domingo, 30 de março de 2008

ÚLTIMO, PRIMEIRO


“Amar os outros é a única salvação pessoal que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.” Clarice Lispector




Viver cada dia como se fosse o último. Porque sempre pode ser o último. Porém, viver cada dia também como se fosse o primeiro, com aquele frescor dos primeiros dias, os olhos completamente recém-nascidos, os ouvidos aprendendo a identificar os sons – entre a música diária e os ruídos, um longo e eloqüente silêncio –, o sabor de frutas recentemente descobertas, a pele clamando por ser tocada, porque novos dias são sempre dias novos. Clichê? Se desapertasse a tecla mute de seus pensamentos, se eles se espalhassem em voz alta, iriam acusá-la de proferir clichês? Ora, então acusam a natureza de produzir lugares-comuns. Porque eu não invento nada, eu apenas contemplo, às vezes constato, quase somente sinto. Sempre. A morte seria um clichê? O arco-íris, outro? E o pêssego? Ora, ora. Como hoje é meu último dia, disse a si mesma, rindo, num sussurro extremamente sedutor, farei dele uma sucessão de clichês. Como também será meu primeiro dia, não me importarei em ser autêntica com todos os meus poros. Riu mais alto. E repetiu: com todos os meus poros! Quantos são? Divertiu-se imaginando a quantidade de poros que um ser humano adulto teria. Ordem dos milhares ou dos milhões? E se fossem seis bilhões, como os habitantes do planeta? Alguém já contou? A nova risada fez eco e ainda escapou pelo vão da janela que acabara de abrir. Como costumeiramente ela se encontrava um tom, talvez dois ou três, acima do desejável para os padrões habituais de contentamento e não tinha nada de cinzentisse (esse jeito cinza de ser, hoje tão comum), além de ser acusada de proferir clichês, provavelmente também seria tachada de excessiva. Mas ela nem ligaria, caso se desse conta disso. Em vez de se preocupar com o que falariam de seu último dia – ou primeiro, dependendo do ponto de vista – olhou as horas.



Quarta-feira. Nada grandioso a ser feito, mas enquanto repassava mentalmente as pequenas tarefas que propôs a si mesma, todas lhe soaram tão importantes. Sabe aqueles dias que prometem ser epifânicos por nada? O sol bonito lá fora, ela com um excelente humor, o café com leite adoçado no ponto certo, o cabelo que secou jeitoso, nenhuma espinha no rosto... Uma ausência total de expectativas. Ah, delícia. Leveza! Clichê? Hahahahaha. Não falei? Hahahahaha. Decreto que meu último dia será repleto de pequenas epifanias. E vestiu a saia rodada repleta de flores. Eu vejo flores em você, cantava numa afinação muito peculiar, enquanto escovava os dentes. Vejo flores em mim, vejo flores naquele que me é fonte de suspiros, vejo na amiga da alma, vejo no companheiro de filmes e livros, vejo na parceira de vida invisível, vejo – que sensação engraçada – numa outra de mim, que me transcende e cujo reflexo no espelho pude captar em segundos. Ei! Nossa, que susto. Vi duas de mim agora. Essa brincadeira me assustou. Cuspiu a pasta. Olhos arregalados, meio duvidosos. Ela tinha visto uma outra dela que sorria, sem escova na boca, sem pasta no dente. Quem era você? Alma?



Não resistiu. Antes de sair de casa, ligou o toca-CDs. Saia rodada pede dança com pé no chão. Iria usar sandálias, caramba, pés de solas pretas, mas quem tem medo de careta? Capitu, na voz de Ná Ozzetti. Três Letrinhas, Marisa Monte. Esquadros, Adriana Calcanhoto. Plainsong, The Cure. E, por fim, olhou as horas de novo, ai, tenho uma sobrinha de uns dez minutinhos ainda, Heaven Knows I’m Miserable Now, The Smiths. Riu de novo. Engraçado, os céus sabem de tudo! Às vezes, a gente tenta enganar a humanidade inteira com sorrisos amarelos, desculpas esfarrapadas, gestos dissimulados, atitudes muito sociais mas tão impessoais. Mas os céus sabem quão infelizes estamos quando assim agimos. Somos muito cagões de vez em quando. Ou quase sempre. Ora, ora. E a vida tão curta, tão curta, tão curta! Opa, já está na hora.


Tudo se torna tão mais interessante quando você se abre para a vida. Clichê de novo? Ela achou que era um sinal: no trajeto entre a estação de metrô Brigadeiro até a Consolação, contou treze pessoas vestindo alguma coisa na cor laranja – bermuda, blusa, camiseta, saia, gravata. Algumas flores em sua saia rodada eram cor de laranja também. Pois então, catorze pessoas com algo laranja numa quarta-feira? Isso era uma epifania, sem dúvida. Há mais gente feliz no mundo hoje, oba! Como era bom não se sentir sozinha ou solitária em suas divagações. Havia noites, mais que dias, o escuro propiciava esses pensamentos, havia noites, e, em geral, não eram de lua cheia, porque aprendera a ficar contemplativa também graças à lua cheia, noites em que ela se sentia a mulher mais solitária de todo universo. Como a única habitante de Plutão – e seu Plutão sendo destituído da categoria de planeta, então ela ficava completamente descolada no universo, inadequada, perdida, solitária. A mulher mais solitária de toda essa imensidão. Não era pouca coisa, esse sentimento não era pouca coisa. Daí o sorriso largo que ela abriu antes que a porta do vagão se abrisse ao constatar a presença de toda aquela cor laranja na quarta-feira ensolarada. O rapaz de vermelho achou que aquele sorriso era para ele. Sorriu de volta. O senhor distraído e engravatado pegou um rastro de sorriso e igualmente pensou-se o destinatário. Sorriu de volta. Se ela olhasse o reflexo do vidro notaria que mais gente se encantara com o sorriso, inclusive ela mesma. A outra dela, de novo surgida repentinamente no átimo entre o olhar e a abertura da porta. Aquela. E retribuindo o sorriso. Alma?



Fez o que precisava fazer pela manhã. Não vale aqui descrever todos os passos de seu último – ou primeiro – dia. Preencha você, caro leitor, com sua imaginação. Como se fosse você. Uns iriam trabalhar; outros, estudar. Alguns iriam a uma consulta médica, outros a uma entrevista de emprego, a uma aula de cerâmica (privilegiados esses), às compras (se com dinheiro no bolso e em férias), a uma sessão de cinema (sortudos jornalistas), ao banco ou resolver uma burocracia qualquer. Assim, ela fez o que tinha que fazer. A saia rodada e florida chamava a atenção. Ou era o sorriso? Havia algo nela que atraía os olhares. Mesmo quando atravessou a rua ao lado de uma loira alta, cabelos muito sedosos, quadris muito largos, óculos escuros muito grandes, ela miúda ao lado da loira, os homens que vinham no sentido contrário detinham o olhar nela, do sorriso à saia florida, reparavam nos olhos, no jeito de andar, um até falou: bonita e primaveril. Era outono, mas ela ficou igualmente lisonjeada. Parou na lanchonete mais próxima e pediu um suco de laranja. Um brinde!



Almoçou, seguiu com a lista de tarefas, de cá para lá, entra e sai, o sol continuava firme e forte, mais gente vestindo laranja, cruzara com uma senhora que usava uma flor bordô presa no cabelo bem preto, ah, que dia cheio de epifanias. Tudo dando certo, só pessoas bacanas cruzando meu caminho, conhecidas e desconhecidas, um privilégio. E só bons pensamentos. Engraçado, sua mente parecia funcionar mais rapidamente que o habitual e seu coração estava tão mais sensível, captava tudo, sentia tudo. Só bons sentimentos. A vida estava tão doce em seu último ou primeiro dia, já nem mais sabia. Parou na padaria. Ficou indecisa entre os suspiros e o sonho, mas optou por dois beijinhos. Um para cada bochecha, brincou com o moço. E sorriu. Ele ficou prosa. Mas ela não podia conversar: tinha mais umas coisinhas para resolver.


E assim foi até umas cinco horas da tarde, talvez um pouco mais, sabe aquela hora do lusco-fusco, da luz com fúcsia, os prédios espelhados refletiam o cor de rosa e o lilás do céu, ainda havia resquícios luminosos do sol, o dia ainda reluzia sem necessidade de lâmpadas. Resolveu voltar a pé para casa, estava cedo, tinha disposição para muito mais, o ar estava uma delícia de respirar, a saia florida ainda rodava, os pés de sola preta nem doíam, nenhuma careta, as pessoas parecem tão mais bonitas hoje. A beleza está nos olhos de quem vê? Ou de quem é visto? Esse deve ser meu clichê de número... Riu alto. Será que em nosso último dia nosso olhar muda tanto quanto em nosso primeiro dia? Não achou resposta. Passou por uma floricultura, seu olhar foi diretamente ao encontro das gérberas, que estavam com uma aparência tão fresca que ela não resistiu. Comprou cinco, todas cor de rosa. E porque sorria, e porque vestia uma saia rosada e por toda a simpatia e a doçura que exalava, o moço caprichou nas folhagens e naquelas florzinhas miúdas, fofíssimas, que pouco se incomodam em ser eternas coadjuvantes das exuberantes flores-star. Que belo buquê, que belo buquê. Agradeceu saltitante, o rapaz sorria envergonhado e feliz.


