domingo, 15 de março de 2009

ao acaso, por acaso

(2009)


1.
Eles se encontraram literalmente no meio da rua, num desses horários improváveis, meio de tarde no meio da semana, quando as pessoas em geral seguem trabalhando em seus escritórios ou correm para pegar o banco aberto. Fazia muito tempo que não se viam e até tinham se esquecido um da existência do outro. Afinal, nunca foram mais que colegas de trabalho. Jamais houve um almoço de mera conversa, uma coincidência de tomar café na mesma hora, uma carona casual – uma informalidade qualquer dessas que aproximam duas pessoas estranhas. Conheceram-se e, durante um período, conviveram, mas continuavam indiferentes um ao outro.
Ela, na camada pré-sal de seus pensamentos, ouviu seu nome quando atravessava a rua, bem na faixa que separa a pista que desce daquela que sobe. Cumprimentaram-se, ainda com os pés no asfalto, distraídos, até que ela sugeriu sobriamente que optassem por uma das calçadas. Foi seu único momento de sobriedade. Ele estava curioso. Apressado, mas curioso. Os cabelos dela tão finos e tão despenteados. Ela ficou envergonhada: era um homem, e não um menino, diante dela. As poeiras do ar daquele instante não sabiam dar mais detalhe algum: se ele estava casado novamente, se ela continuava solteira, se ele estava mais bonito, se ela se encontrava mais gordinha, se ele era realmente um cara legal, se ela surpreendentemente parecia uma mulher atraente. Ninguém, nem os dois nem as poeiras, muito menos as pessoas atarefadas e urgentes de desnecessidades, parecia preocupado com tais informações.

2.
Ela estava nos profundos do fundo de seu oceano particular quando foi chamada à tona. Teve medo da embolia, por conta da subida rápida. Por isso, não mudou sua técnica: foi soltando o ar aos pouquinhos, vagarosamente, enquanto avançava camadas aquáticas rumo à superfície. Os peixinhos lhe faziam cócegas. Ela ria.

3.
Ele seguia anestesiado sob os efeitos da palestra da qual acabara de participar. Consciência, sagrado, existência, pessoalidade, vida em plenitude. Tudo reverberante, como sinos de um mosteiro em compasso com o silêncio do ser. Não, a transição ao barulho cotidiano não podia ser veloz. Ele ouvia atento.

4.
No diálogo real, falaram de aqui e agora, da ruptura com o que foi, das mudanças e de “não sei”. Descobriram-se similares na disposição ao novo e à honestidade com as pessoas que eram.
Mas poderia ter sido assim a conversa, um monte de não-ditos:
— Tanto tempo lado a lado e jamais imaginaríamos que.
— No fundo, parecidos...
— Pois é, eu te achava legal. Um cara simpático.
— Você também parecia legal, mas distante. Reclusa em você mesma, espinhosa.
— Você era casado na época.
— Isso não mudaria as coisas. Mas prestava muita atenção em superficialidades, confesso.
— O importante é que não tenha ficado nisso.
— Não. Quero mais para mim. E poder me dedicar ao que realmente gosto.
— Do que você realmente gosta?
— Pois então, não sei. Ainda não sei.
— (Risos) Nem eu!
— Então, você foi à Palestina e ao Kosovo...
— E você, certa vez, cruzou o Vietnã e o Camboja de bicicleta, né?
— Respeito as fronteiras, mas não as vejo como imperativos.
— Viva a travessia!
— De Guimarães Rosa.
— E de Pessoa.

Viria então um silêncio e os olhos travariam um diálogo. Ele ficaria túrgido e ela, eriçada. Ela o convidaria para um mergulho em seu oceano, ele a levaria para passear em seu mosteiro de campinas, delicadezas reverberantes e sinos. Seria tudo muito, muito gentil. Às vezes, faria cócegas, em outras quanta intensidade. E teria as risadas e as satisfações de um “não sei”, sem antes ou depois. Seriam apenas eles dois. Assim, ao acaso.

5.
Dois universos momentaneamente tão parecidos cruzados por puro mistério. Quantos não se cruzam diariamente? Porém, como não conhecemos nem um 1% da população mundial, não nos damos conta. Porque se disséssemos ‘alô’ a todos que passam por nosso caminho todos os dias ficaríamos espantados com as coincidências de humanos. E com as desnecessidades e os desperdícios também. Mas só alguns, reconheço, misturam diálogo de alma e empatia e carinho. Só alguns.

6.
Na despedida, ele – mais alto, olhando-a de cima para baixo – segurou a mão dela – mais baixa, olhando-o de baixo para cima. Atitude espontânea. Afeto (sinos! sinos!)? Ela corou e acelerou seus batimentos cardíacos (embolia! embolia!). Ele deu um beijo em sua (dela) bochecha quente, despedindo-se. Ela, embriagada, atônita e ainda dentro d´água, disse qualquer coisa sem nexo. Convidaram-se a um café, mutuamente, ele perguntou o e-mail dela, ambos sabendo que ele ia esquecê-lo em seguida. E pouco importava. Então, ele deu mais um beijo na mesma bochecha quente dela. Sem largar a mão.

7.
Num desses filmes açucarados, a mocinha fica com a jaqueta do mocinho, depois do primeiro beijo de ambos, na seqüência de um encontro ao acaso. E ela diz para ele não a seguir ou procurar, por favor. Se ambos se encontrarem novamente, sentencia ela, é porque sim. E então. Aí ele terá sua jaqueta de volta. O filme pertence a Hollywood, mas isso acontece às vezes na vida real.

8.
Foi um encontro ao acaso. Simples e singelo.
Se eu fosse escrever um conto curto a respeito, diria que ela sonhou três vezes com ele: de quarta para quinta, de quinta para sexta e de sábado para domingo. Na primeira vez, ambos estavam sozinhos no sítio dele no interior. Ela precisava voltar à capital por um motivo qualquer. Ele a acompanhou até a estação rodoviária. Ambos sabiam que ela retornaria ao sítio. Na segunda vez, os dois acompanhavam um grupo de indianos em visita a algum lugar que era lugar nenhum específico. Um misto de deserto com praia e museu de antropologia. Estavam juntos, e era suave. Na terceira vez, o contexto sumiu e só o que se lembra é que, finalmente, ambos fizeram amor.

Sinos e mergulhos.
Por acaso.

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