Ela era a mulher da saia rodada e florida, do sorriso no rosto, do belo buquê de gérberas cor de rosa nas mãos em pleno lusco-fusco. Era ela.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008
PPqqmmmęęę
Excitante.
A imaginação ia longe.
ę ę ę ę ę ę ę ę ę ę <<>>... ah...
O encanto vinha do fato de que ele escrevia muito bem. PPqqmmmęęę encantava as palavras. As mulheres. As mulheres com as palavras. As palavras com as mulheres. Suas linhas pareciam laços que puxavam qualquer cintura feminina para perto. Seus parágrafos tinham vigor, bossa, quase nenhum pudor. O poder de seus textos era tão arrebatador que sempre nos sentíamos agraciadas – em vez de buquê de flores, palavras. Do vinho tinto, palavras. Do elogio, palavras. Do chamego, palavras. E os benditos sinais de pontuação eram seus aliados. Co-var-di-a!
Macho que se preza espalha-se pelo mundo. Ele se espalhava. Em mensagens belas e ternas para muitas. Para quase todas que podia.
ę ę ę ę ę ę ę ę ę ę ę ę ... ... ... ~^~ ... ah ...
PPqqmmmęęę tinha o dom. E o talento, porque ele se esmerava. Quiçá a vocação! E sabia das coisas. Dava-se sempre a conhecer antes por escrito. Iniciava uma troca de mensagens. Sabia que suas frases irradiavam perfume – lançava a isca. E, conforme a empolgação da destinatária crescia, maior o esmero na palavra certa, no tamanho exato da frase, no sinal de pontuação. Torneira aberta para as sensíveis, e-mails longos e fluidos. Concisão e objetividade para as práticas e desconfiadas. Sacanagem para as sacanas. Pulava linhas quando escrevia para as esportistas. Tirava e punha a vírgula depois do “oi” e antes do nome da destinatária como se brincasse com marionetes. Subvertia a ortografia quando queria fingir humildade. Jogava, no meio do texto, seu “<<>>” sedutor. Abusava das maiúsculas quando queria ser macho. QUERIDA! Eu REALMENTE estou adorando NOSSO papo.
ę ę ę ... ah...
Papo virtual. Nem nos dávamos conta, sonhávamos com ele falando ao nosso ouvido aquelas frases tão cheias de efeito. Completamente mulheres: a aparência nem importa. Temos tanto em comum. Acho que estou apaixonada. Líamos nas entrelinhas: estou morrendo de tesão por você. E morríamos de tesão por ele. Dia ou outro, ele não escrevia nada. O silêncio nos dilacerava, a nós, já tão adictas. Sofríamos.
Sofríamos, mas continuávamos com um baita tesão.
!!!
E então, ao chegar o momento do contato, das palavras ditas e sentidas e mastigadas e inaladas e sussurradas e cantadas e lambidas e sugadas e gozadas, ele, que já tinha a presa nas mãos, e com pressa, subitamente fingia encontrar o ombro mais amigo do mundo e, em gomos de expressões sem charme e estilisticamente tão banais, desabava choramingos sobre um amor mal-sucedido, um questão interna tão inquietante, a falta de tempo, o novo trabalho, as exigências dessa vida urbana tão sempre urgente e intransigente. PPqqmmmęęę parecia nunca levar adiante suas conquistas. Seu prazer terminava quando ele encontrava a mulher de carne e osso, já não mais a destinatária misteriosa a quem ele tinha de conquistar escrevendo. No fundo, era esse seu delírio: controlar as fantasias alheias, a imaginação alheia, por meio das palavras. Da escrita. De seu dom, talento, vocação para a ordenança quase perfeita dos parágrafos.
Às vezes, PPqqmmmęęę, à revelia, se empolgava com alguma de suas presas. Tornava-se agressivo. Era duro. Seco. Engolia palavras e cuspia palavrões simulando descaso. Escolhia as frases mais cortantes. E manipulava o silêncio de forma a punir aquela petulante que o fizera sentir. Ou imaginar. Ou fantasiar. Quem manda aqui sou eu, sua idiota.
