quarta-feira, 9 de abril de 2008

DOIS PONTOS

(2005, MF)

“― Eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafada porque ele estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte: ”
Clarice Lispector,
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres

E lá estava ele, contemplando os dois pontos.


Coordenava um grupo de estudos que se debruçava, vez ou outra, sobre os sinais de pontuação. Já haviam falado sobre o travessão, a vírgula e a interrogação (esta rendeu uma discussão interminável, reuniões e mais reuniões, discordâncias homéricas, filosóficas até. Preferiram todos, de comum acordo, depois de muitos parênteses e colchetes, passá-la para o fim das reflexões). Mas o fascínio dele pelos dois pontos tinha menos a ver com o tal grupo de estudos do que com seu próprio estado de espírito. Sim, hoje ele era um homem de dois pontos. Da pausa antes de falar, mesmo que os pensamentos e as frases brotassem aos borbotões em sua mente quente e irrequieta. Da necessidade de frisar os apostos que usava. Da vontade de destacar as explicações que vinham a seguir. Da experiência em conter seus arroubos. Calma, muita calma nessa hora. Serenidade a duras penas conquistada.


Mas ele já tinha sido um homem de exclamações, muitas, três de uma vez, quando mais jovem, bebendo conhaque sob a lua que o deixava comovido como um poeta sentimental e discutindo política, o PT no poder, a vitória das massas, a ascensão do proletariado, democracia exercida até a última gota, o mundo mais justo, a gente mais feliz. Era um idealista. Um idealista que se esquecia das vírgulas, ignorava todas as pausas e destilava considerações e mais considerações em voz cada vez mais exaltada. A revolução, a revolução!!!!!! Um amigo daqueles velhos tempos dizia que ele era movido a álcool – antevendo, quem sabe, uma saída para a economia nacional (note os dois pontos): o investimento em etanol e uma provável parceria com os Estados Unidos, suprapotência, inimigo histórico. Ah, esses ianques!!!!!!


Depois do conhaque e da rebeldia política, veio o cinema, paixão antiga, filmes intermináveis na Mostra Internacional de São Paulo, aquela turma que sempre se reencontrava, as discussões regadas a cerveja (e a uma ou outra dose de conhaque para ele e os demais iniciados). Os pontos de exclamação deram lugar aos pontos finais. Inevitável. Opiniões incontestáveis sobre os longas-metragens vindos do Oriente. Ponto. Kiarostami é um gênio e ponto. Tem influência do Bresson, sim. Ponto. Godard é outro gênio. Ponto. Wim Wenders tem seus méritos – adoro Asas do Desejo e ponto. Gosto do Tarkovski em Nostalgia, prefiro até, ponto. Acho isso e aquilo. Ponto. A turma toda discutia tudo – mas sempre os fins de sentença eram em ponto. Ao menos, naquela época, as exclamações eram consideradas over (“o cara é um exagerado, até parece que todos os cineastas do momento viraram mestres, nada a ver”) e as reticências, “coisas de gente que só vai ao cinema uma vez por mês”. Foi com a turma dos pontos finais, seus novos companheiros, que ele externou publicamente sua paixão e criou um site dedicado aos filmes, já que os amigos das exclamações haviam dispersado, uns inclusive sucumbido à falácia da centro-esquerda ou da alienação da máquina capitalista. Ah!!!!!! Ah.


Naturalmente, virou professor. Não bastavam os ideais e as imagens. Era preciso ir além, além do lugar-comum das exclamações e dos pontos finais, das vírgulas ignoradas, das aspas mal-amadas e dos impropérios dos parênteses. Do não-dito gritado, escancarado. Virou um professor machadiano, um Quincas Borba dos tempos contemporâneos, dedicado ao léxico e à sintaxe, às leituras e às escrituras, ao Humanitismo e à humanidade das palavras, das frases e das pessoas, tudo com uma releitura pós-moderna. Se Memórias Póstumas de Brás Cubas lhe abriu as portas para os sinais de pontuação (o que é aquele capítulo “Velho Diálogo de Adão e Eva” senão um exercício artístico de síntese por meio de exclamações, interrogações e reticências potencializadas?), Dom Casmurro lhe apresentara Capitu. Ou melhor, lhe explicara Capitu. Justamente a ele, um romântico confesso mas disfarçado, mantido sob controle em nome da maturidade da “metade da vida” (Jung dizia que, em média, o ser humano atingia a metade da vida aos 35 anos). Ele, um homem que, entre as quatro paredes, diante de uma mulher, falava em suspiros e itálicos, perdoava as aspas e as travessões, ignorava os pontos finais e se enchia de reticências. Ha-ha! Ele usava reticências! Isso era inconfesso, que fique entre nós, não espalhe. Pois é, ele reeditava sempre o velho diálogo de Adão e Eva, caprichando nas reticências...


