segunda-feira, 14 de junho de 2010

pequetita

(dos tempos de criança, mfv)

Era pequena, tinha bonecas, mas gostava mesmo de brincar com cotonetes. Ou o genérico bastonetes de algodão, tanto faz. O careca era o príncipe; a de cabelo comprido, a princesa. Às vezes, com o batom de mamãe, tornava a criada ruiva. Passava pasta no outro, fazia o irmão punk da alteza. Se esfregasse o algodãozinho no pó compacto, logo criava a moça má, que queria roubar o príncipe da princesa. O lago, formado por uma poça de água misturada a talco no tampo de vidro da mesinha da sala de estar, era turvo e tenebroso. Brincos e pulseiras faziam as plantas, as pedras, os pássaros. Já havia melancolia ali, naquela singela brincadeira de criança. Por mais felizes que as histórias terminassem, meus personagens nunca estavam 100% felizes. (Um moço me pergunta hoje: é possível ser 100% feliz? Uma moça me pergunta hoje: você consegue ser 100% alguma coisa?) Mas meus singelos bastonetes de algodão tampouco eram 100% infelizes. Eram melancólicos e solitários, ainda que a princesa ficasse com o príncipe no final, que a criada ruiva quebrasse padrões e se casasse com o punk, que a moça má virasse boa e criasse patinhos no lago turvo. Quando meus cotonetes se davam conta de que não passavam de bastonetes de algodão na mão de uma criança, bastonetes alijados de sua função primordial – limpar orelhas –, quando se viam sonhados, personificando personagens fictícios, davam-se conta de sua miséria coisífica, de sua pequenez no universo de existências tão imensas e importantes, de sua inutilidade, de seu carisma passageiro. Porque essas histórias sempre tinham um fim, o fim sempre estava próximo: é hora de ir à escola, (meu nome). (Meu apelido), jogue essas coisinhas no lixo, lave a mão e venha almoçar. E eu, naquela altura do campeonato soltando um suspiro longo, longo, fundo, fundo, mais melancólica e solitária que aqueles meros bastonetes sujos já sem condições de limpar a cera do ouvido, me dava conta – com as boas limitações de uma mente e um coraçãozinho infantis – de que eu era apenas uma criança que cresceria um dia, teria dúvidas filosóficas angustiantes, tais e quais às dos cotonetes, que ainda encontraria muitos laguinhos turvos pela frente e que talvez vivesse aquelas tais histórias de amor, sem a certeza de que terminariam bem.

2 comentários:

NelsonMP disse...

Acho que você não viu quando mostrei que está foto serviria para ilustrar a historinha do soldadinho de chumbo e da bailarina de papel.
Te recomendo um excelente livro que acabei de ler, ele traz muita luz e sabedoria ancestrais a respeito de relacionamentos: "O Espírito da Intimidade" da africana Sobonfu Somé.

Giovana disse...

Olá, amei seu blog é mto lindo e sempre que der vou estar aqui!
Visite o meu tb, será um prazer!
www.e-tudomeu.blogspot.com

Bjokas da Pequetita