domingo, 30 de março de 2008

Ninguém soube contar exatamente como aconteceu. Os dois motoristas, um deles ensangüentado e cambaleante, afirmavam que estavam certos, que o sinal estava para abrir, que não se encontravam em alta velocidade, um instante de distração, ai, que infortúnio etc. O homem da banca de jornal da esquina disse que a moça era quem estava certa. O farol de pedestre estava aberto para ela, puxa, a moça caminhava tranqüilamente, tinha um buquê de flores na mão, essa moça de saia florida que os paramédicos tentavam, em vão, reanimar. Num piscar de olhos. Mas ela nem ouviu o estrondo, os dois carros se chocando nela, atingida dos dois lados, primeiro pelo Astra pretro, depois pelo Corsa prata. Jazia ali, na faixa de pedestres, a saia rodada estendida, toda manchada de vermelho, o braço direito torcido, o esquerdo parecia deslocado do ombro, o rosto ensangüentado, despenteada. O buquê ficara a alguns centímetros de distância de seu rosto. Apenas uma gérbera saíra ilesa, talvez sem uma ou duas pétalas, mas parecia intacta. As demais, estraçalhadas, também com respingos vermelhos. Havia gente chorando. Uma senhora soluçava e dizia ao policial: como Deus pode permitir que alguém tão jovem morra assim? O policial não tinha respostas. Ele pegou o buquê, tirou a gérbera intacta. Pôs no banco de trás de seu carro de polícia, um ímpeto, e voltou para impedir os curiosos de se aproximarem.

Era seu último dia – e, agora sabia com certeza, também o primeiro – porém, aquelas pessoas todas, os motoristas, os policiais, a senhora que soluçava, os paramédicos, não sabiam disso. Num instante que durou quase uma eternidade (clichê), ela viu momentos de sua existência passarem como se compusessem um filme de François Truffaut. Mas apenas os bons momentos. Quem montara o filme havia sido bem bonzinho, excluindo as derrapadas, as cagadas, os períodos de tristeza e de dor, os desencontros todos. Ficaram as descobertas, os encontros, as conquistas, os instantes de plenitude e satisfação. Sabia que estava partindo para algum lugar. A outra dela, suave e delicadamente, lhe estendia a mão, chamando-a com os olhos, com o sorriso. Então, começou as despedidas – família, amigos e amigas, mocinho dos suspiros, aliás, todos os mocinhos que já a fizeram beneficamente suspirar, conhecidos e as pessoas bacanas que ela não chegou a conhecer, mas que sabia que existiam (clichê). Quanta gente deixou de lhe telefonar ou escrever naquele dia, o amigo desmarcara o almoço, a professora de canto faltara, o agente de viagens ficara de lhe passar a confirmação do vôo, o porteiro nem chegou a lhe entregar o pacote que alguém lhe enviara da Turquia. Mas ela acolheu a todos, ela entendeu que a gente é assim, acha que tem a vida toda pela frente (e tem, clichê), que vai viver para sempre e pode deixar o tempo passar assim, de um modo tão inconseqüente e esvaziado de sentido. Ah, seres humanos...

Que bom que dançara com os pés no chão. Que bom que tomara suco de laranja. Que bom que os beijinhos de que se recordava eram doces. Se fosse escolher uma única memória, como no longa-metragem do Kore-eda (Depois da Vida), uma única memória para levar por toda a eternidade, escolheria a visão de si mesma andando, saltitante em sua saia rodada florida, com um sorriso no rosto e o buquê de gérberas na mão, cruzando com tanta gente sorridente também, mesmo que boa parte desses sorrisos tenha ficado embutida. Ela havia vivido seu último dia como se fosse o primeiro. E seu primeiro dia de uma nova vida como se tivesse sido o último de uma outra vida, uma vida anterior, não menos importante.


De mim para mim mesma. À outra metade da existência que começa.
29/4/07

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