Professor de melancolia? Que nada. Professor da simplicidade. Das coisas simples da vida. Queria ser um escritor como o protagonista de 2046, filme arrebatador, que lhe tirou do sério, que lhe deixou atordoado por dias e dias a fio. Esse romantismo ainda me mata, vai acabar com meu fígado, pensou. Por isso, precisava escrever. Histórias de amor com a poesia dos grandes, a sutileza dos conquistadores e as tintas dos mestres. Simples, simples assim. Se pudesse, como professor, ensinaria aos alunos a simplicidade de uma história como a de Jules e Jim. E como a de Bentinho e Escobar. Com a presença aturdida, mas necessária, sempre necessária, das respectivas Catherine e Capitu. Meus alunos, não temos o controle sobre nada nessa vida. É falsa essa ilusão de controle, de que existe um destino e que nossos passos estão já previstos, de que nós mesmos podemos prever nossos passos e traçar nossos caminhos. O acaso, meus alunos, é o segredo, a grande graça da vida está no acaso. Em deixar as coisas acontecerem naturalmente. Como ocorrera com ele: agora era professor, antes nem imaginava. E contemplava os dois pontos. Impressionante esse acaso. Ele, antigamente, queria tudo no registro da paixão e da urgência. Repercussões imediatas de atos refletidos. Encantava-se com uma garota e já a via como sua mulher, a colocava dentro de sua casa, imaginava filhos, cachorros, finais de semana divertidos numa charmosa casa construída no terreninho lá em Mairiporã. Lula no poder e todos os problemas nacionais resolvidos, com as soluções mais duradouras e exemplares – incluindo aqui o desempenho da seleção brasileira, a valorização do real, uma realidade melhor para todas as gentes, o vigor do cinema nacional. Um mundo em que os filmes de Wong Kar-Wai, Hou Hsiao-Hsien e Arnaud Desplechin fizessem frente aos blockbusters esmagadores e vazios e conquistassem definitivamente o público, o grande público, seus alunos e seus pais, suas futuras namoradas, sua Capitu. Aqui, agora, já. Exclamações! Pontos finais.


Mas não era mais assim. Por isso, apaixonara-se pelos dois pontos, pela singeleza da pausa e da possibilidade de reflexão. De não temer o passo seguinte, mas dar a ele seu tempo de elaboração e concretização. Como se fosse um suspiro mais solene. Dois pontos, dois passos. Ninguém avança se pisar só com o pé esquerdo ou só com o pé direito. Um pé para frente, depois o outro. Os dois pontos representavam isso: a aprendizagem do caminhar, do ouvir o outro e do falar. Versáteis, os dois pontos davam ênfase, serviam de introdução, sugeriam uma explicação, continham ânimos exaltados mas não eram definitivos. Quer sinal mais orgânico? Pense bem: o cérebro e o coração formam dois pontos. O coração e o sexo. O cérebro e o sexo. A cabeça e os pés. O Céu e a Terra. Tudo são dois pontos. Abstraia mais ainda. O medo do goleiro diante do pênalti (ele era goleiro nos rachas entre os cinéfilos): dois pontos. Seus olhos nos meus olhos: dois pontos. Ele em São Paulo, ela em Tóquio: dois pontos. Os dois pontos abriam espaço ao acaso. O que vem depois deles? Ele não sabe, você também não, nem eu.


Naquela tarde de sexta-feira, o sol tentava avançar no céu nublado. Dali a pouco, ele iria encontrar os amigos para um filme, um chope e uma balada. Mas havia se prometido, já fazia algumas semanas, revisitar suas ficções, voltar a escrever, colocar no papel todas as histórias incríveis que lhe vinham à mente no longo caminho de casa até a faculdade onde lecionava, da faculdade para casa, do cinema para casa, da casa para o cinema, da faculdade para o cinema (às vezes, isso acontecia). Esquentou pela terceira vez a xícara de café – era a quarta que tomava naquela tarde, um sono, o sono da semana inteira lhe fazendo companhia. Havia mais de duas horas estava diante da tela do computador. Tocara no teclado apenas uma vez. No documento aberto do Word, lá estavam eles, reluzentes: os dois pontos. Pois então, havia mais de duas horas ele estava lá, fazendo companhia aos dois pontos. Contemplando-os, admirando-os. Diria até que os meditava, sorvendo-os. Aprendendo com eles uma sabedoria escondida e sutil:

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