Ela era a mulher da saia rodada e florida, do sorriso no rosto, do belo buquê de gérberas cor de rosa nas mãos em pleno lusco-fusco. Impossível passar despercebida. O mendigo sorriu. O homem de gel e óculos sorriu. A menina e a babá sorriram. A multidão que atravessou a avenida e cruzou com ela também sorriu. Um lusco-fusco de sorriso para a moça e para as gérberas. Que, diga-se de passagem, refletiam o céu. Outra epifania.


Quando estava a poucas quadras de sua casa, foi invadida por uma imensa ternura por si mesma, pela vida, por toda a humanidade, pelas gérberas, pelas coisas. Num piscar de olhos, enxergou novamente a outra dela, aquela outra leve e sorridente, que a olhava reconhecendo-a como ser humano, mulher, fêmea, gente. Num piscar de olhos.

Ninguém soube contar exatamente como aconteceu. Os dois motoristas, um deles ensangüentado e cambaleante, afirmavam que estavam certos, que o sinal estava para abrir, que não se encontravam em alta velocidade, um instante de distração, ai, que infortúnio etc. O homem da banca de jornal da esquina disse que a moça era quem estava certa. O farol de pedestre estava aberto para ela, puxa, a moça caminhava tranqüilamente, tinha um buquê de flores na mão, essa moça de saia florida que os paramédicos tentavam, em vão, reanimar. Num piscar de olhos. Mas ela nem ouviu o estrondo, os dois carros se chocando nela, atingida dos dois lados, primeiro pelo Astra pretro, depois pelo Corsa prata. Jazia ali, na faixa de pedestres, a saia rodada estendida, toda manchada de vermelho, o braço direito torcido, o esquerdo parecia deslocado do ombro, o rosto ensangüentado, despenteada. O buquê ficara a alguns centímetros de distância de seu rosto. Apenas uma gérbera saíra ilesa, talvez sem uma ou duas pétalas, mas parecia intacta. As demais, estraçalhadas, também com respingos vermelhos. Havia gente chorando. Uma senhora soluçava e dizia ao policial: como Deus pode permitir que alguém tão jovem morra assim? O policial não tinha respostas. Ele pegou o buquê, tirou a gérbera intacta. Pôs no banco de trás de seu carro de polícia, um ímpeto, e voltou para impedir os curiosos de se aproximarem.

Era seu último dia – e, agora sabia com certeza, também o primeiro – porém, aquelas pessoas todas, os motoristas, os policiais, a senhora que soluçava, os paramédicos, não sabiam disso. Num instante que durou quase uma eternidade (clichê), ela viu momentos de sua existência passarem como se compusessem um filme de François Truffaut. Mas apenas os bons momentos. Quem montara o filme havia sido bem bonzinho, excluindo as derrapadas, as cagadas, os períodos de tristeza e de dor, os desencontros todos. Ficaram as descobertas, os encontros, as conquistas, os instantes de plenitude e satisfação. Sabia que estava partindo para algum lugar. A outra dela, suave e delicadamente, lhe estendia a mão, chamando-a com os olhos, com o sorriso. Então, começou as despedidas – família, amigos e amigas, mocinho dos suspiros, aliás, todos os mocinhos que já a fizeram beneficamente suspirar, conhecidos e as pessoas bacanas que ela não chegou a conhecer, mas que sabia que existiam (clichê). Quanta gente deixou de lhe telefonar ou escrever naquele dia, o amigo desmarcara o almoço, a professora de canto faltara, o agente de viagens ficara de lhe passar a confirmação do vôo, o porteiro nem chegou a lhe entregar o pacote que alguém lhe enviara da Turquia. Mas ela acolheu a todos, ela entendeu que a gente é assim, acha que tem a vida toda pela frente (e tem, clichê), que vai viver para sempre e pode deixar o tempo passar assim, de um modo tão inconseqüente e esvaziado de sentido. Ah, seres humanos...

Que bom que dançara com os pés no chão. Que bom que tomara suco de laranja. Que bom que os beijinhos de que se recordava eram doces. Se fosse escolher uma única memória, como no longa-metragem do Kore-eda (Depois da Vida), uma única memória para levar por toda a eternidade, escolheria a visão de si mesma andando, saltitante em sua saia rodada florida, com um sorriso no rosto e o buquê de gérberas na mão, cruzando com tanta gente sorridente também, mesmo que boa parte desses sorrisos tenha ficado embutida. Ela havia vivido seu último dia como se fosse o primeiro. E seu primeiro dia de uma nova vida como se tivesse sido o último de uma outra vida, uma vida anterior, não menos importante.


De mim para mim mesma. À outra metade da existência que começa.
29/4/07

sábado, 29 de março de 2008

direitos humanos já!

Queria expressar meu apoio às populações do Tibete e da Palestina (territórios ocupados e Gaza) que vêm sofrendo com boicotes e repressões há longo tempo. Repudio o processo de ocupação silenciosa (e muitas vezes disfarçada) de Israel, que continua tomando terras pertencentes aos palestinos dentro e fora de Jerusalém e vem minando gradativamente a economia palestina, tornando-a dependente e frágil. Israel tem o direito de existir, sim (os países árabes que o cercam que calem a boca), e de promover a dignidade entre seus cidadãos -- mas não de perpetrar um novo holocausto, com direito a guetos e tudo o mais.

Repudio com mais vigor a China, aplaudida por baba-ovos e paga-paus de várias espécies (incluindo boa parte da mídia nacional) por seu crescimento econômico...oh!, sua arte inventiva e cheia de frescor...oh! E os pobres coitados, em regime de semiescravidão, no interior rural dessa grande China? O verniz é desenvolvimento econômico, porém o conteúdo está podre. Recomendo "Still Life" ("Em busca da vida"), do Zhang-ke, para os ingênuos. Em relação aos tibetanos, o posicionamento da China é desumano e execrável. Hoje, na BBC, discutiam por que o comitê olímpico deu ao governo chinês a chance e os louros de organizar uma Olimpíada lá. Uma das premissas para a concessão é a garantia incondicional aos direitos humanos. Já se sabia que o conceito "direitos humanos" parece não fazer parte do governo chinês. O membro do comitê, um inglês grisalho, saiu pela tangente e não respondeu nada.

Em 10 de dezembro completam-se 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Diariamente milhões de indivíduos são desrespeitados, em diferentes níveis, em seus direitos mais básicos. Dá para se acreditar num mundo como o nosso?

Não fazemos nada. Ah, fazemos sim: as unhas, chapinhas no cabelo, lipoaspiração, a compra de um novo carro e de um novo celular, gastos extraordinários no cartão de crédito, sexo sem camisinha, pequenas atitudes mesquinhas com nós mesmos... fazemos também, todos os dias ou quase, cocô. Mas, infelizmente, é de outras bostas que falo aqui.

Acho que a vida de cada um, especialmente a dos mais egoístas, deve ser muito, muito, muito interessante e feliz e cheia de sentido e satisfatória e prazerosa e linda. Uma vidona mesmo, para que eles fiquem tão ou totalmente entretidos com ela e dêem de ombros para o restante do universo. Que se danem os palestinos, eu quero acabar com minha celulite. Que se danem os tibetanos, eu quero comprar um Ecosport ou carro que o valha. Que se danem os brasileiros, os outros brasileiros, pois eu quero é plantar uma árvore da fortuna no meu umbigo.

Depois, não me venha pedir atenção.

***
Recomendo urgente leitura de:
http://www.reporterbrasil.org.br/
http://www.amnesty.org/
http://www.un.org/spanish/millenniumgoals/index.html

quinta-feira, 27 de março de 2008

APRENDIZADOS

Um saco inteiro de cimento
Caiu sobre meu espírito
E durante quanto tempo, muito tempo
Me fez estátua
No meio daquela profusão
de...
Que como lava larva lança
havia dentro de mim
E assim
O terremoto britadeira destrói
a casca
a casa máscara
a caixa mácula
Até o perfume ganhar cheiro
novamente

sábado, 22 de março de 2008

Presente de Páscoa - 2


Um movimento que brota da alma e que repercute no mundo ao redor, fazendo coincidir sensibilidade e esperança... ah...

Presente de Páscoa - 1



Obrigada, amiga, por partilhar a descoberta.


Seguir a bem-aventurança: escutar os sussurros d'alma. Afinal, o ego grita, a alma sussurra. Como o nosso mundo infelizmente anda funcionando aos berros, nossos ouvidos se tornam surdos para o mais puro dos movimentos.

Minha alma pede: siga o vento.

quinta-feira, 20 de março de 2008

...... LUTO ......

Eu queria que ele estivesse aqui
Olhando para as begônias,
Junto comigo olhando
As corajosas begônias róseas
Que insistem em botões mesmo
Quando deixam cair suas flores,
Vencidas pelas paixões-desilusões da vida.
O luto das minhas begônias
– Oh, surpresa! –
Tem botões.

