sábado, 30 de junho de 2007

O dia em que eu resolvi ler o jornal inteirinho

Há alguns dias venho acordando cansada de ser humana. Visitei a sombra e não foi fácil (mas falarei disso em post futuro).

Com esse sentimento de cansaço -- que não era tédio, que não era irritação, que não era angústia, que não era desdém, era cansaço, puro cansaço de toda essa humanidade que me constitui, que me impregna, que faz de mim um ser igual a você e aos outros 6 bilhões de humanos do planeta --, resolvi ler o jornal quase inteiro. Há um tempo desisti da imprensa, especialmente dessa imprensa tão cheia de opiniões, arrogância, cobertura meramente factual, que enxerga nos leitores seus clientes e faz das publicações meros produtos de consumo imediato e imediatamente descartáveis. Um comércio de tomaládacá, me dá seu dinheiro que eu te mantenho super bem-informado, considerando boa-informação tudo aquilo que gera algum lucro e não muda a ordem das coisas, sabe, sugando o idealismo de jovens jornalistas ou a resistência heróica dos mais velhos. A ordem agora é ser pop. Hã-hã. Pop? Papito! E por aí vai.

Li o jornal quase inteiro e chorei. Chorei em degradê, chorando por sentimentos diversos, da dor à raiva, da solidariedade à indignação. Quase vomitei depois, mas fiquei um bom tempo tentando descarregar toda a minha náusea. Não brotou flor da náusea depois da leitura. Não sei onde a flor foi parar, decerto os espinhos da sardinha do almoço a sufocaram. Dessa sardinha que nos fazem engolir todos os dias, com ou sem sal, frita ou assada, pescada em mares turvos de ondas grotescas e afogantes. Afe, ranhetice. Afe.

Dor. Dor pelos 11 deputados colombianos mortos por alguém que não assume a autoria -- as Farc alegando que é culpa do governo, que eles morreram no fogo cruzado, o governo alegando que as Farc estão manipulando as informações. As fotos dos 12 deputados seqüestrados há cinco anos -- cinco anos!!! -- estavam nos jornais. Apenas um sobreviveu. Olhei aqueles rostos. Aqueles rostos todos. E chorei. Não suportei. Chorei. Chorei e chorei. Para onde vai a Colômbia? A Colômbia vai para algum lugar? Chorei pelos colombianos todos, que fazem seu voto pela vida diariamente, que buscam a dignidade, que ainda crêem em seu país, que pagam seus impostos, que também estão sob fogo cruzado. "Guerrilha diz que houve tentativa de resgate."

Dor também pelos inocentes mortos ou mutilados pela violência nas cidades brasileiras, nos campos brasileiros, nas tribos brasileiras, no sertão brasileiro, mutilados pelas injustiças brasileiras, no Brasil inteiro. Para onde vai esse país? Que país é este? Haiti é aqui? Aqui deve ser pior que o Haiti imaginário de capacetes azuis ansiando pela seleção brasileira de futebol.

Dor pelos iraquianos inocentes que morrem diariamente. Pelos afegãos. Pelos africanos todos. Pelos chineses que não estão nas estatísticas de desenvolvimento econômico veloz e reluzente, ou melhor, que estão literalmente na base desse desenvolvimento às custas de miséria e quase-escravidão, mas que não aparecem quando o assunto é PIB ou ONU ou Davos ou qualquer sigla internacional. O mesmo para os indianos em igual situação. Dor por palestinos e por israelenses. Pelo haitianos. Pelos chechenos. Pelos curdos. Dor clichê, dor legítima, minha dor, a humanidade doendo toda, por dentro e por fora de mim e do mundo. Dor pelos que ardem de dor. Dor pelas crianças nascidas de estupros realizados nessas guerras contemporâneas, como na Bósnia, no Sudão, no Congo... Dor por todos os que estiveram na mesma situação das crianças de "As Tartarugas Podem Voar". Dor por todos os que estiveram na mesma situação dos personagens de "Hotel Ruanda". Dor por todos os que viveram o que a protagonista de "A Vida Secreta das Palavras" viveu. Independentemente do mérito artístico desses filmes e de outros tantos, ao menos eles nos tiram um pouco do nosso torpor -- torpor egoísta? torpor altruísta? torpor ignorante? torpor intolerante? torpor mesquinho? torpor idiota? torpor defensivo?

Indignação. "O presidente de Israel, Moshe Katsav, aceitou ontem renunciar ao cargo. A decisão faz parte de um acordo no qual Katsav se declararia culpado por vários crimes de assédio sexual em troca do arquivamente do acusações mais graves -- como o de estupro de funcionárias." Peraí. P-R-E-S-I-D-E-N-T-E? Ok, ele é homem como qualquer outro, mas... será que o cargo não lhe daria uma responsabilidade ética, moral, humana, cívica...? Acho que sou démodée, sou de um tempo em que nós todos, seres humanos, éramos humanos. Aliás, creio estar equivocada. No fundo, devemos ser bárbaros domesticados. Já não sei mais. De todo modo, que horror. Estupro não é nada, então?

