segunda-feira, 14 de maio de 2012

admirável mundo novo


Fazia contas e fazia de conta. Soltava baforadas reflexivas sem pensar em nada. Mas pensava-se, pensava-se o tempo inteiro, imerso em fugacidades (quando-é-que-eu-vou-fugir-desta-cidade?). As estatísticas desconfirmavam a invisibilidade imaginada: ei, você. Uma vez, duas vezes, até três. Ah, sim?, pois não, ou pois é, ora pois... sempre se confundia depois. Números e porcentagens, amostras e cálculos, quais as teorias probabilísticas mais prováveis para explicar o que era inexplicável? Fazia de conta, mais que fazia contas, às vezes pedia socorro a um cigarro de palha, usava botinas de couro e achava possível chutar certas dúvidas e alguns medos para longe das impassíveis soluções (sim, elas não riem, dizia, quase como uma piada, mas sempre com uma pitada de nostalgia).

Certa madrugada, num daqueles momentos repletos de sem-quereres, descobriu, entre os algoritmos marotos, instantes de poesia. E revelou mais do que sabia, e arriscou mais do que entenderia, e desafiou a rigidez das decisões empíricas. Impossível prever o futuro, suspirou, e assim, meio ao acaso, de um jeito totalmente aleatório, aprendeu a inventar versos a partir das incertezas, de todas elas, em tardes imberbes ou em noites terrivelmente sedutoras. Admirável mundo novo, esse o dos astronautas e poetas. E, sem fazer muito, deu-se conta. Pois então.

encharcada

Chovia, chovia muito, chovia fora, chovia dentro, muito. Meu corpo alagava-se, alagava-se contorcido e ofegante. A melancolia acossava-me, numa violência espasmódica. Só não era maior que a opulência do desejo. O desejo. Chovia, chovia, chovia. Ouvia a água pipocar nas janelas do quarto, da sala, da alma. Entra, entra, entra. Vem, vem. Encharcada, eu tentava secar-me nos lençóis, no carpete áspero, em roupas espalhadas pelo chão – inútil defesa, ingênua ilusão, apenas pó e cinzas, cinzas de um passado futuro manchando a pele úmida, rosada e túrgida.

Para, chuva, para. Não parava: eu continuava alagando-me i-men-sa-men-te. A respiração escapava-me, goteja, goteja, já        já          já
gota
 a
gota
Chuva, vem, chove
Chove, chove, chove muito, vai, mais, me chove
e os lençóis, ah, o car pe te ás pe ro, as rou rou roucas roupas espasmos espalhadas pelo eu chão ah ah violentamente sufocante
Melancolia, por favor, me deixa um pouco a sós com meu desejo, nosso desejo,
me deixa, me chove
me
...
...


Trovão – a luz seca e cruel rasga doloridamente o céu úmido e atônito –
Gritamos todos: o céu e eu!!!

A chuva: chovia e continuava chovendo, chovia chuvisco chovia tempestade, chovia fora, chovia dentro, cada vez mais dentro, suspiro, desmaio, entrega:
“porque não”
“por que não?”


Alagada, chuva fora, chuva dentro, sufocada, desmaiada, melancolicamente entregue, cinzas e pó, a pele nua manchada suada rosada, tenho frio, soluço, soluço, o desejo carrasco, esse desdém na solidão mais feminina da face da terra. Naquela noite, era eu e a pura chuva crua, era a solidão mais feminina da face da terra, carpete áspero e olhos fechados, as memórias dos fechos refeitos e poças, muitas poças, de fluidos desperdiçados. Se houvesse ele ali, um diálogo quiçá pudera ter sido possível. Choveriam delícias, choveriam delicadezas e, no instante máximo de desatino, choveriam
uma mulher
e um homem.