Mas ele não está aqui
E por isso me encontro de luto.
Luto contra esse luto,
Que empurro para frente.
Um luto de borbotões.
De bofetões no ego.
Um luto-em-aprendizado
Dos botões.

Não visto preto.
Não me enluto, nem me assusto.
Quem disse que luto precisa ser triste?
E escuro?
Um luto com a companhia das begônias
Pode ser róseo.
Eu visto rosa.

Toco música,
Como doce de côco,
Acendo a luz, todas as luzes,
Afinal não há caixão,
Não há prisão –
Houve, sim, um dia,
Aqui, bem aqui,
Uma emoção.
Que quer passar.
Que precisa passar.
Declaro, com pesar,
Que ele não está aqui, bem aqui.
Que ele jamais estará aqui de novo.
Que ele não se encontra mais em você.
Que ele partiu de você para outra.
Eu quero brotar botões
Porque, sem ele, minhas flores caem...

O azulejo que me espia
É azul, embora
Pareça redundância.
Ele foi embora, ele é azul?
Ele não foi porque nunca veio.
Ele esteve – ele passou.
Ele virou hora?
Ele entrou no tempo?
Virou vento, sentimento?
Grudou nos azulejos e
Se põe agora a me espiar?
Soa, sou redundante:
Sem ele e de luto.
Eu quero brotar botões.

Não sei mais de quais mortes
Tenho medo
Nem se ainda tenho medo das mortes,
Dessas mortes todas
E diárias.
Das mortes dos jornais,
Das mortes dos nossos pais,
Das mortes de nossas partes,
Das mortes de nossas paixões.
Daqueles pedaços da vida que se desprendem
Do desprendimento dos pedaços da vida que ainda estão presos.
Das flores que já se acham ressecadas
E delicadamente se despedem:
Não nos mantenha aprisionadas!

Medo não tenho, então, tenho saudade.
Tenho saudade.
Aquele tipo de vontade
De ser quem fui naquele tempo
Quando.
Enquanto.
Com.
E.
Ah, fazia muito sentido.
Sinto, agora, sentida,
Uma dor lá no fundo,
Dor de quem brota.

(Tive um sonho na noite passada.
Ele passeava do meu lado.
Eram dois caminhos, duas estradas.
Andávamos separados. Mas ele me convidou para ver as
Estrelas de sua janela, no topo da escada.
Não entendi ainda – estou enlutada. Mas entenderei,
Eu sei.)

Botões.
Rego as begônias,
Às vezes coloco o vaso perto da janela,
Em outras dou-lhes sombra.
Aceito os botões, sim, eu os aceito,
Um dia virá outro luto, de novo,
E mais outro, e mais outro.
E outros botões.
E, aí, então,
Farei como os redundantes azulejos azuis:
Vestirei rosa.



(sexta-feira da paixão, 2007)

quarta-feira, 19 de março de 2008

a*bruxa*

(2007, MF)

Sem vozes cadavéricas ou verrugas assustadoras,
Ela chega devagar, pantufas e penhoar,
E se instala bem aqui dentro.

Tudo ensolarado, brilhante e quente,
E no dia seguinte: menos cinqüenta graus
No aconchego com jardim e pomares da alma.
Susto.

O feitiço apaga até as decepções inflamadas:
Num refrigerador sem luz interna,
Em que o ar viciado desdenha qualquer novo oxigênio,
As paredes têm cor gelo e nenhuma fissura.

A vida incomoda
E a existência parece um despropósito de grandes proporções
(embora as dimensões do mim mesma beirem o minúsculo).
Torpor.

Irritantes, os pulsos viram solenes sermões
– milongas perdidas em vazios externos, exteriores, extirpados
[Nada pior que um vazio esvaziado e esquecido]
– sermões que seguram mãos, sermões que pregam as músicas latentes.

Vinte e quatro horas de só noite
E se há um melhor lugar do universo aqui e agora,
Procure um esconderijo embaixo dos lençóis.
Não há girassóis.

Não me reconheço
Mas isso também é tão meu
Se não era, ficou sendo.
Ferida.

A bruxa desaparece com sonhos e memórias e raivas e planos
e... e... e...
Com a própria lembrança dela mesma
Desaparece com tudo
Entope armários, canos, vasos e veias
E judia, inclusive, das meias
Que eu queria usar
Para dormir melhor.

>>> nadez <<<

Não há vagas.
Não há buracos para eu me esconder.
Não, não há.

Quarto escuro fechado trancado sem janelas.
Janelas são perigosas.
Não, não há janelas.

Por baixo da porta há algum sinal de alguma coisa.
Mas não há chave para abrir a porta,
Não essa porta, não aquela chave.
Não, não há.
Não agora.

Estou presa ao não
E ao há
Em cada mão um não
No coração, o há.

Não reconheço
O tempo, o tudo:
Essa vida externa que acontece à revelia.
Cá dentro já não acontece nada.
O tempo tudo parou
E tudo parou o tempo.

Sentimentos, excrementos, movimentos?
Não, não há.

Há dois não.
Há não e não.
Não? Não? Há?
Não, não há.

terça-feira, 18 de março de 2008

dia de minhoca

Via neve, embora estivesse apenas nublado. Via tempestades e alagamentos, embora a chuva teimasse em ser suave. Via caminhos compridos, faltando tanto tanto tanto para serem devidamente cumpridos que. Sempre era assim. Tudo muito comprido cumprido contínuo que. Faltava-lhe energia? Faltava-lhe disposição?


Que. Mas sempre continuava, ia adiante desbravava lava cava lavra crava larva cravo flor, estupor! Dor! Frescor! Os túneis longos túneis sempre terminavam em algo, um atalho, um orvalho, um abismo. Ou luz. Não que sempre tivesse de experimentar também o fim deles; muitas vezes, chegava ao final e pulava para outro caminho. Mas já tinha provado terminá-los, claro, inevitável e irrevogável necessidade. Não era fácil para sua natureza subterrânea e autista, acostumada ao chão e às cavidades de si mesma e voluntária e esporadicamente encerrada em sua vida invisível, encarar a luz, assim, de supetão. Por isso, às vezes ia de atalho, em muitas outras rolava no orvalho, quase sempre deixava-se cair no abismo até sentir-se pronta para a luminosidade. Pronta para a luz. A do mundo, a da vida, a dos outros, a sua mesma.


Que. Não era propriamente preguiça tal e qual, medo como o de todos, falta de confiança em si. Talvez fosse a inexorabilidade do impulso, uma certa entrega à hibernação imperativa, à etapa de esfarelamento de fênix, descenso, para depois surgir.


Então estava num dia desses, terra úmida e porosa, modorrenta e cheirosa.
Deixou-se estar.
Que.
Soube, contudo, que havia sol lá fora, que fazia calor, que a temperatura subira. Ecdise? O esqueleto externo já fôra desmontado, por isso estava tão minhoquenta. Só se essa terra for casulo!
Pressentiu uma grande revolução, portanto.

segunda-feira, 17 de março de 2008

ATESTADO MÉDICO

(2007, MF)



Fulano ajeita os óculos
E diz:
— É grave!


Sicrano ajeita a batina
E reza:
— É grave!


Beltrano ajeita a gravata
E brada:
— É grave!


— O que é que se vai fazer?, exclama a tia.
— Tente outra vez!, tenta a amiga.
— Calminha, calminha, intromete-se alguém.


Deu três horas da tarde. O chão tremeu,
Mas ninguém notou.


Com uma assinatura que mais parecia
Um rabisco,
Ou um indício de que ninguém ali nada entendia,
Estava escrito no pedaço de papel:


“Morreu porque queria.
Sofreu menos do que podia.
– a cera entupiu o ouvido de modo irremediável! –
E, com licença, eu preciso assistir ao Palmeiras X Bahia.”

sábado, 15 de março de 2008

ÁTIMO

(2007, MF)

“Mas de repente tudo já não cabia mais só dentro dele; precisava de um acontecimento externo que justificasse toda aquela largueza de dentro. A coisa externa não acontecia. E, se acontecia, não justificava. Por que não se render ao avanço natural das coisas, sem procurar definições?”A Chave e a Porta, Caio Fernando Abreu






Foi por um átimo.
Caminhava distraidamente. Nem notara a faixa de pedestres, a buzina agressiva do carro apressado, o esbarrão proposital do rapaz engravatado. Seu pensamento era um caos de fragmentos de outros tantos pensamentos. A madrugada de domingo. A garrafa de vinho pela metade. O primeiro encontro. O encanto surgido não sei onde, não sei quando, no meio de tantos cacos de sentimentos. A palavra mágica: venha. Os dez reais emprestados para o táxi da volta. A colcha amontoada do lado da cama, esperando a ida à lavanderia. A camisinha vazia, a camisinha cheia. A camisinha não usada, a sensação do gozo em suas mãos – quente e urgente. A frase que terminava em vírgula. O olhar assustado. Seu próprio riso, envergonhado. O vento morno, o vento frio. A negativa, a confusão. Frases que agora terminavam em ponto final. O beijo de novo, beijo úmido. O toque dela, o arrepio dele.



