quarta-feira, 7 de março de 2012

você e ela



Quando ela entrou no cinema, um ar entre distraído e melancólico, você foi logo pensando: essa é só para comer. Olhou a regata justa, avaliou os seios interessantes, a cintura que denunciava alguma gordurinha localizada, observou a saia que escondia o quadril nem grande nem estreito. Não gostei dessas pernas, você foi taxativo. Não gostei desse cabelo, você acrescentou. Ela estava na fila para comprar a entrada, mas você já concluía que seria impossível para ela gostar de algum daqueles filmes em cartaz. Muito arrogante para o filme italiano, provavelmente ignorante para o francês; despistada demais para o indie estadunidense, ingênua para o chinês. E certamente orgulhosa para o brasileiro, com sua protagonista linda, que a mataria de inveja. Tudo isso você pensou, ali, sentado no café, à espera da abertura da sala. Quando ela se aproximou da vitrine dos livros, igualmente à espera, você logo vaticinou: vai buscar um Paulo Coelho, vai dar com os burros n’água. Ou vai fazer o tipo que lê, folheando um Paul Auster ou um Stéphane Hessel. Saiu dali com um livro de Wislawa Szymborska e um molesquine, e você logo imaginou: presente para algum idiota que ela queira seduzir.

Ela se dirigiu para a mesma sala que você – a do filme francês – e você estranhou o fato de ela não ter comprado um saco de pipoca e uma latinha de refrigerante. Deve ser do tipo que faz ruído quando impera o silêncio, era o que você tinha intuído, mas deixará o celular ligado para que o alarme de nova mensagem soe no meio do longa-metragem. Nada soou. Você achou que ela fosse escolher uma das fileiras do alto e, insolente, estender os pés sobre a poltrona da frente, mas ela sentou muito alinhada, próxima à tela e mais à esquerda. Talvez ela saia no meio do filme – ou para ir ao banheiro, ou porque não está entendendo nada –, você disse a si mesmo, porém isso não aconteceu. Ela ficou ali, até o último crédito, enxugando alguma lágrima perdida (como você) e escutando a canção até o fim (como você), talvez se lembrando de alguma história recente, de desencontro ou ruptura, ou de outros filmes franceses vistos ao lado de um antigo amor (como você).

Quando ela se sentou no café, você se indignou: ela deve ser uma adicta à cafeína. E, embora não tivesse vontade de beber nada, sentou-se também, quase escondido na mesinha do canto. Esperou que ela bebesse coca-cola, ou um capuccino, ou espresso com chantilly, que comesse um petit gateau ou algo muito doce, a fim de comprovar sua teoria de que era uma mulher bastante previsível, mas ela pediu apenas um suco de maracujá. (E você, uma água com gás.) Não gostei desses lábios, você voltou ao ataque, muito observador. Nem de seu pescoço. Você fantasiou como seria fazer amor com essa mulher e sentiu-se mareado: deve ser frígida, ou mal-cheirosa, ou disforme, concluiu. Ficou intrigado com o olhar perdido e triste dela e com o fato de ela folhear assim, despretensiosamente, o livro de Szymborska. Não deve estar entendendo nada dos versos, considerou você, nem da vida. Você a achava cada vez mais feia e mais asquerosa, porém entre pernas algo intumescia. Você a imaginava abominável e cruel, contudo seu coração acelerava cada vez mais. Essa mulher deve detestar abraços, você soluçou.

Quando ela se levantou para pagar, você estava seguro: pedante, ela vai usar o cartão de crédito. Mas ela estendeu uma cédula de pequeno valor, e você engoliu seco o argumento seguinte, ainda em elaboração. Ela deve ter uma voz estridente, um sotaque enjoativo, os dentes amarelos e mau hálito, você tinha certeza. E, para comprovar sua indomável opinião, aproximou-se. Ela fingirá não me conhecer, ela se ofenderá com a minha abordagem, ela vai virar as costas e sair correndo, tudo isso – e em fração de segundos – você pensou. Mas ela pareceu surpreender-se com sua presença ali, de carne e osso, na frente dela, e, com um sorriso tímido e uma voz adorável, os olhos baixos, as mãos suadas, perguntou como você estava. Você não sabia o que dizer. Você não disse nada. A garganta estava seca, você todo tremia, a respiração ofegante. Você pediu um abraço, ela assustada abriu os braços, você suportou apenas uns quantos segundos até desvencilhar-se e sair correndo.

Foi a segunda vez em que você saiu correndo diante daquela mulher.

A anterior, você queria borrar de suas lembranças, mas não conseguia. Foi no dia seguinte a uma noite mágica, depois de ter saído com ela, conversado com ela, se descoberto encantado por ela e dormido com ela. Envergonhado de si mesmo, inseguro quanto ao que ela poderia achar de um cara como você, você saiu correndo. Desapareceu. Não ligou, não escreveu, não deu notícias. Tentava, escondido e calado, saber mais dela por meio das redes sociais – mas a amizade virtual entre ambos foi desfeita algumas semanas mais tarde. Você sabia que ela gostava daquele cinema; dos diretores daqueles filmes – fora ela quem lhe apresentara o cineasta francês, por exemplo; você sabia que ela gostava muito de você. E, ainda assim, você saiu correndo pela segunda vez.

2 comentários:

Um brasileiro disse...

oi. tudo blz? muito lindo e sensual aqui. gostei. apareça por la. bjus.

ZECA LEMBAUM disse...

Se o gozo não foi um truque, se a fêmea não se limitou apenas aos xacras de desejo, se a algazarra foi acompanhada por trilha sacana ao pé do ouvido, se a moça aguardou linda e bem humorada a reanimação para a prorrogação, se a alegoria de gemidos e fungadas do macho recebeu nota 10 na apuração, se os chistes e traumas retroativos não importunaram, por que cargas d’água fugir de tão distinta? Impossível entender esse “corra, lola, corra” tão repugnante nesses cabras...