PPqqmmmęęę já ficou manjado. Nós, quem nem nos conhecíamos, descobrimos que fomos vítimas dos mesmos truques. Das mesmas armas. Das palavras escritas dele. Das mensagens tão bem encadeadas e cativantes dele. De seu veneno verborrágico. Da perversão secreta de PPqqmmmęęę.
Nos disseram que um dia ele foi pego de surpresa.
Que chegou num encontro de amigos, todo cheio de frescor e sensualidade, desarmado e inocente, sem qualquer e-mail ou qualquer destinatária, e ali, de corpo e alma presentes, com as mãos impossibilitadas de construir laços falsos de afetos mais falsos ainda, ele foi fisgado. Ele foi fisgado pelas palavras doces e sinceras e enérgicas de uma moça – nem sabemos se ela chegou a falá-las ou se apenas as demonstrou. Ele se apaixonou perdidamente. Sofreu amargamente. Frustrou-se enfaticamente.
pdpdpd ...
Hoje PPqqmmmęęę quer nem sabe o quê. Continua escrevendo e atraindo presas, mas perdeu-se em suas próprias linhas. Achamos que ele anda acreditando nas próprias mentiras e fica se alimentando de reticências para não chorar. Agora, parece, sente medo de <<>>. Termo proibido. Quase um pecado, quase expiação.
Achamos que encontramos uma definição: PPqqmmmęęę não é um coitado nem um vilão. Nós, por exemplo, não sentimos pena. Ou saudade. Não, isso não. PPqqmmmęęę é um quase. E isso é muito triste.
P.S.: O pior é que há muitos, muitos como ele. Quanto aos demais, pior, nem sabem escrever.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
saudade, saudade
Vou sentir saudade.
Observávamos nuvens e formigas, e ele veio falar em saudade. Quis mudar de assunto. Mas o reflexo de minha mão ajeitando o cabelo trouxe saudade a mim também.
É por isso que não deixamos o casulo.
Falávamos de nuvens e de formigas, não de borboletas. Mas ele entendeu.
Medo de não haver reencontro...
Pois é.
Realmente a gente não tem o menor controle sobre isso. Suspiro. Sonho. Brevidade. Beijinhos. A padaria inteira.
Ele riu, eu sorri, ainda ajeitando o cabelo. O problema não eram os fios, eram as mãos. Elas queriam tocar as mãos dele. Eu me continha e agora falava de beija-flor.
Beija-flor, borboleta... Você não acha que eles têm algo em comum? Estão em busca das flores, sempre. Não importa se o cenário é horrível. Não importa se o pólen parece contaminado. Não importa se eles mesmos pareçam patéticos buscando flores quando as atenções estão voltadas para os esgotos, os escrotos, os arrotos, os intestinos rotos.
O olhar dele disse tudo naquele instante.
Minhas mãos estavam na face dele.
Também vou sentir saudade.
Não fale nada.
Como era mesmo a padaria inteira?
Ri, ele sorriu.
Suspiro...
... brevidade...
... sonhos...
... e beijinhos!
Confesso: tenho medo de não vê-la nunca mais. Presencialmente, quero dizer, não pela TV ou via webcam, ou por meio de seus emails, textos...
Um medo que eu também tinha.
Mas...
Não fale nada.
Fazia tanto sentido, tanto, tanto, tanto.
A gente tem medo, no fundo, de que perca o sentido. Mais do que não haver reencontro, o medo é de que o sentido intrínseco do encontro primeiro arrefeça e que todo aquele sentimento vire uma lembrança. Doce, mas lembrança. Um adjetivo, não mais um substantivo. E que venha o pensamento: não faria sentido hoje.
Nuvens. Formigas. Borboletas. Beija-flores. Flores. Flores e a rima.
Música romântica em língua outra, doce e pólen.
Na padaria:
Um suspiro.
Um sonho.
Brevidade.
Beijinhos?
Não, Maria-mole.
Já lhe disseram que lágrimas são gotas de mar com as quais Deus nos presenteia sempre?
Sorri.
Não fale nada.
