segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Paredes verdes

E, logo cedo, num instante máximo de rebeldia, lancei-me com fúria contra as paredes verdes do meu quarto com umas quantas pinceladas de uma pachorrenta e meditativa tinta branca que encontrei ao acaso, num dia de prantos.

Manchava conscientemente aquelas paredes verdes com o ardor de uma fanática buscando o instante máximo, o orgasmo anímico, a resposta para as inquietudes filosóficas que vieram à tona com a rosa dos ventos, dos tempos, dos inventos.

Quantas, quantas, quanto, quanto, só de exclamar eu já me cansava afetivamente.

Pausa: ele me liga, histérico, descrevendo a atormentada noite de ontem, os vizinhos bêbados, a ex-mulher rançosa, o torpor familiar, a desalinhada entrevista de emprego. Histérico justifica-se pela negativa que não chega a me dar. Porque eu não digo nada, apenas comento: as paredes já não estão verdes. E ele: falo com você depois.

Havia fome, havia desejo, havia raiva, havia ainda os ecos daquela ausência inclementemente vivida em todos os recôncavos desse corpo que não para de me pertencer mais, mais, mais e mais. Havia haver, havia minha existência explodindo ansiosa e febril por meio das pinceladas sujas e puras daquele grito silencioso e inconcluso nas paredes verdes.

Para que, para que, para quando, para quando, só de exclamar eu já me respondia.

Pausa: um tomate rola abrupto de uma prateleira da geladeira e, fascinado com a gravidade, lança-se ao chão. Por um momento, esqueço as paredes, as sedes, as redes de salvação, e admiro aquele vermelho insólito e intacto me olhando, espantado, desde os baixos do móvel da cozinha. Se esse vermelho me amasse, minhas feridas não necessitariam desinfetante.

Ainda sinto a presença de todos os fantasmas nas esquinas e nos bancos dessa cidade, prestes a saírem por alguma porta e pedirem uma cerveja justamente naquele bar a que vou. Ainda sinto a presença de minha morte doída e oculta, pública e íntima na mesma medida, uma espécie de expiação e crucificação. Ainda dilacero o esquecimento ligeiro deles, seu desdém, sua leveza superficial e banal, e os lanço com saliva e tinta nas paredes verdes, pincelando, pincelando, pincelando até que os poros de concreto sangrem. Sangrem lembranças, sangrem perdões, sangrem ranhuras.

Pausa: o cheiro me enlouquece, eu cheiro tudo, a tinta, meu ranço, minha saudade, minhas esperanças, as parcas explicações que passaram por baixo da porta, o cheiro do almoço do vizinho, o cheiro da roupa lavada da vizinha, o cheiro da histeria telefônica dele, o cheiro do egoísmo torpe do outro ele, o cheiro da merda alheia, o cheiro do perfume alheio. Eu cheiro minha fé, minha tão pequena e grande fé, cheiro minha humanidade, cheiro o sangue que escorre de minhas gengivas e também o que limpa meu útero, cheiro o clamor que brota de minhas entranhas e de minhas intimidades, cheiro meu medo e minha coragem.

Cheiro o verde dessas paredes, cheiro o branco que as invade, sinto enjoo, sinto vontade de chorar todas as chuvas dessa parte do mundo, sinto amor, muito amor.

Que aqui se registre que meus sentidos estão em pleno funcionamento.
E que esse verde agora sujo das paredes, esse verde imperfeito, arranhado de branco e de dúvidas, esse verde feito humano, mulher e brasileiro, esse verde agora deixa essas paredes e vem habitar o vácuo, preenchendo a solidão que habita meu ser e faz brotar cravos onde deviam nascer sorrisos.
Que aqui se registre esse dia de verão em que o verde corrompido daquelas paredes verdes se transformou em mim mesma. No dia em que.

Era já noite e liguei o ventilador para me perdoar de meus pecados e secar meus molhados, encharcados, entupidos à luz das estrelas e da paz.

Um comentário:

Débora Didonê disse...

uma de minhas escritoras preferidas. de verdade.