Ah,
Outra faixa de pedestres. Sem buzinas, sem esbarrões. Uma multidão, mas ela se imaginava sozinha, como se encapsulada. Nada protegida, porém ao menos se encontrava vestida – vestida pela aceitação da ausência dele.
Ah, aquele dia em que descobriram as coincidências todas. Ah, aquela noite em que se deu conta de que o desejava. Sonhou com ele, quase teve um orgasmo. Uma freada pudica brecou suas lembranças quase indecentes. Não podia ir rápido demais, nada acontecera. Nada? Beijo, abraço, sexo...? Nada? O que havia acontecido? Um irresponsabilidade consciente, ele dissera. E para ela? O tiro da roleta russa. Bala no coração. Ele nem se comovera com a metáfora. Tinha a namorada – finalmente a mulher idealizada! –, depois de tantas mudanças queria segurança, era mais visual que sentimental (isso significava que ela era feia?), onde foi parar a estabilidade. Saudade.




Suspirou. Todas as indagações inspiradas se transformaram em lamentos expirados. Sofrimento desse tipo precisa ter data de validade. Sonhou-se criadora, criativa: pois bem, novos personagens, novas paisagens, novos cenários, novos roteiros. Ele era prolixo, mas não falava mais com ela. Da última vez, balbuciara qualquer coisa como “você vai pegar o metrô?”. Ela mal escutara e já respondera que não. Ele estava cinza naquele dia. Sem viço. Não era o mesmo homem, não era possível. Parecia uma lâmpada prestes a queimar e sem nada a dizer. Ploft. No entanto, para os outros, para o mundo, seguia com seu blábláblá.




Ah,
Outro suspiro, outra faixa de pedestre não notada – a calçada parecia uma reta contínua, eterna, e ela, uma mancha colorida recém-saída de um quadro de Miró –, nada contra o blábláblá dele, ela até gostava de ouvi-lo falar às vezes, mas preferia quando ele deixava aflorar o lado nada teórico. Quando ele falava de si, quando ele contava suas histórias, quando ele respondia as perguntas dela. Uma delas ainda pairava no ar: você foi um menino tímido? Ela sabia a resposta. Só que ele se esqueceu de responder. Ou não quis. Há mais de uma semana usava um nick em que afirmava que os olhos de alguém iam ser atendidos. Não eram os dela. Certamente – ela inspirou uma melancolia alheia, que passava ali naquele exato momento, exalada não sabia de onde – não seriam os dela. Expirou, suspirou.




E foi quando olhou para frente e o viu. Ainda estava na mesma rua, já havia caminhado bastante, cruzado tantas travessas. E, alguns passos à frente, ele, surgido de modo inexplicável. Puxa. O coração não acelerou, pelo contrário; contraiu-se. E soltou uma batida tão forte, assim, encolhido, que ela olhou constrangida para o lado. O senhor de boné e as duas moças que acabaram de passar à sua esquerda a olharam, curiosos. O engravatado à direita não ouviu. Nem ele. Piscou – ele ainda estava lá? A calçada, a rua, as pessoas, os faróis, as faixas de pedestre, os carros, as fachadas – tudo se transformou num grande quadro vivo de Pollock. Beat, batida, coração, seus olhos sendo atendidos. Em vez de um sim, veio um não. Muito forte para acreditar. Que seus olhos sejam atendidos?! E ele ali? A pincelada mais forte, mais intensa, mais chamativa daquela grande tela de Pollock? E o que ela, mancha de Miró, fazia ali? Quem estava fora do lugar?




Era o acorde mais alto de uma música pop. Era a pelotinha de sal na salada feita às pressas. O nozinho de lã no cachecol tricotado pela avó. A espinha na testa. Aquele fragmento negro na película há séculos em cartaz. Quem estava fora do lugar, então? Ele na vida dela? Ela na vida dele? Danem-se essas buzinas todas, essa brecada ruidosa. Não vem que não tem. Não me impeçam! Agora não estava mais encapsulada, continuava desprotegida, ficara desnuda, corada, acelerada, sentimental.




Ele é visual, lembra? Ele não a viu.




Foi por um átimo. Motivos misteriosos fizeram com que ele voltasse a cabeça para trás, como se quisesse certificar que estava sendo seguido, como se buscasse algo esquecido para trás, num tempo não muito distante mas não mais presente. Havia manchas entre eles – de Van Gogh, de Monet, de Paul Klee – ah, aqueles passarinhos amarelos do quadrinho do Paul Klee –, de Gustav Klimt. Muitos quadros se cruzando ao mesmo tempo, como se os museus e galerias do mundo tivessem despejado tudo naquele pedacinho de planeta. Mas ela podia ser também uma personagem de Almodóvar, de um dos últimos filmes do Almodóvar, enquanto ele estava definitivamente num filme de Antonioni. Godard, talvez. Ela, no primeiro episódio de Three Times. Ele, no último. Não houve um segundo, foi um átimo. Entre eles, uma multidão de figurantes, de coadjuvantes, de fragmentos e de scripts, de novidades e de medos, de desejos e de blábláblás, de des – vários des.




Ela o perdeu de vista. Ele virou para frente novamente.
O mundo readquiriu suas feições de mundo. A calçada, a rua, as pessoas, as faixas de pedestre, os carros, os faróis, as fachadas.




Por um átimo, por um átimo.



Sentiu uma gota na bochecha. Estava chovendo? Outra gota, mais outra, uma multidão de gotas. Carregava uma nuvem nos olhos, era isso. Putz.
Quando finalmente virou a esquina, tocava uma música: Dance Me To The End Of Love, na voz de Madeleine Peyroux.

sexta-feira, 14 de março de 2008

PESSOALIDADE

(2005, MF)



Não sabia exatamente o que sentia. Só sabia que sentia. E sentia muito, sentia físico. Era uma dor no osso esterno, uma cólica intestinal, outra uterina, depois uma sonolência estranha, um incômodo de cada vez, separadamente, seguindo um pulso inaudível a fim de que ela não se esquecesse: 1-estava viva; 2 - viver doía; 3- ela havia ingerido coisas que ainda não havia digerido e que seguiam circulando em seu organismo, dos ossos à cabeça, passando por todos os órgãos possíveis. Tinha vontade de chorar e vomitar, mas não conseguia levar adiante tal vontade. O que lhe restava fazer, senão viver, viver e respirar, viver e beber água, viver e suportar? Secretamente, sem que sua razão se desse conta, seu coração torcia para que ela não perdesse os sentidos. O que digestão tem a ver com sentidos?



Impossível recapitular tudo o que havia ingerido. Algo atravancava a digestão. Leu no jornal que uma mulher havia morrido de intoxicação alimentar. Maionese infectada. Medo. Mas era maionese, era coisa de comer. Ela, se estivesse realmente com problemas, era por causa da ingestão de vida. Havia ingerido muito viver, agora estava aí, sofrendo e delirando como que intoxicada. Pontada no intestino. Estava viva, excessivamente viva. Que contradição!



O dia de hoje: café da manhã. Encontro fortuito na rua: haviam trabalhado juntos. Nunca, em nenhum momento, qualquer sinal de interesse dele por ela ou vice-versa. Foi puro acaso. E quando ela perguntou sobre o filho dele, ele contou que tinha se separado. Ela perguntou se ele se sentia estraçalhado. Ele disse que não, talvez a ex-mulher sim, mas ele não. Ele perguntou o que ela andava fazendo e afirmou que era visível como ela estava bem. Despediram-se. E ela sentiu um frio na barriga. Ingestão. Uma golfada de sensações puramente físicas: ele era um homem bem bonito. Inteligente. Interessante. Ele era um homem e a conhecia – e era isso que, insensatamente, dava sabor àquele encontro. Ingeriu aquele momento e foi bom. Quis mais por pura gula, mas imediatamente puniu-se pela irresponsabilidade da querência. E por um pudor besta. Trouxa! Alguma sonolência.



Almoço, e o e-mail de uma proximidade impressionante escrito por aquele homem distante. Ingestão maciça dele nos últimos tempos, mas de umas duas semanas para cá cumprindo uma dieta espontânea. Claro que seu organismo reagiu. As linhas deliciosamente talhadas de sempre, com cheiro e doçura e pimenta, mas sem concessão a qualquer gordura. Precisas suas palavras. E sinceras. E, sem falar de nada que exatamente ou diretamente se referisse a ela, disse um monte de coisas. Algumas que, racionalmente, não havia compreendido muito bem, mas que foram imediatamente captadas pelo coração. E sentidas, com sofreguidão e aperto. Uma das dores vinha daí, talvez. “Meu tempo está saturado, entre trabalho, meu filho e minha terapia. Suponho que hoje devo navegar por essas marés em solidão; já se verão os portos próximos ao coração. Essas coisas do chamado amoroso sucedem quando menos se espera, assim que decidi também baixar a guarda e relaxar-me um pouco. Enfim.” Um pouco de choro mais a dor no esterno. No instante em que seus sentidos captaram os sentidos do texto, teve apetite voraz de comer comida. Ansiedade, inquietude. Só agora ele baixou as defesas?