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008
Mau Olhado, meu primeiro amor
De repente, sem qualquer aviso. Chegou suave, continuou dilacerante e voraz, me transtornou e transformou. Veio antes da menstruação, antes mesmo das aborrecidas espinhas, antes da compreensão prática de minhas vias e terminações nervosas. Puro sentimento sangüíneo, substantivo e adjetivo, cheio de ilusões cinzentas e pontadas quase fatais. Não entendia Drummond naquela época, mas descobri por minha conta o fogo inerte, amor-sacrifício lento e augusto, seus disfarces, seus calores. Começou no mar, como também eu comecei, e diluiu-se no infinito.
Foi numa manhã ensolarada de janeiro. Praia. Eu, criança de tudo, ainda tinha bonecas embora tivesse também peitinhos e pelinhos. Me divertia com uma prima nas águas mornas daquele mar cheio de promessas, embora eu não soubessse disso (ainda). A vida era doce, inofensiva, e meu coração virgem soava modesto em seus anseios: aproveitar a delícia daquela liberdade que parecia tão imensa. Ponto. A prima chamava minha atenção para os meninos ao redor. Eu, míope e inexperiente, os olhava sem entusiasmo. E daí? Passou muito tempo até que eu notasse, entre uma onda e outra, um garoto magro, cabelos escuros, camiseta branca e prancha azul. Esse garoto. Ele pegava uma onda, outra, e mais outra. E nos olhava, maroto. Chamei a atenção da minha prima: que esquisito, o menino não pára de nos olhar. E aquele sentimento estranho, indecifrável, intruso em meu coração de criança. O que está me acontecendo? Sugeri à prima que voltássemos ao guarda-sol. Por causa do menino?, ela perguntou. Eu, na verdade, queria ficar, mas, de tanto querer ficar, decidi sair. Deixávamos o mar, quando ele cruzou conosco. Sorriu. Olhou para a prima, que olhou para ele. Eu corei. Olha por onde anda!, ela disse. Quem não olhou fui eu. Pisei em arestas de cascalho que se encravaram no meu pé e fizeram doer até a alma. Culpa do Mau Olhado. Sim, apelidamos o menino de Mau Olhado.
Nos dias seguintes, dissimulada, procurava o Mau Olhado entre os guarda-sóis. Quando o via, ficava exultante e palpitante. Sonhava com ele, imaginava que eu lhe sorria, imaginava meus lábios virgens sendo beijados pelos lábios dele. Eu nem sabia como isso se daria, mas a novidade era boa e bonita. Meu segredo: aquele sentimento esquisito e intruso era meu segredo. As palpitações, o calor, a tremedeira, a ansiedade em vê-lo, os suspiros ininterruptos... Não quero mais boneca. Quero o Mau Olhado. Eu discordava de minha prima, quando ela elogiava meninos diversos: olha que garoto lindo! É nada, eu dizia. Ao que ela sempre retrucava: o Mau Olhado é ridículo. Meu segredo estava exposto na minha cara. Inútil disfarçar. Suspirei.
Conhecemos outros tantos meninos, a prima até beijou alguns deles (era o início da modalidade "ficar", naqueles idos da década dos 80, mas eu ainda sonhava em "namorar"), e eu só suspirava por um, fiel de tudo, leal até o calcanhar machucado pelo cascalho. Os dias passavam, a praia, as ondas, cadê a prancha azul? Até que conhecemos uns amigos do Mau Olhado e, aos poucos, nos aproximamos dele. Meu peito doía, eu corava e tremia, suava, gaguejava, aquela dor perversa de tão límpida, insuportável de tão intensa. Ele tinha olhos para a prima. Talvez nem tenha notado a outra menina, encolhida por fora, implodida por dentro.
Um dia, sempre há um dia nas histórias, topamos com ele e amigos na saleta do prédio. O papo até que estava engraçadinho, eu me esforçava para não parecer invisível, a timidez imensa, a inexperiência, a falta de jeito, a fala não saía, de que adiantava tirar 10 nas provas se meu cérebro não funcionava naquele momento? Câmera lenta: minha prima puxa Mau Olhado de lado. Eles conversam e me olham. Tramam algo. Estou suando frio, não escuto mais nada. Ela sorri, ele me olha, ele faz sinal de negativo com a cabeça. Corta. Estou no elevador, subindo para o apartamento. Saí correndo? Saí tremendo? Inventei uma desculpa qualquer? Explodi? Não sei, não me lembro. Estou a salvo no apartamento. Choradeira. Lágrimas para todos os lados. Prima aparece. Pede desculpas, diz que só queria ajudar. O que você fez?, um fio de voz. Pedi para ele lhe dar um beijo. Disse que você era louca por ele.
