sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

IN MEMORIAM

I.

Eram apenas cinco da manhã, já acordada e sem sonhos, embora ainda com sono. Imediatamente antes, havia acordado dentro do sonho. O sonho parecia real e tudo aconteceu na ordem que, na realidade, aconteceria. O despertador tocou, eu rugi em reclamação, soltei um suspiro, virei para o lado direito, desliguei o despertador, bocejei, espreguicei, puxei mais o lençol, numa tentativa obscena de fugir da realidade, e abri vagarosamente os olhos. Enxerguei, porém, desde a cama, já que a porta estava aberta, o reflexo, no espelho da parede da sala, de um topo de cabeça masculina. Susto. Desconforto. Tentei gritar: quem está aí? A voz não saiu. Tentei levantar. Acordei. Os olhos mal abriam. O corpo estava pesado. O corpo estava lá, mas eu estava em outro canto e, por isso, num lapso de tempo, num átimo, houve um descompasso entre mim e meu corpo. Eu estava no sonho, meu corpo estava sonhando, na hora de juntar ambos, faltou pouco para a sincronicidade. A única diferença entre o sonho e a realidade é que a imagem do topo de cabeça masculina refletida estava nítida. Na realidade, sou míope, jamais enxergaria nitidamente se não estivesse de óculos. Não coloquei os óculos no sonho imitação da realidade. Realmente, enfim, eram cinco da manhã, e eu pensava que estava no segundo nível dos sonhos, uma vez que me despertei dentro do próprio sonho de um sonho sonhado anteriormente e que, apressada, não deixei que o sonho do andar térreo se desenrolasse. Talvez o dia que se seguira tenha sido estranho por causa disso. Faltou um sonho. Como uma cebola. Faltou a última camada. Ou melhor: como uma torta, um sanduíche. Fiquei sem cobertura. Ou foi ele quem ficou.


II.

And that’s another day
Another time and another celebration
If there is another opportunity
Give me an insight
Turn on the light
At my unknown way
I’m fine, finally, without exasperation
Finding myself in the unity
Looking for my side in this site
– Unique


III.

Risoto de arroz congelado com molho preparado por mamãe ... R$
Lata de ervilha com cenoura ... R$
Lata de sardinha cujo azeite virará, quiçá, biodiesel ... R$
Omelete de um ovo só com salsinha congelada e cebola ardida, porém fresca ... R$

Água.
Água do filtro entupido pelo pó. Grátis. O pó, grátis, a água, líquido precioso.


IV.

fila, quando eu cheguei, porém não precisei esperar muito. Apenas três reais na bolsa, pensei, mas descobri uma moeda e inteirei quatro. De nada adiantou, pois gastei dois e quarenta, passei a catraca, não precisei esperar muito e entrei no vagão, pensando que um e sessenta não dá para nada. Não precisei esperar muito e já estava na estação em que precisaria descer. Fui até o consultório na rua de trás, eram já três e seis, e nem precisei esperar muito porque


V.

— E por que você quer entender tudo?
— Por que precisa estar tudo tão mastigadinho?
— Por que você não aceita o cuspe dos pensamentos?
— Por que tem de fazer sentido sempre?
— Por que a cueca amarela do Chucky Berry – nem sei se é assim que fala, com “ck” – tem de ser cor amarela?
— Ah? Secá?


VI.
Diálogo no filme. Jesse e Celine. Ela diz para ele: “Sabe, se Deus existe, não acho que esteja em cada ser humano, mas sim no espaço entre duas pessoas.”

A cada duas pessoas, um tantinho de Deus.

Ouvi alguém perguntar: “o que é interstício?”
Responderam: “Um complemento de armistício.”
Sempre assim, vício.


VII.
Taquigrafia.
Mas, antes, momentinho de paquera. Andava depressa. Três rapazes, o do meio sorria, reconhecendo-a. Seus olhos, porém, num segundo, se desviaram para o alto e lindo rapaz da direita, que a sugou, instigante.
Datilocardia.


– MLXVI...
Teve sede, mas tomou chuva. Teve medo, mas arrancou os cabelos. Era uma vez, mas foi tantas outras.
E, quando bateu o sono, certificou-se de que estava mesmo acordada.


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