quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

The Magnificent

Prólogo
É mais que um beijo. Identifico uma entrega. Um enlace dourado, uma costura de retalhos dele e dela, uma fusão de partes, dois inteiros formando um todo luminoso e colorido, uma experiência orgástica e cósmica.
Não sei quando me deparei com a tela de Gustav Klimt pela primeira vez, num livro ou num postal. Mas me lembro quando a vi no museu em Viena, ao vivo. O dia estava nublado e um pouco friorento, como hoje. (Olho meu verão pela janela e não o reconheço. Chove chuva fina nesse dia de céu cinza esbranquiçado sem vontade de sair lá fora, vento úmido e frio contrastando com o calor do apartamento e do ventre quente e sanguinolento, que lateja feminilidade biológica. Não reconheço meu verão! No toca-CD, Concierto de Aranjuez segue firme e embriagante, nas mãos de Alexandre Lagoya e da Monte-Carlo National Opera Orchestra, em três atos – ao contrário da versão de Miles Davis, que vai numa tacada só). Klimt, então, volto a Klimt, e ao dia em que vi O Beijo ao vivo. Frente a frente, encontro quase inesperado, embora anunciado, não tinha expectativas. Apenas entrei na sala e vi. A tela reluzia, linda e envolvente, trazendo-me uma ponta de tristeza por admirá-la só, sem ninguém ao meu lado, sem nenhum homem que me enlaçasse e me beijasse. Entrei na tela e fui beijada. O inesperado da entrega. Eu me entreguei.
Isso aconteceu em 2003, creio. Verão europeu de 2003, mas como o verão brasileiro de 2007 de céu cinza esbranquiçado, chuva fina e algum frio. Sozinha, embora tão emocionalmente acompanhada. Onde estão todos?

Nesse momento, me recordo de apenas um. E ele basta.


J.
Reprodução de O Beijo, tamanho real, na parede rubra, vermelho cor de vinho tinto olhado através da luz. Vermelho do sangue que me percorre e que jorra hoje de mim. Era a segunda vez, pois a primeira foi em outro lugar, em outro quarto, não dele, não nosso, já que era o caminho natural dos sentimentos e dos desejos e estávamos longe das paredes rubras. Se já não tínhamos a novidade da primeira vez, tínhamos a intimidade da segunda. O Beijo, os beijos, o enlace, as entregas, Caio Fernando Abreu sempre definindo tão bem as coisas: esses pedacinhos desconexos de nós mesmos que fazem sentido quando o Outro nos enxerga.

Ele compreendendo sua energia masculina, eu em reconhecimento de minha energia feminina, fronteiras de idade e de nacionalidade totalmente diluídas num mar de puras descobertas. Havia doçura e selvageria, havia respeito e firmeza, havia um deslumbramento de ambos e por motivos diferentes. De relance, quando os olhos se desviavam daqueles olhos escuros de sombrancelhas grossas, eu via o Beijo. Eu dava um beijo, eu recebia um beijo. Reluzíamos os dois.

Faz pouco tempo e já tenho saudade.
Uma história que começou Jules e Jim, por uma necessidade mútua e tripla de partilha e troca e entrega e fusão e doação, mas que virou eu e J. apenas.
Ele mais alto e mais delgado, ele delicado, ele incomodado com as vozes de seus julgamentos internos, ele em franca aprendizagem do Amor. Aquele Amor, das maiúsculas.

Hoje vi uma fotinho dele, sorriso largo no rosto, asas de anjo.
Foi o Amor que o mandou a mim?
Dói pensar que ele possa ter sido mais um instrumento do Amor para me preparar para a partilha definitiva com um homem, para o amor aqui e agora. Mas é esse o exercício do desprendimento, do desapego, que o Amor ensina. Deixar livre para reencontrar – e no reencontro a resposta se é ou não.
Sinto a dor, porém não sofro. Amo com os suspiros mais delicados que encontro.
Era ele um anjo do Amor?
Ou beijei o Cupido sob os olhares desnudos dos amantes de O Beijo?

A chuva engrossa lá fora, pois não choro externamente. Choro aqui dentro. Não choro por posse frustrada, choro pela felicidade do encontro, dos retalhos de mim mesma fazendo sentido quando costurados com os retalhos dele, tinta dourada, brilhante. Reconheço o brilho no meu olhar, o beijo da memória e da parede e do quadro e do postal que procuro no meio de tantos, tantos recuerdos de viagens, e o vermelho do sangue que confirma a mulher biológica que sou. Pois a mulher-humana, a mulher-Maria-e-Lillith que está em minhas entranhas, foi ele quem me fez lembrar.

Com ternura.
Com mãos ágeis e corpo disponível.
Acordes mais profundos e dilacerantes da música.
A chuva não vai parar tão cedo!

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