Soluços.
Lágrimas.
Palpitações. E ele?
Ele disse que não ia dar porque está gostando muito de uma outra menina e...
Essa frase reapareceu outras tantas vezes em minha vida desde então, dita por outras pessoas, de outro jeito. Mas nenhuma foi tão dolorida e cruel quanto daquela vez. As férias passaram, as aulas recomeçaram, porém eu era outra pessoa. As bonecas não tinham mais graça. As meninas, no recreio, falavam de traquinagens enquanto eu as ouvia sem ouvir. A dor havia se instalado em meu peito como se fosse um buraco fundo e antigo. Fiquei impregnada de Mau Olhado por muito tempo. Quando ouvia as músicas do A-ha, quando assistia ao Top Gun ou aprendia a usar o batom Boka Loka, sempre me lembrava dele. Tudo era ele naquele momento: as aulas de matemática, as tardes mornas do outono, as primeiras espinhas, a curva na minha cintura, o frio na barriga, o sangue na calcinha. Imaginava que ele fazia que sim com a cabeça, me tomava pela mão, me levava até o banquinho de frente para o mar. E lá, observando o pôr-do-sol junto comigo, ele me revelava seu segredo: o beijo.
Anos depois -- e quem conta isso é a garota que fui aos 20, já nos anos 90 --, sonhei com ele. Não um dos pesadelos em que eu via o Mau Olhado e minha prima felizes, namorados, grudados. Daquela vez, o sonho foi bom. Sentados um ao lado do outro. Olhares. Sua mão toca meu braço -- e eu sinto aquela pele morna. Um beijo, então. Meu primeiro beijo. Um roçar de lábios que durou a eternidade. O fim foi abrupto, mas quebrou o feitiço. Ele voltava a ser o Leonardo e eu seguia em minha ilíada particular de Lóri, rumo a Ítaca.
Aos poucos, fui aprendendo a lidar com a dor perversa, o fogo inerte, a ardência, as negativas, o pulsar em outro lugar que não só o coração. Fui aprendendo a diferenciar o que nascia no peito do que nascia nas terminações nervosas. Entendi Drummond: amar se aprende amando.
E hoje, já nos anos 2000, a mulher de 30 na qual me tornei escuta "Amor de Índio", na voz de Milton Nascimento, e se lembra do Leonardo. Não me recordo de seu rosto, voz, porte... me recordo, sim, de seu significado e potência. Constato que não faz sentido chamar de "mau-olhado" esse sentimento tão inebriante nem o homem que o apresentou a mim. E percebo que é a emoção daquela primeira vez que busco até hoje.
Eu, caçadora de mim.
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008
Jules & Jim
— I miss Meryem, said Jules.
Jim didn’t answer. He kept looking through the window, maybe trying to understand what the real figures were, and what reflexes were.
— I thought she would go back, Jules continued to talk.
“She will”, Jim thought, but he didn’t say that. Because he knew everything in life was flow, including all those feelings Meryem had awoke into both of them. One day, they – the feelings – would become a strong river that would bring her back to them. She was a kind of bird, he realized, she needed to fly far away. One day, she would back to her nest. A nest that she hasn’t had yet, but he would want to create one to her. He wanted to tell that to Jules. Could he understand that?
— We have our nest, it was the only thing that Jim told Jules.
Meryem celebrated the sunny days, the shiny and warm sunny days. Sun was her great partner in life, filling her up with energy and hope. Rain was also amazing – but it was always raining into her. So she preferred sun outside to avoid being wet all the time. Meryem enjoyed flying. When she was a little girl, she played with pencils and drawings, with fantasies and short stories, with characters and words. At that time, as she was still very little and couldn’t fly, she lived intensively her other life, that invisible one. When she grew up, she found a great pleasure of keeping playing with words, stories and colors, but she also found two little wings on her back. She found out she was able to fly. Flying and looking for new stories to put them in her own words. This would be her way of giving the world more colors.