Sensação estranha de refluxo. Mais água. E, quando preparava um chá de erva cidreira, porque boldo não havia ali, ela notou que seu celular havia registrado um par de chamadas. Merenda da tarde. Gostava dele, rapaz simpático e gentil que, há uns meses, lhe tinha despertado um tesão com data de validade. Quase no momento em que o prazo estava prestes a expirar e ele lá, com suas questões e seus relacionamentos fugazes (dizia: “tenho meus rolos”), finalmente o tesão foi consumido. Em termos, mas foi. Depois, veio o tempo, a distância e o desinteresse dela. Mas ele reapareceu há alguns dias, interessado. Ela ingeriu mesmo sem muito ânimo. Talvez não tenha lhe caído bem.



Nem precisava recapitular mais, e mais arrotos vieram. Havia o menino, era um menino-moço, dez anos mais jovem e apaixonado por ela. Apaixonado de carne, osso, suor, pernas e saliva. Ela não queria ingerir aquilo tudo. Não tinha apetite para isso, apesar de gostar de que ele gostasse dela. Sabia que, quando ele deixasse de ser apaixonado, ela sentiria falta. E talvez lamentasse o desejo que não teve. Talvez. Ele escrevia poemas, alimentava o próprio blog com saudades e sentimentalidades. Dialogava com os poemas dela, era seu leitor primeiro. Porém, há vinhos que levam anos para ficarem no ponto – e ela respeitava muito o período de maturação de um sabor.



Havia um outro menino, um menino-moço de outro país. Nada houve entre eles na distância, além de uma amizade suave e divertida, como docinhos de festa. Mas ele escreveu fazia umas semanas. Escreveu de longe, de longe de seu próprio lar, de longe dela, porém numa intimidade boquiaberta. Estava quase nela, não como homem, penetrando-a, mas como alma, repercutindo e sussurrando. E que lindo. Dizia que, por muito tempo, tinha negado a energia feminina, como se não precisasse dela. Mas que, graças a alguns anjos que haviam surgido em sua vida – e ela era um deles –, ele estava reaprendendo a aceitá-la. Lilith e Eva juntavam-se para unir-se a Adão. Dizia sim ao amor. Ela também dizia sim ao amor, fez isso diante do mar como promessa. O menino-moço de outro país repercutiu inteirinho em seu corpo, dos lábios ao útero, como se ela fosse parir uma criança-emoção-novidade de presente para si mesma, para ele, para os demais, para o mundo. Ele era muito moço e estava longe, mas ela teve fome.



Embora frugal, jantar com gosto. Cada migalhinha saboreada. Apetecida de algo mais, checou os e-mails. Do mais querido dos seus ex alguma coisa veio uma mensagem. Uma resposta. Tão parecido com ela, tão amado – mas era amado de um jeito que ela o queria para o mundo e não para ela. Ambos com saudade, uma saudade de irmãos que se sabem homem e mulher. Por ora, irmãos. O organismo parecia mais aliviado. Ele dizia que havia mensagens que só ela sabia escrever. Contava das coisas. Anexava um conto, encontrado no blog de uma garota portuguesa, que ele descobrira por acaso e que, de imediato, lhe fizera recordar-se dela. Ele vivendo quase a mesma coisa que ela. Ele com namorada, mas isso não era nem bom nem ruim. Era. E, por ora, ela não queria mudar essa situação. Queria apenas fazer sua digestão. Calminha, sem pressa. E como aquele café com leite noturno lhe fez bem. Tinha café – a saudade dele -, tinha leite – ele estava namorando -, tinha doçura – a partilha silenciosa que ambos faziam, mesmo em cantos opostos da cidade, da vida invisível.



Pronto, o processo havia começado. E agora era aguardar o rumo de cada descobertazinha de vida em cada quilômetro de seu corpo quilométrico e aparentemente infinito. Precisava digerir, por um monte de razões. As principais: 1 – para aproveitar e reter os nutrientes; 2 – para entender um pouco as coisas que se passavam antes de deixá-las passar; 3 – para desocupar espaço e caber mais vida; 4 – para se sentir mais leve e seguir adiante. Digeria aos pouquinhos, como se fosse um conta-gotas. Às vezes tinha sede, mas já se sentia saciada por hoje. Sabia que era só por hoje. Amanhã seriam outros apetites, mas talvez ainda alguns dos mesmos arrotos. Impossível mudar a natureza das coisas, são como são. O osso esterno não doía mais. A sonolência deu lugar a uma sonhessência.



Sentiu-se levemente mareada, muito mais pelo balanço das ondas internas do que pela vida que já se desdobrava dentro dela. Chegava uma onda e lhe dizia “olá”. Chegava outra e lhe pedia para entrar. Soltou seus gazes todos – tinha tantos pudores, tantos receios, tantas autopunições – e, pasme, se pôs a levitar. Sem perder os sentidos, claro, sem perder o sentido de tudo aquilo que estava provando.



quarta-feira, 12 de março de 2008

suspiros verdes

(2003, MF)



A menina esticou as pernas de modo que seus pés pudessem tocar a água clara da piscina. Águas paradas. Ela mesma parada. Sentada no degrau do lado mais fundo. Mesmo assim, ela via o contorno preciso dos azulejos lá embaixo. Ahhhhh. Deve ter suspirado pela décima vez, desde que se acomodou ali, há horas. Lembrava-se do abraço de ontem, um meio abraço, sem olhos nos olhos, sem sentimento, concluído rapidamente com um beijo insosso e desprovido de significados na bochecha esquerda. Ahhhhh. E ela já havia abraçado aquele homem outras vezes e já tinha sido tão bem abraçada por ele que a ausência de abraço naquele meio-abraço lhe doía mais que o pequenino corte no indicador, datado de alguns dias. Estilete. Passara horas montando um caderninho com versos, frases pinçadas de autores queridos e outras epifanias escritas. Seria para ele se não fosse o meio-abraço. Será para ele se. Ahhhhh. Chega de vida invisível, dessa existência paralela, supra-real. Por que se deixava ficar tanto tempo nela? Por que inventara de fazer o tal caderninho? E por que o destinatário seria ele?

Tirou os pés da piscina, quase murchos. Suspiros verdes. Ela, menina esverdeada, saia verde de que mais gostava, olhos castanhos esverdeados. Ele, homem de vários tons, camisa como qualquer outra camisa, olhos castanhos esverdeados. O dobro da idade dela – ou mais. As mesmas palavras, aprendidas com a experiência e a vida, é claro, mas lapidadas gentilmente com a leitura contínua e o estudo de Clarice, Guimarães, Pessoa, Drummond, Bandeira, Graciliano, Caio, brasileiros e mais brasileiros. Ele, é lógico, com um arsenal de palavras – e de fonemas, de tonemas – bem maior que o dela. Mas ela compensava com a doçura e com o ardor com que escolhia as palavras. E com o jeito de balançar os pés quando se sentava na mureta. E de inclinar a cabeça, assim, para o lado e sorrir sem mostrar os dentes. Às vezes, ficava vermelha. Nos outros momentos, era a menina esverdeada de sempre, leve, límpida e inteira.

Que rara a comunicação entre olhos que não são nem totalmente castanhos nem totalmente esverdeados! Um diálogo entrecortado, mas suave e ondulante. Do caramelo ao verde, do verde ao caramelo, algo se perde quando as retinas se alinham, mas é uma fala que lembra o mar. O mar de águas agitadas. Ela preferia o mar, sempre. O mar lhe fazia sentir viva, humana – a mais humanas de todas as pessoas. O mar estava tanto na vida invisível quanto na real. Tinha cor variável, como a gente, era esmeralda, turquesa, quase negro, apenas docemente verde... Mas hoje precisava da piscina. Da calma. Da imobilidade. Do choro, talvez.

Um dia, ela se aproximou dele, como já fizera outras vezes, prometendo a si mesma não gaguejar novamente. Encheu-se confiança – tinha uma flor de crochê caramelo nos cabelos, pequenina e notável – e comentou como havia gostado do que ele falara sobre A Hora da Estrela. Ele, olhando nos olhos dela (mas tendo reparado antes na florzinha de crochê), disse: “Sim.” E sorriu. Silêncio. Ela sentiu que, se falasse algo mais, gaguejaria. Não queria; na vida invisível, ela teria comentado com desenvoltura trechos inteiros do livro e ele ficaria surpreso com sua perspicácia, com sua argúcia. Mas não foi isso o que ocorreu. Sim?

Ela sorriu, acenou-lhe – ele continuava a sorrir e a olhar-lhe os olhos – e foi se afastando, de mansinho, levando um tempão para dar as costas. Caminhou em direção à saída mais próxima, precisava pegar o ônibus logo, encostar a cabeça na janelinha, ver o mundo agitado e abafado e esquecer aquele constrangimento todo. Transpirava, suspirava. Estavam bem verdes os suspiros. Sim? De súbito, veio à mente a primeira frase do livro da Clarice, assim mesmo, sem aspas, sem saber se a sintaxe estava correta: tudo no mundo começou com um sim. Ops. Ele disse...? Ele disse...? Ahhhhh. Olhou para trás. Ele conversava com outras pessoas. Mas notou-a lá, afastada, boca semi-aberta, florzinha de crochê no cabelo. Sim? Tudo começou com um sim? Então... começou?

