sábado, 9 de fevereiro de 2008

ERA UM GAROTO

Era um garoto que, como eu, amava os Beatles e os Rolling Stones.
Quer dizer, nem sei se amava os Rolling Stones.
Mas, certamente, amava os Beatles bem mais que eu.

Naquela cidade mineira apinhada de paulistas, eram duas as opções para o domingo de Carnaval: ouvir moda de viola ou cantar com os covers dos Beatles. O bloco carnavalesco, formado por jovens fanfarrões de latinha de cerveja na mão pulando ao som de um funk indigesto, já havia circulado pelas ruas principais durante à tarde. Deixara um rastro de cansaço, confetes e casais de adolescentes aos beijos nas esquinas pudicas, mas escuras, do local. Decidi, então, ver os Beatles. Ou melhor, uma versão mineira do quarteto de Liverpool. Um protesto contra o fim das marchinhas clássicas e a comercialização do samba. Rock neles!

Bebericava minha cerveja, quando os covers chegaram. Meninos de tudo, garotos que devem ter nascido na segunda metade da década de 80, mais novos que as músicas que iam cantar. Vestiam uma gravata engraçada – “por conta do clima de Carnaval” – e não usavam penteados românticos, como seus ídolos. Nenhuma comoção enquanto eles se ajeitavam, espremidos, no palco. Apenas uma troca de cadeiras para ter uma visão melhor do baterista, o único que fizera meu olhar se deter por alguns instantes. O único de gravata amarela e sem microfone para os vocais. Um baterista, antes de tudo. O come-quieto de uma banda. O conquistador nato. O bambambam dos pratos.

E o show começou, com som potente e envolvente. Nem me recordo da ordem das músicas. “Lucy in The Sky with Diamonds”, “All you need is love”... Um click. Baladas de sinos, talvez. Não sei quando, ao certo, aconteceu. Se foi quando passei da cerveja às caipirinhas de cachaça. Se foi quando eles cantaram “Yesterday” ou “From me to you”. Meu olhar se cansou de buscar o baterista porque foi irresistivelmente atraído pelo vocalista e baixista. Cantava com a alma esse menino. Alguém poderia enxergar só caras e bocas de um cover de Paul McCartney. Eu via alma, sorte minha. Pena que ele estava de óculos escuros, estratégicos óculos escuros de aros brancos, que não o deixavam se aproximar de mim. Olhos nos olhos, quero ver o que você faz.

“I want to hold your hand”.
E, então, ele tirou os óculos.
E cantou com mais alma. E seus olhos verdes quase lacrimejavam pela vitória. Ele vivia cada verso de cada música. Seu rosto era de prazer, havia um gozo implícito e explícito. Suor misturava-se com lábios e os olhos verdes, com expressões orgásticas. Eu já nem sabia que música ouvia. A música era apenas uma moldura para o nosso – o meu e o dele – momento de intimidade. Segure minha mão, ele dizia. Ele se entregava. Eu, hipnotizada, murmurava refrões difusos. Ele, com a face de quem faz amor, quase chorava. Era lindo. Era lindo vê-lo lindo em puro delírio de prazer. Ele fazia amor... Me deixando participar de seu orgasmo. Me deixando vasculhar sua alma, seus olhos, seu rosto, seu coração naquele instante. Meu Deus. Não tínhamos ontem nem amanhã, antes ou depois, havia só o agora, aquele agora, Beatles repercutindo em sua voz e em seu dedilhar de baixo, nos meus ouvidos e no meu pulsar cá embaixo.
“Help”.

E durou muito tempo, foi quase infinito. Eu só sorrisos e olhos verdes, ele só gozo e entrega, uma relação das mais puras e também das mais delicadas. Porque tinha muita alma, porque tínhamos ambos muita alma, porque éramos almas puras, puras almas. Em instante de devoção e contemplação. Silêncio e expressão. Beatles.

“Hello, goodbye”.
E então os garotos de Liverpouso (Alegre, sul de Minas) pararam de tocar. Intervalo, fim do show, o que tenha sido. Dispersão. Enxuga o suor, bebe um copo de cerveja, gatinhas esperando no fundo do salão – meninos que tocam não ficam sós. Ele, meu parceiro de delírios, circulava pelas mesas, recuperando-se da entrega ininterrupta. Sorria. Cumprimentava ou era cumprimentado. Transpirava. Um menino, gordinho e despenteado, um menino como qualquer outro menino. “Let it be”. Quando passou por mim, sem me olhar, toquei-o nos ombros. Parabéns. Obrigado, valeu, olhos baixos. Timidez? Desinteresse? Nada de mais. De novo o conto “Tentação”, de Clarice Lispector? Suspiros. A garota ruiva e o cão bassê também ruivo...
“The long and winding road”, que eles não tocaram.
Que ele não cantou.
Talvez porque o instante não volta. E se trata de instantes: aquele acorde, aquele suor, aquela voz que sai daquele jeito e cativa um ouvido e desencadeia um pulsar, dois, três.

Levei um tempo para compreender o que havia acontecido.
Quando fui embora, espiei a mesa em que o quarteto, suas gatinhas e amigos descansavam e sorviam bebidinhas. Ele estava lá, olhar aguado, um tanto triste, suado, garoto de camiseta preta, cabelo desgrenhado, ares de pós-sexo. Não sei se sua namorada desconfiara de algo. Se ela tinha idéia da capacidade de amar daquele menino. Da entrega. Tampouco sei se ele compreendeu a dimensão da troca. Tem coisas que vêm só com a maturidade.

Sei que era um garoto que, como eu, amava. Ele amava os Beatles. Eu amo os garotos como ele.
Bis: “Let it be”.

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