domingo, 24 de junho de 2007

Ainda esse tal de D... e outras suspirações dominicais

Ainda havia sol na manhã deste domingo, que começou epifânico como todos os domingos, todos os meus domingos. O exercício: criar uma partitura corporal que reverberasse as palavras de um poema com base em uma imagem sugerida a priori. O corpo em plena sintonia com a linguagem e ambos, corpo e linguagem, expressando um estado onírico – um estado que não se antepunha ao corpo, mas era criado com ele; um estado que não surgia do poema, mas ganhava forma, literalmente ganhava forma, com ele. Foi bonito ver as palavras reverberarem no corpo, o corpo criar sua partitura, deixar o movimento trazer a emoção e a emoção contagiar esse movimento, essa reverberação, esse dizer. Salvador Dalí com Fernando Pessoa; Marc Chagall com Lia Luft e Pablo Picasso com Mário Quintana. E é de Quintana a estrofe abaixo, tão pertinente para minha pesquisa intuitiva sobre esse tal de D:

“Só o desejo inquieto, que não passa,/ Faz o encanto da coisa desejada.../ E terminamos desdenhando a caça/ Pela doida aventura da caçada.”

Você já deve ter vivido essa experiência, seja como caça desdenhada, seja como caçador delirante. E tudo bem, humanos que somos, aprendendo a amar amando, a desejar desejando, caçando e sendo caçados. A medida exata desses sentimentos e sensações todos talvez nunca venha, mas a medida equilibrada é a que, talvez, faça toda a diferença. Não sei. Às vezes nos relacionamos com o Outro sem estar em contato com ele de fato. Nos relacionamos com o Outro de nossas fantasias e projeções, um Outro imaginário, criado pela mistura de nossas carências, de nossos afetos e – sim, ele! – de nosso desejo. Assim, ao dialogarmos com esse Outro fantasioso, nos esquecemos da pessoa que o Outro é de verdade. Uma pessoa de carne e osso, de sangue e lágrimas, que suspira, que transpira, que se cansa, que se amansa, que se enerva... É possível haver sintonia de almas – e, como conseqüência, sintonia de corpos e fluidos, de espírito e de pensamentos, de caminhada e descobertas, uma verdadeira sintonia – quando os dois indivíduos não se enxergam, posto que estão em mundos distintos (um na fantasia, outro na realidade)? E a partilha, num caso como esse, como se dá – se é que se dá? Todo ser humano quer ser visto. E visto em sua plenitude de ser humano, não em sua projeção no mundo das idéias de outrem. Bacana ver-se personagem, saber-se figura da fantasia de alguém, porém isso tem um limite (ao menos, para mim). Uma coisa é encontrar encanto no Outro, mas um encanto brotado unicamente do desejo do indivíduo. Outra coisa é aprender a se encantar com o Outro tal e qual ele é.

Eu, ser vivo, conseguiria me relacionar com Rímini, ser fictício criado por Alan Pauls em “El Pasado”? A Lóri de Clarice talvez, idem para a Capitu de Machado ou de Luiz Tatit, mas a Lóri Capitu que sou aqui, do outro lado do computador, na vida cotidiana, com seu vento frio, trânsito, metrô cheio, panelas por lavar, ralo entupido, dor na lombar, pasta de dente no canto do lábio... não.

Quintanestrofe me fez lembrar também de dois livros fenomenais, maravilhosos, impactantes: “Reparação”, de Ian McEwan, e “O Que Eu Amava”, da Siri Hustvedt, mulher de Paul Auster. Ambos tratam, cada qual por uma via diversa, um enfoque distinto, um estilo, personagens fortes, sobre o desejo. Em última instância, sobre esse obscuro – nefasto às vezes, ressuscitador em outras – desejo. Sabe que tenho medo de relê-los? Fui de tal forma arrebatada pela leitura, uma sofreguidão, uma vontade de devorar tudo de uma vez até a última linha, que não sei o que poderá acontecer na segunda leitura. Mas o êxtase dessa primeira vez está aqui, registrado em meu corpo, reverberando em minha alma.

E aí eu penso: a Briony de McEwan, a Briony menina, tinha o olhar muito fantasioso e ainda um tanto ingênuo para a vida, para o desejo. O Leo de Siri, por sua vez, tinha um quê de antropofágico e um certo respeito, uma ligeira auto-repressão por esse desejo. Quem aprendeu a medida, não sem antes ter derrapado um tanto, foi o Ulisses de Clarice Lispector. No início, ele parece um tanto arrogante, meio blasé, quase distante. Na verdade, ele, muito experimentado, já sabia algumas das armadilhas desse derededê e se mantinha sereno e morno a fim de que Lóri também fizesse suas descobertas, até que Lóri estivesse pronta. Ele soube esperar. Ela quis aprender e não teve medo do risco.

Reverberações, partituras. Sintonia de verdade. Uma imagem? Um verso? Que tal uma mistura do “Beijo” de Gustav Klimt com um poema de Hilda Hilst – talvez este: “Te amo como as begônias tarântulas; como as sementes se amam enroscadas lentas algumas muito verdes outras escuras; a cruz na testa lerdas prenhes; dessa agudez que me rodeia, te amo ainda que isso te fulmine ou que um soco na minha cara me faça menos osso e mais verdade.” (de “Lucas, Naim”).


Pode vir a frente fria, chuva e nublados, pode ventar frio, pode fechar a cara e o tempo. Continuo viva e vívida, já que sou um ser vivo. Faço um versinho, se necessário.


P.S.: São Paulo e Santos de novo no campo, no palco. Hugo acaba de ser expulso, mas o Tricolor paulista ganha por 2 a 0, gols de Aloísio e Dagoberto. Ainda faltam uns 20 minutos... vejamos. Frio na barriga. Que aventura é acompanhar jogo pelo rádio, ainda mais a Jovem Pan! Ai, que aflição! Oba, expulso o Adaílton. Dez contra dez. E nós com dois gols a mais.

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