preta, choros, orações e velas. Houve reencontro de laços e muitos abraços.
Somos finitos. E a finitude às vezes desespera porque inexata. Não a creio insensata, mas admiti-la revolve o fundo dos fundos e deixa a água turva, turva de verdade.

Hoje fiquei ainda mais longe da infância. E de meu tio, cujos contornos repousavam serenos acompanhados por flores e véus. Vestia o terno do casamento, tio viúvo, porque da tia já havia me despedido faz tempo, levava sua vara de pescar e seu chaveiro do São Paulo. Hoje me lembrei, novamente, de que não só os tios envelhecem. Eu também envelheço. Não sou mais a menina daquela infância povoada de tios. Parte da areia da minha própria ampulheta já mudou de lado.

Pouco a pouco, os tios vão se despedindo. Outros tios da infância se foram antes, e sei, com aperto no coração e olhos nada enxutos, que outros, os outros todos irão. Sinto saudade dos tios todos e saudade da memória que eu tinha com os tios.
Sinto saudade do meu pai.

Por que dói tanto a despedida? Com ou sem fé, por que dói?

De tempos em tempos, a finitude vem nos recordar de que deixamos muitas coisas para depois. Que, por motivos frouxos e roxos, não dizemos "eu te amo", "me desculpe", "eu preciso de você", "te perdôo" na hora certa. Colocamos baterias incansáveis nos relógios com a doce enganação de que eles nunca vão parar de funcionar. Eles talvez não. Nós... nós sim.

A finitude nos pergunta: a quantas anda sua existência?
Minha resposta me acalmou.

Hoje, quando me despedi de meus tios, revi meus primos de segundo grau, filhos dos primos que são os filhos dos tios. E pensei que, um dia, talvez os filhos dos primos se lembrem de sua infância povoada de primos-tios. E eu esteja entre eles, sobrevivendo nas recordações, em instantes fugidios, em breves flashes de sorrisos e carinhos.

Vi minha mãe caminhando pelas veredas.
Vi irmão, cunhada, outros tios, primos, filhos de primos caminhando pelas veredas.
Imaginei todos meus conhecidos e amigos e queridos caminhando pelas veredas.
E, mais que a despedida do tio, talvez o que realmente doeu hoje tenha sido a aceitação do exercício do desapego. Senti saudade por antecipação.

Senti vontade de cabê-los todos no meu abraço, num grande abraço carinhoso. Senti vontade de que partilhássemos ainda muitos e muitos momentos.
É a vida que me emociona, no fim das contas.
É a vida de cada instante de carinho, de cada pequena disponibilidade, de cada oportunidade de partilha, de cada poema colhido junto no mundo -- que quantas vezes deixamos escapar, meu Deus, por motivos bestas.

Não temos tempo.
Não temos dinheiro.
Não temos paciência.
Não temos compreensão.
Não temos coragem.
Nos falta sensibilidade.
Nos falta atenção.
Nos falta disponibilidade.
Nos faltam veredas para caminhar.

Infinito enquanto dure. Mas somos finitos, não custa recordar.