Indignação. Polícia de Londres desmonta carros-bomba. Tristes desses seres que precisam de bombas para fazerem valer seus protestos. Que precisam destruir vidas de outros para fazerem valer as suas. Que precisam decapitar para mostrar (ou fingir) que têm cabeça.
Me lembrei de uma peça linda, um monólogo do grande ator e palhaço Ésio Magalhães, que ficou em cartaz no Folias durante um tempo em 2006. Chamava "wwwparafreedom". Soldados são enviados por alguém para livrar um povo do comando de um cruel ditador. Em nome da liberdade, tais soldados têm o direito de bombardear o tal território inimigo. Bomba com bomba se paga? Na peça, as bombas eram de chocolate. A doçura desmontava a brutalidade.

Raiva. Raiva, raiva, raiva.
Quem, um dia, bradou com coragem (referindo-se ao Congresso Nacional): "são quinhentos picaretas com anel de doutor?" Esse bordão virou música. E faz tempo.
Quem carregava na própria a história a história de milhares de brasileiros, que saíram de um sertão ou de um agreste sofrido e maltratado para tentar vida melhor, vida digna, na cidade grande, que foi líder sindical numa época em que os sindicatos eram de fato representativos e pulsantes, que engajou-se na política em prol de ideais como trabalho, justiça e igualdade?
Não sei mais quem.
Eu choro de raiva.
Em 27 de outubro de 2002, eu vestia blusinha vermelha, o dia inteiro com essa tal de blusa vermelha, eu fui ao cinema com duas amigas assistir ao "A Promessa", de Margarethe Von Trotta, depois fomos comemorar na Paulista com mais milhares de pessoas a eleição de um certo Lula.
Em 2006 eu me recusei a votar em alguém ou num número qualquer.
Quando resolvi ler o jornal inteirinho, encontrei a notícia que, infelizmente, eu já esperava: "Lula e ministros saem em defesa de Renan." Me senti ultrajada. Críticas à Polícia Federal, ao Ministério Público, à impresa, a mim e a você. Lula me criticou. Lula me criticou porque eu acredito na ética, no respeito humano, porque pago meus impostos, porque sou obrigada a votar mesmo não querendo, porque sou cidadã brasileira, porque não quero financiar Legislativo e Executivo corruptos. Saiu em defesa de Renan Calheiros? Esse mesmo Calheiros cara-de-pau da era Collor! Collor: fui cara-pintada não manipulada (ah, sim, havia tanta manipulação na época daquelas manifestações... isso me enojou. A perda da inocência: 'ei, garota, aproveite para se filiar ao partido PWWZ...contribuição mensal em cinco vezes sem juros, porque juros são coisa do FMI...' >> essa última parte é ironia minha, claro), ajudei -- acho, achava, hoje já não sei -- a tirar o Collor do poder, e o "povo" e/ou as empreiteiras, Gautamas e Valérios da vida, o puseram de novo...

Mais raiva.
Mais raiva.
Quase rasguei o jornal. Devia ter rasgado.
Estou obsoleta?

Menina ainda, voltava do colégio nos idos de 1984, e acompanhava, junto com meus pais, pela TV as manifestações no Anhagabaú em prol das Diretas-já. Não entendia direito o que se passava no país naquele momento, mas sentia que era importante. Naquela época, naquela idade, sonhei em um dia discursar para multidões no Vale do Anhangabaú. Parecia crucial, parecia necessário, parecia vivo. Em 85, lembro quando brincava no playground do prédio enquanto o presidente -- finalmente, um presidente -- Tancredo agonizava no hospital. Um avião passou rasteiro. Uma amiguinha: acho que o presidente morreu. E ele realmente tinha morrido. "Coração de Estudante" na voz de Fafá de Belém. Meus ouvidos ainda escutam.
Achei que eu começava a fazer parte da História. Na escola, estudava os gregos, os romanos, os navegantes europeus, os conquistadores portugueses e espanhóis, a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais, a ditadura. Agora, eu estava na História.
Mas acho que me enganei.
Sou de um tempo que não está sendo captado pela imprensa. Nem pelos governos. Nem pela pedra que tomou o coração de tanta gente.


E a flor não brota dessa náusea toda. Merda de náusea. Merda.

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá,

Sou Gestora de Comunidades do Jornal de Debates ( www.jornaldedebates.com.br ) um jornal na internet que propõe periodicamente temas para discussão. Essa semana um dos debates é "Caso Renan: homem público tem direito à privacidade?".
Encontrei no seu blog um post sobre o assunto (http://diariodeloricapitu.blogspot.com/2007/06/o-dia-em-que-eu-resolvi-ler-o-jornal.html), e gostaria de convidá-la a escrever um artigo para nós, ou mesmo permitir que publiquemos seu post.

Qualquer dúvida, entre em contato.

Grata
Gabriela Nardy
gabriela@jornaldedebates.com.br
Gestora de comunidades - Jornal de Debates

Anônimo disse...

Entendo... A dor da gente não sai no jornal...

Ana Palíndromo disse...

não suportei ler seu texto até o fim...
pois meus olhos não deixaram....
essa dor eu compratilho contigo...
e ler o seu texto tão verdadeiro me fez lembrar da minha angustia...