Pois é, ela voltou a colocar os pés na piscina, agitando a água. Começou! Foi naquele dia em que tudo começou. E começou com um sim! Foi uma pequena epifania, daquelas descritas por Caio Fernando Abreu. Pequena epifania só acontece quando o outro também acha que se deparou com uma pequena epifania? Franziu a testa, quase fechou os olhos castanhos esverdeados. Bem, ambos disseram sim. Então, então. Pequena epifania, com rosto, corpo e forma. E nome. E abraços. Ah, os abraços. Um abraço e meio, às vezes um abraço duplo de tão grande, de tão intenso, de tão humano, de tão mágico.

Cheirinho de roupa recém-tirada da gaveta. A pele e todos os seus sensores mágicos, condutores de sensações e reações. O toque do cabelo. O sorriso e os olhos. Quanta troca, meu Deus, nesses vários abraços. Um universo de divagações, de sonhos, de descobertas. Ela se sentia tomada pela mão e levada, de olhos fechados e sentidos apurados, para horizontes de paisagens selvagens e sedutoras. Para um sem-fim de desejos. Inomináveis desejos.
E foi então que houve um não, ela não sabe ao certo onde e quando, mas houve. Os olhos passaram a ficar furtivos, o abraço começou a perder tônus, até chegarem aqueles beijinhos insossos e bobocas na bochecha. Daí, nem era bem um abraço, era mais uma obrigação de promover uma imitação de toque apenas para ela não desistir. E ela não desistia.

Mas, assim como o narrador de Pequenas Epifanias, ela também se lembrava do conto Tentação, de Clarice, e do encontro da menina ruiva com o cão basset. Quando estava sozinha no ônibus e o dia amanhecia nublado, ela chorava, pedindo a Deus que viessem sins e mais sins junto com a chuva. Às vezes, pensava tão forte, tão forte, que naqueles dias o abraço quase voltava a ser o que era antes. Os olhos se buscavam, os dele denotando algum cansaço e tristeza, ou seria melancolia?, mas jamais desdém. Ela sempre com os olhos atentos e disponíveis, em alguns momentos muito exigentes também. Mas daí o não reaparecia. Por quê?

Ela não sabia se ele havia mudado, ou se ambos estavam diferentes. Os encontros começavam a escassear. Mas ela tinha saudade. Lia Clarice, Guimarães, Pessoa, Drummond, Bandeira, Graciliano, Caio, brasileiros e mais brasileiros, buscando neles as palavras dele. Buscando neles a presença dele. Comprou uma saia verde para combinar com os olhos de ambos. Pôs de novo a florzinha de crochê no cabelo. Passou a andar com um verso de Drummond na bolsa: “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação”. Queria aprender a mergulhar na realidade, abandonando aquela existência invisível de vez. E então, por acaso, num fim de semana à tarde, encontrou com ele, ao sair do cinema. Tomou um susto. Ele também. Estava acompanhado, ela idem. Ele sorriu, esverdeado e distante. Ela sorriu, irritada e esverdeada. Os olhos mal conversaram.

Comprou também um sapato de cetim verde. Quem sabe, enchendo a vida de verde concreto, a vida real se tornaria finalmente esverdeada. E aí tudo aconteceria. E não seriam apenas seus olhos, ou os dele. Sim! O tempo foi passando, outros interesses, outras pessoas, novas leituras, algumas viagens à praia, um ou dois dias na piscina, a existência se encarregara de carregá-la, sem que ela se esforçasse muito. Saudade das epifanias. Saudade dele. Saudade esverdeada.

E, então, veio aquele filme. O ator idoso e maduro encantado com sua Vênus pós-adolescente, o desejo carnal brotando indecente nele. Mexendo com ela. Os carinhos impossíveis. Os pecados íntimos. Mais estranho que a ficção. Ahhhhh. Em que labirinto se metia! Passou o dia com desejo de brigadeiro e de imprevisibilidades. Nos momentos de aflição, buscava Álvaro de Campos. Sentir tudo de todas as maneiras, ter todas as opiniões, ser sincero contradizendo-se a cada minuto, desagradar a si próprio pela liberalidade de espírito, e amar as coisas como Deus. A Passagem das Horas. Eu o amo. Eu o amo!

Explodiu em lágrimas. Piscina, piscina, por favor. Águas paradas. Socorro, vou me afogar. Foi quando teve a idéia do caderninho. Ele precisa saber o que sinto. Precisa, precisa, precisa. Comprou papel especial, separou cuidadosamente versos e frases. Cortou o dedo com o estilete, mas nem doeu. E preparou-se para o encontro.

Ela estava de saia verde. Florzinha de crochê. Sapato de cetim verde. A cor da blusa não importa, mas combinava maravilhosamente bem com tudo – especialmente com os olhos, castanhos esverdeados. Voz de menina? Que nada. Estou agora com voz de mulher. Se enrubescia? Que nada, mudei tanto, cresci, já nem fico tão vermelha. Me falam as coisas e eu paro de pensar no monte de significados possíveis e nem me incomodo. Ok. Ela o esperou pacientemente. Ele a notou, desta vez notou-a antes de notar a florzinha de crochê. Não sabemos se ela percebeu, mas ele suspirou logo que se aproximou. Eles se abraçaram. Foi aquele abraço bobo, um abracico de nada, um meio abraço, um não-abraço. Ela ainda fez um teste: ficou olhando para ele depois. Ele não estava olhando para ela. Estava olhando para o lado. Foi muito triste. Um rompimento. Momentos felizes que pertencem ao passado, não adianta insistir e trazê-los de volta iguaizinhos. Ela já era outra, ele também, então.

Ahhhhh. O último suspiro, antes de ela sair da piscina, enrolar-se na toalha e buscar uma ducha, não foi verde. Entardecia, talvez ela nem tenha percebido. O último suspiro foi cor de caramelo. Ou castanho, não deu muito para identificar. O adesivo curativo, que boiava na água e ela nem se deu conta, estava da mesma cor. No doce aprendizado da passagem das horas, a gente constata que tudo, no fundo, é meio camaleão. Na vida real e na invisível também, inevitável. E que, se observarmos a natureza, depois das folhas ficarem verdes, elas se tornam castanhas. Ou cor de caramelo. E aí é hora de dizer adeus.

OS MUNDOS DE MERYEM

(2007, MF)



Meryem caminhava apressada na rua. Não tinha exatamente uma hora para chegar, um lugar que alcançar, um compromisso, uma iminente vontade de ir ao banheiro, não sentia medo, desejo de treinar para a próxima maratona ou disposição de sobra. Meryem simplesmente e tão-somente caminhava apressada. Apressada e curvada para frente a fim de esconder o calombo que se formara entre os seios. Calombo imenso, maior que a dupla mamária, protuberância imponente. Diagnóstico: excesso de sentimentalidades, entupimento dos canais de escoamento. Sintomas: dor, uma certa melancolia, quietude, solitude, saudade. Há como diminuir o inchaço, doutor? Com muita paciência e jeito, você precisará desfazer os nós, diminuir suavemente a intensidade dos sentimentos, respirar mais profundo, olhar mais para fora, alongar-se. E, claro, desfazer-se de muita coisa já inútil. E quanto tempo isso leva? O médico deu de ombros. Então, Meryem andava apressada, cabisbaixa e já um tanto esgotada, pois suas sentimentalidades lhe sugavam energia, ocupavam espaço em seu ser e quase ganhavam vida própria, tornando-se novos mundinhos.


O dia estava denso e grande, embora sem sabor, como fruta manipulada e amadurecida à força. Cinzento e gosmento, como catarro. As pessoas poluídas pelas coisas de sempre – modismos, superficialidades, banalidades, fascínio pelo dinheiro, grosserias e cagaços dos mais diversos – nem notavam Meryem. Tampouco lhe atraíam a atenção, ela estava completamente absorta na tentativa de, ao menos, compreender a razão daquele entupimento repentino. Aparentemente, vinha se permitindo calibrar todos os vasos internos para que o fluxo se mantivesse contínuo e fiel. Externar veementemente desejos e fantasias, se expor à exaustão, ir ao âmago do âmago de tudo, manter a razão e o ego de castigo, quase se estourar em sangue de tão intensa e potente, agarrar as pessoas queridas mesmo ultrapassando alguns limites. Pois não estava sendo suficiente. Ou não era isso que funcionava. Ou exagerara. Ou...


Câmera bem lenta.
O barulho foi imenso. Mas soou como música. Os cabelos ganharam o céu apagado, como se fossem raios minúsculos. As mãos voaram em direções opostas, acariciando rostos diversos e dispersos, acompanhando contornos de peitos masculinos e revolvendo cabelos. Um dos pés foi parar no Oriente Médio, outro em Cuba. A boca beijou lábios, bochechas e broas de fubá.
Seus cílios fizeram cócegas num rapaz turco. Uma das nádegas amorteceu a queda de um amigo a quilômetros de distância. O suspiro entalado estourou lá no México. A palavra quase dita reverberou na moça que tinha mania de explicação. E seus dentes morderam duas maçãs impossíveis na Aclimação, uma por tendência, a outra por disponibilidade.
O restante tornou-se farelo, poeira brilhante, quase imperceptível – um mendigo e um hippie vendedor pulseiras de corda foram os únicos que notaram algo, mas como ninguém os nota não puderam compartilhar a surpresa.
Meryem explodiu.



