segunda-feira, 29 de junho de 2009

Blasfêmias

(Luar no Rio São Francisco, MFV, 2009)

Estávamos assim, distraídos, dizendo blasfêmias ao ar. Nada que deixasse as mais puritanas coradas de tanto despudor ou os ultraconservadores irremediavelmente indignados com nossa petulância. Talvez ninguém tivesse notado o ar mais leve, um certo bailar de palavras marotas, um suave desvio no caminho tradicional das esperas e das expectativas. Nossas blasfêmias eram muito mais pequeninas revoluções em nossas maneiras de fazer todas as coisas que um ser humano naturalmente faz, inclusive amar. Estar junto, estar separado. Como ousávamos desafiar aquilo que sempre foi, especialmente aquilo que sempre foi para nós mesmos? Nem nós sabíamos. E blasfemávamos, irracionais e felizes, ferindo todas as regras que havíamos criado durante anos, anos e mais anos, uma sequência impensável de tempos mortos e tempos vivos. Navegávamos a sudeste, porque a leste estava o mar maior e ao sul estava nosso desejo, e empreendíamos pequenas mudanças. Pequenas mudanças de dimensões imensas. Insensatas. As cortinas. O colchão. A marca de iogurte. O livro de cabeceira. O xampu. O endereço. Já não éramos aqueles que fomos tanto, aqueles com os quais já havíamos nos acostumado a duras penas, quando ainda naquela frágil crença de que o abstrato pode ser domado e o subjetivo, subjugado. Éramos blasfemadores, agora, blasfêmea, blasmacho, juntos, sem blás, sem menos, sem ou com. Porque simplesmente éramos. O ar permanecia leve, carregado de nossa subversão e de nossa pureza de espírito. Ainda se a terra se fizesse esturricada de tanto sol, porque às vezes a quentura queimava, ou se as nuvens escuras jamais trouxessem chuva, apenas dissabores, não nos abandonávamos – nem às nossas agruras agudas, saídas sem ser convidadas dos quartos mais embolorados ou dos sótãos escuros, nem um ao outro. Isso já tinha sido impensável, mas agora se tornara blasfêmia das boas, quando nos admirávamos em voz alta de nossos novos sotaques ou quando partilhávamos nossa história com alguém. E não só um, mas dois ou muitos alguéns se sentiam desconfortáveis com nossas navegações. Porque chegáramos a um oceano desses sem-fim, apenas com nossa ilha e nosso barco, incansáveis de remar e nadar e sonhar. Juntos, sempre, ainda que fôssemos encantados cada qual com uma estrela diferente, com um jeito de sugar o arco-íris ou erotizar o vento. Cada novo amanhecer carregava novidades de nós mesmos e de todas as outras vidas e coisas do universo, que encarávamos com sofreguidão e respeito, concordando sobre onde deixar os chinelos ou se as mexericas ficariam ao lado das bananas. Ah, distraídos seguíamos, somados, ávidos de blasflores, blasfemadores totais. Revolucionando nossas miudezas e nossas antigas legislações.
Vivíamos amantes.

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