Meryem also missed Jules. He also liked to feel life – experiences, other bodies, other lips, his fantasies, his words – concretely, it meant, feel life with his hands, his body, his pores, his touch, the whole himself – as she did. He loved to experience his own fantasies – the ideal woman who had appeared suddenly in front of him, the ideal guy who made him, Jules, to deal with his manhood and his femininity as a man, the ideal and fantastic tour around the world to make peace possible, the ideal this, the ideal that. Meryem was a bit of Jules – his sensual and sentimental way of dealing with life fascinated her. And Jules liked Meryem because he could feel himself with her. He could fly – and he always forgot this possibility when he was alone, lonely, lost in his too old pain.
Meryem also missed Jim, specially when she looked through the window trying to identify what was real and what was imagination. Jim lived in so-connected internal world that Meryem felt she could fly inside him freely when they were together. And Meryem enjoyed to be with men who let her explore them deeply (there are few men like that in the world unfortunately, Meryem moaned). Jim was that no-age being, he could be a kid or an old and wise man at the same time, a butterfly or a cat in another moment, a clown or a president, a business guy or a great lover. Actually he was a great lover in the largest meaning of the word. Because he loved to love. Addicted to life, as he said about himself, he didn’t have fear to love, although he was scared about detachment. To love and to let it be, let it free? He was still learning that, specially how to let himself free to love. But he as a man-boy who knew to identify birds and nests. That’s why Meryem liked him. That’s why he liked Meryem.
It happened at the end of October, beginning of November. Winter was nearby.
It was the second time they were together. The first impression, in the previous year, had been the best as possible. Something happened, then. Something else got a beautiful and “always-known” meaning suddenly. Their connections became clear. And strong. They intuited those connections would last forever.
They shared experiences, stories, meals, kisses, beds, bodies, feelings, believes, male and female sides. They had dinner at Deep Restaurant. They had tasted snow together. They danced, they kissed, and they drank wine. They hadn’t seen a sunset together yet, who knows next time. But, specially, they flied together. Meryem lent them her wings, she borrowed them their boat named “Excursionist Dreamers”.
Like in Truffaut’s movie, they ran together through a long avenue, held hands, closing their eyes from time to time. This only could have happened in that amazing city divided between Europe and Asia, feminine and masculine, traditions and modernity, future and past. “This city is like a vagina”, Jim said once. Pain and pleasure all together, go deep and find what you are looking for. Flow and flow, go and come, come and go. Leave, but back. After nine months, a baby, a disease or a nostalgia. Jules, Meryem and Jim had been part of this.
— Will we see her again?, Jules asked.
“Why so many questions, Jules?”, Jim thought, but he didn’t said that. But he also had his own questions, although he was scared about telling them in loud voice. If he listened to his own questions, maybe they would become real – and he had some fear about it.
— She is already inside us, Jim replied. She will be always inside us. Perhaps she doesn’t exist as a real woman. Perhaps she is only an image, an archetype.
By the way, Jim still felt her kisses, her tender hands on his face. But, again, he didn’t tell this to Jules. Maybe he was trying to protect his friend from an inevitable pain. He continued looking through the window as someone who wants to see through hearts, through the time and the space, through the reality towards the imagination. Suddenly he saw a bird. A different one, a cute bird, a colorful bird. This bird was flying around the tree on the corner. After some seconds, the bird came to land at the edge of their window. Jim almost listened to it singing to them. Then he realized it was time to move on.
Guetos. (Ou: histórias que precisam ser reescritas).
(Muro construído por Israel ao redor de Belém, Palestina, 2007)
Cano exposto na parede da sala, meus próprios encanamentos expostos para mim mesma. E um deles dá direto na minha participação como ser humano na história da humanidade.
Guetos. Fui procurar no dicionário. Aurélio. Ih, ultrapassado, é o que dizem sobre ele. “Outrora, na Itália, bairro onde os judeus eram forçados a morar; (por ext.) bairro de judeus em qualquer cidade.” Aurélio avisa: trata-se de um substantivo masculino. Isto é, leve em conta a presença fálica do falo. Falo pode ser falível.