DAS ÚLTIMAS GOTAS
O mundo primeiro tinha homens impossíveis. Só homens impossíveis. Eles eram de todos os tipos, tamanhos, formatos e genitálias. Eles tinham todos os tipos de tônus, de tonalidade e de tons de voz. Estavam em seu ir-e-vir cotidiano, alguns mais pesados por conta de toneladas de medos, outros um tanto apagados em razão de mágoas diversas, uns extremamente arrogantes apoiando-se em suas qualidades e escondendo sua insegurança espinhosa, vários deles encarcerados em suas próprias mazelas. Pairava a névoa. Meryem passeava por eles com olhar aguçado, interessado e condescendente. Maldito olhar condescendente. Meryem olhava mais que devia, conseguia captar sinais inconscientes e transparentes, enxergava fagulhas de alma, encantava-se. Meryem havia desaprendido a paciência e o comedimento. Achava-se capaz de partilhar ininterruptamente, julgava-se dona de um estoque interminável de doçuras, dimensionava mal sua compreensão dos complexos alheios. Assim, apaixonou por muitos, senão todos, um por um. Meryem provocou o caos no mundo dos homens impossíveis. Queria ir até as últimas conseqüências: atingir a alma de cada um, perscrutar-lhes os pulsares, arrancar-lhes as máscaras e as cuecas. Foi expulsa, duramente expulsa, grosseiramente expulsa.
Causou um tsunami de repulsa. Rejeição.



DOS ABISMOS E DOS DESERTOS
O mundo segundo era imenso e embriagante. Impossível permanecer nele – impermanente, transformava o tempo em vento e mimetizava os seres todos. Quase impossível sair dele – se o limite fosse ultrapassado, o retorno estaria fadado ao fracasso. Meryem amava aquele estado. Perdia-se constantemente, quase esquecendo de si mesma. Era um mundo de desertos, muitos desertos, de todos os tipos e com todas as surpresas possíveis. Cores inesperadas, caminhos improváveis, tempestades de sentidos, furacões de sonhos e fomes. E havia abismos, nos quais Meryem lançava-se inconseqüente e feminina. Abismos sem fundo e sem frio. Nesse mundo, ela experimentava sede e dor. Vivenciava tais sensações por livre e espontânea vontade, enxergava Deus, falava com Deus, tocava a lua, namorava o sol, era tudo e era nada, não tinha idade nem altura. Era, tão-somente era. Desfazia-se por inteiro para refazer-se mais tarde, com novo frescor. Porém, Meryem deixou-se ficar além da conta e, em vez de vigor, começou a provar sofrimento. Saiu correndo. Esqueceu de deixar a porta semi-aberta. Não conseguia voltar. Angústia.



DAS CORRENTEZAS
No mundo terceiro não havia nada além de rios e mares, todos caudalosos e envolventes, velozes e audaciosos. A temperatura variava, limites no gelado e no fervente. A paleta era impressionante: do quase transparente esverdeado ao preto petróleo pretume. Meryem tinha seu bote e navegava e mergulhava e usava seu snorkel e sonhava escondido em ter toda aquela água aguaceira languidez correnteza dentro de si. Gostava de nadar e de boiar. Congelava, fervia, refrescava-se, enchia-se. Tudo era sempre muito, muito, muito forte. Imperativos. Com alguma dosa de ilusão, Meryem começou a nomear os rios e os mares a fim de aprender a lidar com eles. Como se pudesse domesticá-los. Como se pudesse compreendê-los. Como se pudesse prever qualquer coisa. Tesão. Empolgação. Despeito. Raiva. Carinho. Paixão. Vergonha. Irresponsável, largava-se no fluxo. Um dia, deixou-se embebedar. E embebedava, embebedava, e ia afundando, afundando, e Meryem começou a se afogar. Inconsciência. Quando acordou, estava numa praia suja e feia, lá do outro lado. Meryem enferrujara. A torneira gotejava, aflita e impaciente. Precisava livrar-se da verminose, reaprender a nadar, construir novo bote. Tristeza, fraqueza.



DA SELVAGERIA
Terra sem dono esse mundo quarto, que Meryem transformava em seu quarto e a ele encarregava os cuidados sobre uma parte sua, um quarto de si. Nele era fera, era fêmea, era filhote, era líder, era grupo, ganhava montanhas e árvores, dormia na grama, lambuzava-se, largava-se indomada e tempestuosa, armando tempestades e dançando sob a chuva, pés no chão, lama até os joelhos, sem qualquer pudor ou receio, que se danem todas as convenções, quero o infinito e a finitude, a fênix e a fada, a fábula e o feito. Meryem não sufocava sua agressividade, apesar de muitas vezes manter as rédeas soltas e provocar ferimentos – em si mesma e nos outros. Meryem tampouco mantinha seus instintos enjaulados; quando virava serpente, mordia; quando virava águia, voava; quando virava leoa, amava loucamente. Ela se entregava de tal forma que muitas vezes não se reconhecia. Amanhecia muito mais jovem, anoitecia muito mais velha, tinha um e cem anos ao mesmo tempo e no mesmo instante. Ocupava dois corpos no mesmo espaço. Tinha mais de quatro dimensões. Confundia a cronologia. Incendiária, quase pôs fogo na floresta involuntariamente. A patrulha dos bons modos, dos bons sensos e dos bons incensos logo farejou perigo: invadiram o terreno sagrado de Meryem e prenderam-na, levando-a para fora daquele mundo. Ameaçaram-na com um exílio eterno caso se rebelasse. Castração.



Então,
Por causa do calombo
Hecatombe novelo sentimentalidades
Excesso estrondo
Explosão



Os mundos de Meryem passaram por dilúvio, apocalipses, juízos finais, the end, prisão de segurança máxima, entrevistas maçantes com o RH, formatação da máquina, falência, síndrome do pânico, envelhecimento precoce, desgaste do motor, ditadura. Óbito.



Mas na hora do briluz, quase às quatro da tarde, de um dia tão importante quanto qualquer santo dia, Meryem renasceu outra. Trazia uma memória muito sutil de sua vida prévia, carregava sementes de mundos nos ovários, via-se cheia de comportamentos e compartimentos vazios. Resolveu sonhar. Sonhar e ser, ser e sorrir, sorrir e dormir. Um dia após o outro, nada como um dia após o outro.

segunda-feira, 10 de março de 2008

ABRAÇO


O mundo dá mil voltas
Em torno de mim
E coisas novas surgem
Diante dos meus olhos espantados.

Descubro novas nuvens no céu
E a vida parece tão curta
Para tanto sentimento.

Encontro pessoas deslumbradas
Com os novos vendavais
E árvores corajosas
Já não exibem mais imponência.

Agarro fortes chuvas
Que me fazem bem
E quase deixo escapar o sorriso
Das tristes cidades.

Penso que acho
Mas não tenho nem idéia
E o tempo pega carona
Em dias intermináveis.

Dou mil voltas
Em torno do mundo
E ele se torna muito pequeno
Para meus longos braços.

(da década de 20)

domingo, 9 de março de 2008

Encontro e desencontro (ou A bela e a fera)

ELA:
O espaço vazio anda cheio de sentido. Porque, se você consultar o dicionário vívido e vivido de sinônimos, vazio pode ser nada, vazio pode ser tudo, pode nem ser, pode ser sempre. O ar brinca de esconde-esconde, os suspiros flutuam soltos e sem rédeas, e os cômodos podem receber novidades. Possibilidades. Oportunidades. A dama vermelha de vestido justo e curvilíneo passeia à vontade: libido, chama-se a chama. A alma espalha-se contente: quer fazer festa com a nova descoberta. O espaço vazio anda cheio, cheio, cheio. Porque as tralhas foram ao lixo, as caixas se acomodaram no concreto da realidade, as boas-lembranças-devidamente-armazenadas ganharam gavetas, liberdade, ganharam o tempo: letras, telas, seus olhos, sua imaginação. Então, instalou-se a imensidão. E os cheiros, e os pulsares, e os sins sussurrados lá também estão.


A PERSPECTIVA:
Nas histórias infantis o número três é mágico.
São três os pedidos dados pela fada madrinha.
Três as fadas madrinhas.
Três as baladas do sino.
Mas três é privilégio também das mulheres. Antes de tudo, das mulheres.
Três foram os encontros, portanto – o primeiro à toa, o segundo simpático, o terceiro revelador.
Mas no quarto tudo virou abóbora. O limite ultrapassou seus próprios limites. Bizarrice, pastiche, melodrama, minhocaçu.
O número quatro é traiçoeiro, embora par de pares. Pseudônimo de parada.


