Bem-me-quer, mal-me-quer, mau-olhado.
De repente, sem qualquer aviso. Chegou suave, continuou dilacerante e voraz, me transtornou e transformou. Veio antes da menstruação, antes mesmo das aborrecidas espinhas, antes da compreensão prática de minhas vias e terminações nervosas. Puro sentimento sangüíneo, substantivo e adjetivo, cheio de ilusões cinzentas e pontadas quase fatais. Não entendia Drummond naquela época, mas descobri por minha conta o fogo inerte, amor-sacrifício lento e augusto, seus disfarces, seus calores. Começou no mar, como também eu comecei, e diluiu-se no infinito.
Foi numa manhã ensolarada de janeiro. Praia. Eu, criança de tudo, ainda tinha bonecas embora tivesse também peitinhos e pelinhos. Me divertia com uma prima nas águas mornas daquele mar cheio de promessas, embora eu não soubessse disso (ainda). A vida era doce, inofensiva, e meu coração virgem soava modesto em seus anseios: aproveitar a delícia daquela liberdade que parecia tão imensa. Ponto. A prima chamava minha atenção para os meninos ao redor. Eu, míope e inexperiente, os olhava sem entusiasmo. E daí? Passou muito tempo até que eu notasse, entre uma onda e outra, um garoto magro, cabelos escuros, camiseta branca e prancha azul. Esse garoto. Ele pegava uma onda, outra, e mais outra. E nos olhava, maroto. Chamei a atenção da minha prima: que esquisito, o menino não pára de nos olhar. E aquele sentimento estranho, indecifrável, intruso em meu coração de criança. O que está me acontecendo? Sugeri à prima que voltássemos ao guarda-sol. Por causa do menino?, ela perguntou. Eu, na verdade, queria ficar, mas, de tanto querer ficar, decidi sair. Deixávamos o mar, quando ele cruzou conosco. Sorriu. Olhou para a prima, que olhou para ele. Eu corei. Olha por onde anda!, ela disse. Quem não olhou fui eu. Pisei em arestas de cascalho que se encravaram no meu pé e fizeram doer até a alma. Culpa do Mau Olhado. Sim, apelidamos o menino de Mau Olhado.
Nos dias seguintes, dissimulada, procurava o Mau Olhado entre os guarda-sóis. Quando o via, ficava exultante e palpitante. Sonhava com ele, imaginava que eu lhe sorria, imaginava meus lábios virgens sendo beijados pelos lábios dele. Eu nem sabia como isso se daria, mas a novidade era boa e bonita. Meu segredo: aquele sentimento esquisito e intruso era meu segredo. As palpitações, o calor, a tremedeira, a ansiedade em vê-lo, os suspiros ininterruptos... Não quero mais boneca. Quero o Mau Olhado. Eu discordava de minha prima, quando ela elogiava meninos diversos: olha que garoto lindo! É nada, eu dizia. Ao que ela sempre retrucava: o Mau Olhado é ridículo. Meu segredo estava exposto na minha cara. Inútil disfarçar. Suspirei.
Conhecemos outros tantos meninos, a prima até beijou alguns deles (era o início da modalidade "ficar", naqueles idos da década dos 80, mas eu ainda sonhava em "namorar"), e eu só suspirava por um, fiel de tudo, leal até o calcanhar machucado pelo cascalho. Os dias passavam, a praia, as ondas, cadê a prancha azul? Até que conhecemos uns amigos do Mau Olhado e, aos poucos, nos aproximamos dele. Meu peito doía, eu corava e tremia, suava, gaguejava, aquela dor perversa de tão límpida, insuportável de tão intensa. Ele tinha olhos para a prima. Talvez nem tenha notado a outra menina, encolhida por fora, implodida por dentro.
Um dia, sempre há um dia nas histórias, topamos com ele e amigos na saleta do prédio. O papo até que estava engraçadinho, eu me esforçava para não parecer invisível, a timidez imensa, a inexperiência, a falta de jeito, a fala não saía, de que adiantava tirar 10 nas provas se meu cérebro não funcionava naquele momento? Câmera lenta: minha prima puxa Mau Olhado de lado. Eles conversam e me olham. Tramam algo. Estou suando frio, não escuto mais nada. Ela sorri, ele me olha, ele faz sinal de negativo com a cabeça. Corta. Estou no elevador, subindo para o apartamento. Saí correndo? Saí tremendo? Inventei uma desculpa qualquer? Explodi? Não sei, não me lembro. Estou a salvo no apartamento. Choradeira. Lágrimas para todos os lados. Prima aparece. Pede desculpas, diz que só queria ajudar. O que você fez?, um fio de voz. Pedi para ele lhe dar um beijo. Disse que você era louca por ele.
Soluços.
Lágrimas.
Palpitações. E ele?
Ele disse que não ia dar porque está gostando muito de uma outra menina e...
Essa frase reapareceu outras tantas vezes em minha vida desde então, dita por outras pessoas, de outro jeito. Mas nenhuma foi tão dolorida e cruel quanto daquela vez. As férias passaram, as aulas recomeçaram, porém eu era outra pessoa. As bonecas não tinham mais graça. As meninas, no recreio, falavam de traquinagens enquanto eu as ouvia sem ouvir. A dor havia se instalado em meu peito como se fosse um buraco fundo e antigo. Fiquei impregnada de Mau Olhado por muito tempo. Quando ouvia as músicas do A-ha, quando assistia ao Top Gun ou aprendia a usar o batom Boka Loka, sempre me lembrava dele. Tudo era ele naquele momento: as aulas de matemática, as tardes mornas do outono, as primeiras espinhas, a curva na minha cintura, o frio na barriga, o sangue na calcinha. Imaginava que ele fazia que sim com a cabeça, me tomava pela mão, me levava até o banquinho de frente para o mar. E lá, observando o pôr-do-sol junto comigo, ele me revelava seu segredo: o beijo.
Anos depois -- e quem conta isso é a garota que fui aos 20, já nos anos 90 --, sonhei com ele. Não um dos pesadelos em que eu via o Mau Olhado e minha prima felizes, namorados, grudados. Daquela vez, o sonho foi bom. Sentados um ao lado do outro. Olhares. Sua mão toca meu braço -- e eu sinto aquela pele morna. Um beijo, então. Meu primeiro beijo. Um roçar de lábios que durou a eternidade. O fim foi abrupto, mas quebrou o feitiço. Ele voltava a ser o Leonardo e eu seguia em minha ilíada particular de Lóri, rumo a Ítaca.
Aos poucos, fui aprendendo a lidar com a dor perversa, o fogo inerte, a ardência, as negativas, o pulsar em outro lugar que não só o coração. Fui aprendendo a diferenciar o que nascia no peito do que nascia nas terminações nervosas. Entendi Drummond: amar se aprende amando.
E hoje, já nos anos 2000, a mulher de 30 na qual me tornei escuta "Amor de Índio", na voz de Milton Nascimento, e se lembra do Leonardo. Não me recordo de seu rosto, voz, porte... me recordo, sim, de seu significado e potência. Constato que não faz sentido chamar de "mau-olhado" esse sentimento tão inebriante nem o homem que o apresentou a mim. E percebo que é a emoção daquela primeira vez que busco até hoje.
Eu, caçadora de mim.
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