Procuro na história, mas quem conta a história? Os vencedores, é o que dizem. A história traz histórias doloridíssimas de vidas confinadas, podadas e perdidas nos guetos que vão além dos sentidos do Aurélio. Alemanha, Polônia, outros países. Seus bairros eram transformados em prisões – e outros cantos da cidade eram transformados em seus bairros de mentira para depois também se transformarem em prisões. Então, Aurélio, não use o pronome “seus” no sentido de “deles” nem em sentido possessivo algum. Não havia pronomes, nem pessoais nem possessivos, nos guetos desde o ponto de vista judeu. Um garoto desenhava, e desenhava bem, e tinha sonhos, e sonhava bem, mas sua vida foi ceifada de modo inclemente como a de tantos outros garotos. Em 2003, um astronauta levou seus desenhos, desenhos que sobreviveram aos guetos, aos campos de concentração, ao holocausto! Mas a nave explodiu. Não, Aurélio, não se trata de invenção ou de figura de linguagem.
Quando eu era adolescente, ou criança,... – cito de cabeça, não vou checar as informações para que sejam sempre precisas. Afinal, vivemos de forma imprecisa e falamos recorrendo à memória – e não à enciclopédia ou ao dicionário (perdão, Aurélio), de papel ou eletrônicos. Confio em minha memória, então, que reconstitua como quiser. – ..., aboliram a palavra estória. Disseram que, a partir daquela data, só história. E história, com minúscula, significaria a minha ou a sua ou a do menino. História, com maiúscula, significaria a narrativa dos grandes. Dos vitoriosos. Dos maravilhosos. Não haveria mais substantivo para estórias. Narrativas ficcionais, inventadas, recriadas. Elas também entrariam nas minúsculas: histórias e histórias. Os relatos de minha vida e os relatos que minha vida inventa.
Sempre achei que devesse ser o contrário. História, com maiúscula, a minha, a sua, a do menino. As que inventamos com nossas vidas, pois essas são genuínas e fiéis. E história, com minúscula, essa que os grandes, os vitoriosos e os maravilhosos protagonizam e que somos obrigados a saber – muitas vezes, ignorando as nossas próprias. Um dia me contaram de um garoto tido como gênio. Sabia tudo da Revolução Industrial Inglesa: personagens, datas, detalhes. Mas ignorava quem fosse seu pai, ou por que seu sobrenome era grafado com ç enquanto o de sua mãe era com s. Enfim.
Quando a humanidade dá descarga, eu ouço a água correndo nos meus encanamentos. Não tenho controle sobre essa água, mas imagino que tenho alguma responsabilidade pelo fato de ter canos. Não pedi os canos, eles simplesmente fazem parte de meu entorno.
Guetos. A História não teve mais nada a me dizer. Mas não sosseguei. O cano vaza, sabe, e eu quis procurar a razão. Ou a vazão.
Aurélio não diz mais nada. Ninguém diz nada. Bósnia, Sarajevo, Grbavica. Territórios Palestinos, Gaza ou Belém, Dheisheh. Armas, muros, check-points. Chechênia, Ruanda. Nomes perdidos numa nota de rodapé no jornal. Entre ontem e hoje, sábado e domingo, nasceu um país. Kosovo. Dias históricos – com minúsculas, segundo os poderosos, vitoriosos e grandiosos. Num curto período, darão a descarga e tudo será esquecido. Mais uma vez esquecido. Mas eu ouço o barulho, lembrem-se, e vejo o vazamento. Eu não consigo esquecer, porque me impregnou.
Por que ninguém me fala dos guetos de hoje? E dos outros campos de concentração que também pipocaram por aí e foram preenchidos com armênios, bósnios, chechenos e africanos de várias etnias (injusto escolher uma)? Por que o Aurélio é tão obsoleto e História se limita a nos ensinar a Revolução Francesa?