ELE:
Ausência como premissa primeira de expressão. Afirma criação, mas você constata fuga. Ausente de si mesmo, põe-se fora, vai-se embora de seu é, preenche o vazio de mais vazio ainda: pó, muito pó, caixas e mais caixas, tralhas e novas tralhas, negações e escuridão e máscaras. Atrás da barricada, esconde-se insone, obsessivo e paranóico. Uma arma, um cadeado e um desvio de rota. Diz a si mesmo: só assim desentorto meu coração semimorto. Não há desejos ou damas curvilíneas: há blocos de pedras com formas de homens – ou seres de falo, com rostos deformados – para a afirmação de um poder sobre o descontrole descontínuo e cruel. O corpo, confuso, confunde a ele e eles e elas. Ignorando a própria luz, mergulha nos buracos cavados pelas minhocas. Desidratado de fluidos, cheio da ausência de sins, talvez anseie os sons. Disfarça: a rima é fria e corrosiva. Pior: taxativa.


ENLACE:
Monólogo dela: Você precisa, quem sabe, de uma pequena epifania à la Caio Fernando de Abreu para juntar esses pedacinhos desconexos, seus fragmentos pontiagudos, num poema que faça sentido. Um poema que seja você e no qual você viva.

(ele não escuta)



TENDÊNCIAS OBSCURAS:
A direção da estrada não é a mesma da placa, segundo a própria placa.

(ela não percebe e segue no caminho errado: “Eu quero o risco, nem que seja a morte”, ainda inspirada em Caio Fernando Abreu)


CARTAZ:
***Danger. Get to explode.***

(ele ignora, afinal só entende italiano, guarani e grego, e acende o cigarro, de cuja fumaça não gosta)


DESENLACE:
Monólogo dele: não, não e não!
Fora daqui!
Não se aproxime!


ELES:
“A vida só é possível reinventada.” (Cecília Meirelles)
Ele: um sapo.
Ela: um avião.
Passarinho, passarão.

Depois do dilúvio, refaz-se o mundo.


"Imbarueri, na língua do índio, é o lugar onde o amor bebe água, onde a felicidade amarra o sapato. Imbarueri é do lado do lugar comum."


Hoje é aqui, amanhã será ali?


dói sem sofrimento dói sem entendimento dói porque os sentidos não querem abrir mão do que sentiram além além além da dor dos dois

quarta-feira, 5 de março de 2008

Janela

Ambos olhavam para o lá fora.
O céu de um azul poluído, mas brilhante. E nuvens. Havia vários chumaços delas, numa ciranda delicada e efêmera.
Você já tinha reparado em como as nuvens são desapegadas? Ou despudoradas? Olhe aquilo: com que facilidade desgrudam-se e juntam-se novamente em diferentes combinações, assumindo outras formas, desfazendo-se das antigas e ganhando corpo... Parece obviedade, mas eu nunca havia visto algo assim. Talvez eu nunca tenha me dado conta disso. Aquela pequenininha sumiu! Como sumir assim? Sumir... sumir e...? Virar outra coisa? Virar nada, virar tudo? Acho que eu não sabia disso. Nunca soube disso. Tenho olhado apenas para o chão, para o concreto das coisas, para a sujeira das ruas, os buracos na calçada, as faixas de pedestres. Não enxergo o céu, o acima. As nuvens têm tanto a ensinar, não têm? Ou, quem sabe, sou eu quem tenha muito o que aprender com elas. Bailar desse jeito... Me sinto pesado às vezes. Me enxergo meio sofrido.
Estava estupefato. Um tanto revoltado, mas surpreso e grato. Grato pelo momento que finalmente veio.
O outro riu. Riu e suspirou.
Seu suspiro formou uma nuvem, amigo. Estou ainda tentando entender a fluidez disso tudo. Não há nuvens no chão. Certo, certo, outra obviedade. Mas eu não entendia. Não entendia porque não sabia, ou nunca soube porque nunca entendi?
Pausa.
Às vezes, essa diferença sutil entre pretérito perfeito e pretérito imperfeito me comove. Sim, sim, não me olhe desse jeito. A palavra é comover mesmo. Entre ia e o ou. Porque é isso: a terceira pessoa fica sempre pairando entre o ia e o ou. Tem o ava também, mas é uma falsa terceira via. Céu é céu, chão é chão. Ao céu o que é do céu, ao chão o que é do chão.
Suspirou ele também.
Não concordo. Ou não quero admitir essa sina. Ou...
Pretérito perfeito?
Quê?
Brincadeira.
Por quê? Não quero ficar fadado ao chão.
Eu gosto do silêncio.
Também não sei se quero ser nuvem, totalmente nuvem... Já pensou me desfazer de vez em quando? Ser e não ser? Ter de me recriar continuamente, espalhando-me e juntando-me, sempre em movimento? Bem, nós também estamos sempre em movimento. Estou meio cansado desse peso todo que carregamos, estou, na verdade, cansado desse trabalho compulsório. Mas... Mas eu adoro as férias, quando vamos ao mar. Antes: a areia. Adoro a sensação da areia, porque depois dela vem o mar. Eu adoro o mar. Se eu fosse nuvem, não teria a oportunidade do mar.
Hoje não vi nenhum pássaro, só dois aviões. Isso é “cidade”? Em vez de pássaros, aviões?
O quê?
Imagine você, no mar, sem ver peixes, apenas navios ou botes ou balsas.
Você usa muito ou, ou, ou... O ou é a perfeição das coisas, porque nada é definitivo a ponto de você dizer: ia. E ir mesmo.
Um olhou para o outro.
A chance de estarmos sempre juntos é muito grande.
Eu sei, é que me bateu uma saudade agora. Uma saudade antecipada de tudo o que partilhamos por tanto tempo. Menos do chão que pisamos, mais de nossas conquistas, de nossos aprendizados.
O que estava à direita sorriu. O da esquerda continuava falante e ansioso.
Partilhamos o mar também. E as areias todas. E agora estamos partilhando o céu.
Sim, sim. De vez em quando, calhava de você pegar uma meia mais apertada ou eu uma furada...
O pretérito perfeito de novo. A perfeição está nessa amplitude de possibilidades. Mas somos todos imperfeitos. Estamos indo sempre. As nuvens, os pássaros, os aviões, a ondas do mar, nós mesmos.
Houve um soluço? (Soluça-se ainda?)
Ficar não significa perfeição.
Não.
Então, nossa teoria está furada.
Então, agora entendo aquela frase do Shakespeare.
As frases e as teorias só são entendidas quando vividas. Os sentimentos também.
Talvez até os pensamentos.
Tudo. Entre o chão e o céu...
Você está meio arroxeado, o que foi?
O sapato, acho. Ou uma batida.
Perfeito....
Risos.
Precisamos de um trato, não é? Andamos tão preocupados nesses dias todos que mal demos atenção a nós mesmos.
Isso acontece com freqüência. Mas você é bonito com essa cascudice toda.
Risos.
Amo você.
Também amo você.
Por que a gente olha tão pouco as nuvens? Desculpe-me por voltar ao assunto, mas eu não me conformo. Não quero estar fadado ao chão. Quero ter a oportunidade de escolher. Ou. Não “ia ao céu. Ava ao chão” – e ponto. Isso não.
Tem azul demais no mundo, não é?
...
Você está chorando?
Eu me emociono com facilidade, você sabe. Naquele dia em que toquei aquela perna, perna peluda... Causamos comoção.
Nós tocamos. E foi bonito. Houve outras, haverá mais, se Deus quiser. E se ela quiser. E eles quiserem. Bem, não tenho certeza. É muita gente para querer antes de que tudo aconteça... Espero tocar outras pernas peludas. Gosto da sensação.
Ha-ha... Bateu a nostalgia, é, amigo? É engraçado ver tudo de outra perspectiva, não é? Esse espaço agora vazio, antes estava cheio. Víamos desde baixo, agora vemos desde cima. Nos sujávamos, nos deliciávamos.
Isso é imperfeito e belo. Sua teoria tem furos. Nossa teoria. Também somos imperfeitos.
Voltando a esse tema, a primeira pessoa do plural é a mais simpática. Porque mescla presente e passado. E, para virar futuro, recorre ao “re”.
Adorei isso.
Nós nos amamos ontem. Nós amamos hoje. E nos ama-re-mos amanhã.
“Re”, então, é uma das coisas mais lindas que existem.
“Re” é a possibilidade de uma vez mais, de outra, de sempre.
De amanhã.
De junto. De novo.
O lá fora tão intenso, tão presente, emoldurado de luz.
O da esquerda olhou à volta.
Partida.
Chegada.
Fim.
Começo.
Saída.
Entrada.
Despedida.
Saudação.
Separação.
Encontro.
Reencontro! Reencontro!
Riram os dois.
Eu.
Você.
O lá fora, as nuvens, o céu poluído mas bonito.


MF baixou as pernas delicadamente, procurando levantar-se desenrolando a coluna. Eles, o da esquerda e o da direita, encaixaram-se em suas respectivas havaianas de cor verde-água e seguiram para mais chão, tendo, porém, provado o céu.

Quando os pés provam o céu, já tendo experimentado o mar, é difícil segurá-los no chão. Por isso, há gente que voa – esta é minha teoria.