"O Livro de Cabeceira", de Peter Greenaway. A força vital que brota de nossos corpos e de nossas palavras. Suspiro, escrevo, suspiro de novo, daí pinto meus lábios de cor de vinho, como se criasse um hiperlink em mim mesma, para abrir outras leituras e possibilidades de navegação. Mais que lábios pintados, esse é um novo parágrafo.
Ele, um dia, se surpreendeu comigo: palavras flamejantes! Ora, as minhas? "Muito calor, janelas abertas, 'Faça a Coisa Certa' do Spike Lee na TV, pedras de gelo," Terminava frases em vírgulas, esperando que eu mordesse a isca e lançasse outro e mais outro anzol. Pescadores os dois, atacantes amigos, alternando as jogadas a fim de que o outro também tentasse o gol. Às vezes, provocado, escrevia mensagens enormes, vívidas, tão íntimas, tão ele-mesmo, como se precisasse se revelar mais e mais, talvez com medo de se esquecer, sim, talvez com medo de que aquele ele, daquele dia, fosse implacavelmente apagado pelo tempo, pelo dia de amanhã. Se as minhas palavras eram flamejantes, as dele eram inebriantes. Ele queimava, ardia por minha causa, eu me embriagava dele, nele. Até o dia em que as palavras escritas -- sim, nossos diálogos eram basicamente escritos e não havia nada de sacanagem virtual ou coisa do tipo; nós dois manejávamos de tal forma as palavras, os sinais de pontuação, os silêncios, que tirávamos de vocábulos banais qualquer inocência e dávamos a eles tesão e torpor --, então, até o dia em que as palavras escritas só encontraram saída na concretude, no encontro presencial de nossos corpos. Suor, cheiro, tom sobre tom. Ele sobre mim. Eu e ele. Evidências, perguntas sem respostas. Ardemos juntos, nos perdemos juntos. Uma madrugada quente de vento gelado, as contradições todas ali, o ápice e o cruzamento de estradas que seguiam em direções opostas: eu da razão para a emoção, ele no sentido inverso. Naquele dia, horas antes, ele havia visto "Dias Selvagens", de Wong Kar-Wai, e reclamado de um certo pó-de-arroz sobre os desejos latejantes tão latinos. Indignou-se: vá até o fim, então! Foi o que ele fez na madrugada. Reconheçamos: Kar-Wai havia matado nossa charada. Os trilhos, naquela curva noturna e solitária, se cruzavam, mas depois mantinham a trajetória distantes, opostos, desafiantes, quase inimigos. Ora, que bonde poderia passar ali?
Meses antes, antes de minhas palavras flamejarem, tinha me falado que eu lembrava o filme "Lucia e o Sexo", de Julio Medem. Eu que me definia pelas palavras. Eu que me nutria dessa energia tão sensorial da vida. O prazer que vem da literatura e do sexo, das metáforas escritas e do diálogo entre os corpos, a tal mecânica corpórea e lingüística dos fluidos. Dias depois, depois que os trilhos se cruzaram, fomos ver "Pecados Íntimos", de Todd Field. Nós dois pecadores? Ou tínhamos nos absolvido mutuamente? Fugíamos de nossas estradas? Eu queria sair da literatura, viver mais presente-contundente, e ele, andar de skate, deslizar mais, gozar mais? E aí a coisa toda desandou: não sabíamos se havia sido um capricho, um desejo, uma explosão atômica, um fogo de artifício, um haicai ou um romance, um início ou um fim. Eu preferi o início. Ele, o fim. Eu continuei exalando sexo e escrita. Ele optou pela distância, pelo não e pelo silêncio.
Agora, tendo revisto "O Livro de Cabeceira", confirmo que metáfora poderosa é essa de escrever sobre o corpo: criar uma obra orgânica e sensorial, uma poesia e uma prosa que brotam sensualmente, que transpiram, que exalam, que estremecem. Obras frias, ausentes, sem "pele", encantam apenas cerebralmente. E arte é vida. Nagiko, a protagonista, em seu próprio diário de cabeceira diz isso, o prazer do sexo e o prazer da literatura. Forças vitais, anima. Não acredito mais em palavras sem vida, sem tesão, que nascem assépticas, in vitro, sem terem se alimentado de placenta. Tampouco acredito em sexo sem uma veracidade de troca entre os corpos envolvidos. Não é qualquer corpo, caramba, é aquele, naquele dia, daquele jeito, com aquele pulsar e com aquele falar.
Um sorvete agora, já. Ahhhhh... Suspiro, escrevo. Ou talvez eu deva... chupar uvas, beliscar morangos, comer melancia? Aliás, há também "O Sabor da Melancia", do Tsai Ming-Liang, que, quando passou na 29a. Mostra, chamou-se "Nuvens Carregadas". Hmmm... Esse merece todo um capítulo...
2 comentários:
Posso ler por horas e horas suas coisas e ainda sim, não enjoar delas.vejo pedacinhos de mim que ainda não voaram mas que misteriosamente se encontram em suas letras.Quero ser você quando eu crescer!
Bárbara.sua amiga palhaçoa.rrssss
Postar um comentário