segunda-feira, 14 de maio de 2012

encharcada

Chovia, chovia muito, chovia fora, chovia dentro, muito. Meu corpo alagava-se, alagava-se contorcido e ofegante. A melancolia acossava-me, numa violência espasmódica. Só não era maior que a opulência do desejo. O desejo. Chovia, chovia, chovia. Ouvia a água pipocar nas janelas do quarto, da sala, da alma. Entra, entra, entra. Vem, vem. Encharcada, eu tentava secar-me nos lençóis, no carpete áspero, em roupas espalhadas pelo chão – inútil defesa, ingênua ilusão, apenas pó e cinzas, cinzas de um passado futuro manchando a pele úmida, rosada e túrgida.

Para, chuva, para. Não parava: eu continuava alagando-me i-men-sa-men-te. A respiração escapava-me, goteja, goteja, já        já          já
gota
 a
gota
Chuva, vem, chove
Chove, chove, chove muito, vai, mais, me chove
e os lençóis, ah, o car pe te ás pe ro, as rou rou roucas roupas espasmos espalhadas pelo eu chão ah ah violentamente sufocante
Melancolia, por favor, me deixa um pouco a sós com meu desejo, nosso desejo,
me deixa, me chove
me
...
...


Trovão – a luz seca e cruel rasga doloridamente o céu úmido e atônito –
Gritamos todos: o céu e eu!!!

A chuva: chovia e continuava chovendo, chovia chuvisco chovia tempestade, chovia fora, chovia dentro, cada vez mais dentro, suspiro, desmaio, entrega:
“porque não”
“por que não?”


Alagada, chuva fora, chuva dentro, sufocada, desmaiada, melancolicamente entregue, cinzas e pó, a pele nua manchada suada rosada, tenho frio, soluço, soluço, o desejo carrasco, esse desdém na solidão mais feminina da face da terra. Naquela noite, era eu e a pura chuva crua, era a solidão mais feminina da face da terra, carpete áspero e olhos fechados, as memórias dos fechos refeitos e poças, muitas poças, de fluidos desperdiçados. Se houvesse ele ali, um diálogo quiçá pudera ter sido possível. Choveriam delícias, choveriam delicadezas e, no instante máximo de desatino, choveriam
uma mulher
e um homem.

Um comentário:

NelsonMdP disse...

Nada é totalmente desperdiçado, principalmente onde há luz da consciência. Talvez estas energias circulem de outras maneiras e sejam úteis em outros tipos de construções. Para isto, pode ser necessário, doa-las ao alto nos instantes finais.