Pausa: talvez pelos mesmos motivos pelos quais “O Caçador de Pipas” termine antes da invasão norte-americana. Talvez porque o autor de “O Caçador de Pipas” seja menos o fulano que assina o livro, o fulano que assina o roteiro. O autor, na verdade, é uma corrente de pensamento, uma mentalidade, um status quo, uma forma de olhar o mundo: há que se contar histórias para aliviar o peso da História e, assim, saciar as gentes. As gentes, então, se emocionam com as histórias – verdadeiras mas tão reformuladas e reconstituídas e retrabalhadas e retalhadas – e assim se esquecem das próprias e, principalmente, se esquecem da nossa. Daquela que é minha, sua, dele, do garoto que desenhava, do astronauta que morreu, dos bósnios, dos palestinos, dos chechenos, dos armênios, dos kosovares, dos africanos todos, de cada criança brasileira que não nasce – apenas aparece no mundo –, do próprio autor carne-e-osso de “O Caçador de Pipas”. O motor de tal corrente de pensamento, de tal mentalidade não sai de um lugar específico: Estados Unidos, Rússia, China, França, Inglaterra, Israel... Está espalhado, tapando os canos com argamassa (mas mantendo a ferrugem interna), aprisionando as gentes num mar de ignorância com verniz de informação.
Assim como o caçador de pipas das mentes mesmíticas, ou desmentalizadas, os guetos da História (insisto no equívoco dessa maiúscula) pararam no holocausto. O Aurélio é um exemplo. Mas as histórias continuam a vazar ininterruptamente, apesar das argamassas, apesar do silêncio e da cegueira, apesar.
Leio que o cineasta polonês Andrzej Wajda mexeu numa ferida chamada Katyn. Eu, ignorante, nunca ouvira falar. No começo dos anos 40, milhares de oficiais militares e intelectuais poloneses foram mortos pelo Exército Vermelho na floresta de Katyn, numa manobra de Stálin para avançar sobre a Polônia. Wadja afirma que realizar tal filme foi uma experiência muito íntima e dolorosa, mas necessária, pois seu pai foi um dos oficiais mortos. Uma história que a História não me contou. E, como comenta bem o crítico Merten, “ainda existem histórias a ser reescritas”. E quantas.
É isso, portanto. Histórias maiúsculas daquilo que vaza dos canos rotos da equivocada História da vitória: os guetos, por exemplo. Esses que os fálicos falíveis usam para confinar, humilhar e martirizar seus dominados. Quero saber o quanto sofreram os bósnios, os chechenos. Se lá também havia garotos que sabiam desenhar. Quero entender. Esses guetos sobre os quais o Aurélio jamais falará.
domingo, 17 de fevereiro de 2008
sábado, 16 de fevereiro de 2008
AMORES DIFÍCEIS
Bom estar com vocês.
>> Corpos, nossos corpos
>> Improlucha
>> A Descoberta das Índias (ou Quando nossas caravela...
>> CONCIERTO DE ARANJUEZ (ou Aranjuez, mon amour)
>> El hombre quien no quizo más ser héroe
>> Duas horas
>> O aprendizado da despedida (da fase pós-experiênci...
>> Fumaças (da fase pré-experiência do Amor maiúsculo...
>> Chá requentado, Mar Morto
>> The Magnificent
>> Temos muito em comum
>> Atrás do sobrolho
>> CIRANDA
>> Amendoins
>> Noites cariocas
>>SÍNTESE
>> INCONFIDÊNCIA À MINEIRA
>> Ninhos
>> ERA UM GAROTO
>> Dois Pontos
>> Nos olhos meus
Trinca de espadas
Jules me chateou.
Chatos e chateados os três.
Então, assim ficou: Jim que se encontra aborrecido com Lóri que se encontra aborrecida com Jules que diz que anda confuso.
Por ora, é só.
sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008
IN MEMORIAM
Eram apenas cinco da manhã, já acordada e sem sonhos, embora ainda com sono. Imediatamente antes, havia acordado dentro do sonho. O sonho parecia real e tudo aconteceu na ordem que, na realidade, aconteceria. O despertador tocou, eu rugi em reclamação, soltei um suspiro, virei para o lado direito, desliguei o despertador, bocejei, espreguicei, puxei mais o lençol, numa tentativa obscena de fugir da realidade, e abri vagarosamente os olhos. Enxerguei, porém, desde a cama, já que a porta estava aberta, o reflexo, no espelho da parede da sala, de um topo de cabeça masculina. Susto. Desconforto. