segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Guetos. (Ou: histórias que precisam ser reescritas).


(Muro construído por Israel ao redor de Belém, Palestina, 2007)


Cano exposto na parede da sala, meus próprios encanamentos expostos para mim mesma. E um deles dá direto na minha participação como ser humano na história da humanidade.

Guetos. Fui procurar no dicionário. Aurélio. Ih, ultrapassado, é o que dizem sobre ele. “Outrora, na Itália, bairro onde os judeus eram forçados a morar; (por ext.) bairro de judeus em qualquer cidade.” Aurélio avisa: trata-se de um substantivo masculino. Isto é, leve em conta a presença fálica do falo. Falo pode ser falível.

Procuro na história, mas quem conta a história? Os vencedores, é o que dizem. A história traz histórias doloridíssimas de vidas confinadas, podadas e perdidas nos guetos que vão além dos sentidos do Aurélio. Alemanha, Polônia, outros países. Seus bairros eram transformados em prisões – e outros cantos da cidade eram transformados em seus bairros de mentira para depois também se transformarem em prisões. Então, Aurélio, não use o pronome “seus” no sentido de “deles” nem em sentido possessivo algum. Não havia pronomes, nem pessoais nem possessivos, nos guetos desde o ponto de vista judeu. Um garoto desenhava, e desenhava bem, e tinha sonhos, e sonhava bem, mas sua vida foi ceifada de modo inclemente como a de tantos outros garotos. Em 2003, um astronauta levou seus desenhos, desenhos que sobreviveram aos guetos, aos campos de concentração, ao holocausto! Mas a nave explodiu. Não, Aurélio, não se trata de invenção ou de figura de linguagem.

Quando eu era adolescente, ou criança,... – cito de cabeça, não vou checar as informações para que sejam sempre precisas. Afinal, vivemos de forma imprecisa e falamos recorrendo à memória – e não à enciclopédia ou ao dicionário (perdão, Aurélio), de papel ou eletrônicos. Confio em minha memória, então, que reconstitua como quiser. – ..., aboliram a palavra estória. Disseram que, a partir daquela data, só história. E história, com minúscula, significaria a minha ou a sua ou a do menino. História, com maiúscula, significaria a narrativa dos grandes. Dos vitoriosos. Dos maravilhosos. Não haveria mais substantivo para estórias. Narrativas ficcionais, inventadas, recriadas. Elas também entrariam nas minúsculas: histórias e histórias. Os relatos de minha vida e os relatos que minha vida inventa.

Sempre achei que devesse ser o contrário. História, com maiúscula, a minha, a sua, a do menino. As que inventamos com nossas vidas, pois essas são genuínas e fiéis. E história, com minúscula, essa que os grandes, os vitoriosos e os maravilhosos protagonizam e que somos obrigados a saber – muitas vezes, ignorando as nossas próprias. Um dia me contaram de um garoto tido como gênio. Sabia tudo da Revolução Industrial Inglesa: personagens, datas, detalhes. Mas ignorava quem fosse seu pai, ou por que seu sobrenome era grafado com ç enquanto o de sua mãe era com s. Enfim.

Quando a humanidade dá descarga, eu ouço a água correndo nos meus encanamentos. Não tenho controle sobre essa água, mas imagino que tenho alguma responsabilidade pelo fato de ter canos. Não pedi os canos, eles simplesmente fazem parte de meu entorno.

Guetos. A História não teve mais nada a me dizer. Mas não sosseguei. O cano vaza, sabe, e eu quis procurar a razão. Ou a vazão.

Aurélio não diz mais nada. Ninguém diz nada. Bósnia, Sarajevo, Grbavica. Territórios Palestinos, Gaza ou Belém, Dheisheh. Armas, muros, check-points. Chechênia, Ruanda. Nomes perdidos numa nota de rodapé no jornal. Entre ontem e hoje, sábado e domingo, nasceu um país. Kosovo. Dias históricos – com minúsculas, segundo os poderosos, vitoriosos e grandiosos. Num curto período, darão a descarga e tudo será esquecido. Mais uma vez esquecido. Mas eu ouço o barulho, lembrem-se, e vejo o vazamento. Eu não consigo esquecer, porque me impregnou.

Por que ninguém me fala dos guetos de hoje? E dos outros campos de concentração que também pipocaram por aí e foram preenchidos com armênios, bósnios, chechenos e africanos de várias etnias (injusto escolher uma)? Por que o Aurélio é tão obsoleto e História se limita a nos ensinar a Revolução Francesa?

Pausa: talvez pelos mesmos motivos pelos quais “O Caçador de Pipas” termine antes da invasão norte-americana. Talvez porque o autor de “O Caçador de Pipas” seja menos o fulano que assina o livro, o fulano que assina o roteiro. O autor, na verdade, é uma corrente de pensamento, uma mentalidade, um status quo, uma forma de olhar o mundo: há que se contar histórias para aliviar o peso da História e, assim, saciar as gentes. As gentes, então, se emocionam com as histórias – verdadeiras mas tão reformuladas e reconstituídas e retrabalhadas e retalhadas – e assim se esquecem das próprias e, principalmente, se esquecem da nossa. Daquela que é minha, sua, dele, do garoto que desenhava, do astronauta que morreu, dos bósnios, dos palestinos, dos chechenos, dos armênios, dos kosovares, dos africanos todos, de cada criança brasileira que não nasce – apenas aparece no mundo –, do próprio autor carne-e-osso de “O Caçador de Pipas”. O motor de tal corrente de pensamento, de tal mentalidade não sai de um lugar específico: Estados Unidos, Rússia, China, França, Inglaterra, Israel... Está espalhado, tapando os canos com argamassa (mas mantendo a ferrugem interna), aprisionando as gentes num mar de ignorância com verniz de informação.

Assim como o caçador de pipas das mentes mesmíticas, ou desmentalizadas, os guetos da História (insisto no equívoco dessa maiúscula) pararam no holocausto. O Aurélio é um exemplo. Mas as histórias continuam a vazar ininterruptamente, apesar das argamassas, apesar do silêncio e da cegueira, apesar.

Leio que o cineasta polonês Andrzej Wajda mexeu numa ferida chamada Katyn. Eu, ignorante, nunca ouvira falar. No começo dos anos 40, milhares de oficiais militares e intelectuais poloneses foram mortos pelo Exército Vermelho na floresta de Katyn, numa manobra de Stálin para avançar sobre a Polônia. Wadja afirma que realizar tal filme foi uma experiência muito íntima e dolorosa, mas necessária, pois seu pai foi um dos oficiais mortos. Uma história que a História não me contou. E, como comenta bem o crítico Merten, “ainda existem histórias a ser reescritas”. E quantas.

É isso, portanto. Histórias maiúsculas daquilo que vaza dos canos rotos da equivocada História da vitória: os guetos, por exemplo. Esses que os fálicos falíveis usam para confinar, humilhar e martirizar seus dominados. Quero saber o quanto sofreram os bósnios, os chechenos. Se lá também havia garotos que sabiam desenhar. Quero entender. Esses guetos sobre os quais o Aurélio jamais falará.

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