quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Temos muito em comum

Há coisas que não se explicam. Não se explicam por elas mesmas, o universo não as explica. Quiçá, se temos muita sorte, o futuro – como uma reconstrução de quebra-cabeças – as explique.

Nos conhecemos numa tarde quente de um domingo em janeiro. Havíamos nos falado por telefone um dia antes – ele me telefonou à noite, depois das dez e meia, dizendo que fazia parte da mesma organização internacional que eu, se poderia me encontrar, etc. Contou também que, segundo meu perfil na apresentação dos membros da ONG, tínhamos muito em comum. Ele também gostava de cinema, poesia, literatura, teatro. Voz bonita. Meu sotaque preferido no mundo. Ele me telefonava de outro país. Vizinho.
Ele vinha com a namorada, avisou.

Ok, sem problemas.
Ele telefonou tarde, mas eu estava acordada suspirando e olhando a lua e as estrelas da minha janela, deitada no futon.
Naquele momento, meu coração batia por alguém. Acelerado. Não de paixão, de puro tesão. E admiração. Eu não sabia, mas nos aproximávamos do átimo – daquele instante diminuto, minúsculo, em que nossas trajetórias opostas iriam se cruzar. Eu, largando a razão rumo aos chamados do coração. Ele, abandonando o mundo das emoções rumo aos imperativos da razão.

Na manhã do domingo, fiz o que tinha fazer.
Precisava de um CD de músicas românticas, dessas pop-melosas, que ajudam a gente a sonhar acordada. Que parecem um narguile auditivo. Pois fui à Fnac e o comprei. Lembrei-me do moço, da namorada, comprei para ele um livro do Carlos Drummond de Andrade, tendo o cuidado de escolher a edição com os meus poemas favoritos. Para a namorada, um CD do Rômulo Fróes (que descobri graças a outra fonte de suspiros, que logo aparecerá em outra crônica). Não precisava comprar nada, nem para mim (a libido e o calor se encarregavam de me entorpecer), mas resolvi presentear o mundo com sentimentos. E assim foi.

Nos encontramos, os quatro: eu, ele, a namorada e um amigo em comum, também da organização.
A voz e o sotaque, lindos. Ele, maravilhoso. Namorada bonitinha, novinha e simpatiquinha.
Ele, de novo, maravilhoso.
Libido confusa. Um certo instante de mareação.
Dei os presentes, ambos contentes.
Tomamos uma cerveja. Falei da vida, da minha vida. Planos, mudanças, sonhos, loucuras. Ele falou dos dele – planos, vontades, sonhos, loucuras. Faltavam as mudanças de fato, que existiam em minha vida e não (ainda) na dele. Alguém falou, ele, acho: temos muito em comum. Olhei a namorada, novinha, anos-luz atrás da gente, sorrindo, olhos esverdeados atentos, mãos dadas (com ele) embaixo da mesa. Temos muito em comum.

Eu me perdi na volta para casa. Não no caminho, que posso trilhar até de ponta-cabeça. Me perdi dentro de mim, a música pop-melosa do CD recém-comprado ecoando na cabeça, os pontos de sensibilidade do meu corpo latejando, Drummond, Drummond, Drummond, a voz dele, o sotaque preferido, desejos, desejos.

Cheguei em casa quente. Naquela madrugada, depois de uma conversa maluca por um desses programinhas de mensagens instantâneas, o homem do átimo apareceu em casa. Tomamos vinho, comentamos os azulejos azuis – quase sempre azuis – das cozinhas dos apartamentos alugados e fizemos amor. A história se desenrolou sem desenrolar, pecados íntimos, razão versus emoção, o tiro da roleta-russa, o luto das begônias, deixe ir.

E faz alguns dias, o ano já acabando, dezembro, meses e meses e vivências e viagens e experiências e declarações e descobertas e pensamentos e sentimentos depois, a lembrança do homem maravilhoso de sotaque sedutor e voz linda apareceu com uma força gigantesca que quase caí sentada. Ficou latejando na cabeça. Primeiro, veio seu nome. Depois, seu rosto. Depois, sua voz. Depois, a frase: temos muito em comum. Depois, a recordação do livro de Drummond. E o poema que ele me mandou e eu jamais comentei. Quem é ele, então? E por quê?

Ele não sai de minha cabeça. Em meu ser, um imperativo para ir atrás dele. Ou ao encontro dele, o que acontecer antes.


Descobri que parte em menos de duas semanas para a Europa. Ficou mais longe. Eu até iria ao país vizinho, mas... Europa?


Eu lhe escrevi. E agora, como adolescente, confiro minha caixa postal eletrônica diariamente para ver se há alguma resposta, se ele se lembra de mim, se eu de algum modo também comecei a latejar lá do outro lado.


Respeito minha intuição, mas ela é misteriosa e suas motivações são mais complexas que os oráculos de antigamente. Estive no antigo templo dedicado a Apolo, com o oráculo de Dydima. Dydima, diga-me: o que é que é? Quem é esse homem? E por que não me deixa mais em paz?


Menos libido, mais o imperativo, isso é que é estranho. Ecoando: temos muito em comum. Temos muito em comum. Temos muito em comum. Ele vai à Europa para tentar estudar algo de teatro, de artes, me contou um amigo. Ele não sai da minha cabeça. Ontem à noite pensei que, depois das dez e meia, ele fosse me telefonar. Como fez um dia. Há coisas que não se explicam. Não se explicam por elas mesmas, o universo não as explica. Quiçá, se temos muita sorte, o futuro – como uma reconstrução de quebra-cabeças – as explique. Mas já não sei se quero a explicação ou a história de fato, acontecendo em tempo real, comigo como protagonista ao lado dele, do homem maravilhoso, de voz linda e sotaque preferido.
Temos muito em comum.

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