sábado, 29 de dezembro de 2007

Calor. Daqueles. Um dia.

Daqueles dias quentes em que os corpos não vencem naturalmente a pressão do ar. Daqueles dias, portanto. Quentes. Corpos inertes e imóveis, mas corpos. E corpos ardem no calor. Há ainda a pressão. Dias de uma leveza infinita e uma pressão intensa, imensa. Dias de corpos ardentes sob pressão. Dias quentes de intensidade. Dias quase imóveis. Dias, daqueles.
Nesse dia, um senhor de mais de 90 anos morreu. Sentiu falta de ar, pediu a pastilha de controle da pressão ao neto, foi repousar. Lá pelas cinco da tarde, chamaram-no para um café com biscoito de povilho. Ele estava inerte, mas ainda quente. Quase nenhuma ruga na colcha sobre a cama, que ele não tirou antes de deitar. No mesmo dia, uma jovem de vinte e tantos e um homem de quase quarenta se amaram pela primeira vez. "Se amaram" é eufemismo. Olhos castanhos-esverdeados e cabelos grisalhos misturando-se a suor e sonho. Depois do sexo, inertes os dois. O ardor foi vencido pelo calor. Fiquemos assim, ele pediu, suado e pesado, estendido sobre o lençol amarrotado, mãos afagando os cabelos castanhos. Também naquele dia uma mãe caiu de febre na cama. Literalmente. Tonta e ardente, tentava tirar a caixinha de remédios do topo do armário (escondida para o filho caçula não mexer e a filha mais velha não se automedicar). Tropeçou no sapato de salto esquecido por ali. Caiu em diagonal, que sorte, sobre o colchão -- e do lado do marido. Lá ficou, inerte, febril e delirante, ardendo de tontura e de um inusitado desejo que surgiu ao sentir o cheiro do marido na roupa de cama. Igualmente naquele dia, uma senhora gorda decidiu tirar uma soneca à tarde e, fraca diante do calor e da pressão do ar, sucumbiu a sonos profundos. Ela teria um compromisso às 15h, mas não colocou o alarme. A campainha tocou, era o porteiro com um Sedex na mão, porém ela nem ouviu. A máquina de lavar terminou seu trabalho, a cortina da sala derrubou o vaso de violeta sobre a mesinha lateral e folhas de papel voaram pelo quarto. No entanto, inerte e entregue à ardência de seu sono, ela se manteve isolada do mundo dos vivos. Foi o dia também em que o time de futebol amador em que o garoto jogava perdeu uma partida importante, e ele entrou em casa bufando, lançou longe os sapatos, nem trocou de roupa ou tomou banho, suado, trancou a porta do quarto, não deu ouvidos à mãe, ligou o som no último volume e se estatelou na cama, ainda quente de todos os movimentos, ainda quente de raiva, ardendo. Manteve-se imóvel, quase sem respirar, repassando mais de 90 minutos de dribles, passes e chutes por incontáveis instantes, quem sabe até horas. Naquele dia então, a moça grávida sentou-se no sofá porque não suportava ficar em pé nem mais um minuto e começou a sentir as contrações fortíssimas. Deitada, não tinha forças nem vontade para buscar o celular com as mãos e chamar a mãe, o marido, a vizinha. Ardia de dor, pesada não se mexia, o ar denso entrava em seus pulmões a golfadas. Talvez tenha dormido, talvez tenha desmaiado, não se lembra bem, mas abriu os olhos e um bebê estava pendurado nas mãos de um médico suado, ofegante. As enfermeiras também suadas e ofegantes. Ao lado, numa cadeira, parecendo um cirurgião, com uniforme verde-claro, estava o marido. Suado, dormindo, imóvel embora roncasse, completamente entregue a um recém-delírio paterno.
Num daqueles dias em que o ar dá as cartas no jogo do ir-e-vir e torna-se fardo pesado para a excessiva leveza das gentes, das gentes que são ou estão leves, os corpos ardem, ardem de todos os jeitos e com todas as sensações, presos a um tempo e a um espaço que jamais lhes pertencerá. Daqueles era dia. Dia de muito calor. Muito.

Um comentário:

Ana Palíndromo disse...

foi naquele dia em que o ar estava seco e ardente, que uma menina , ficou por instantes estacionada em frente ao computador...
ela estava por instantes presas ao mundo de alguém que descrevia com delicadeza vários mundos, várias possibilidades...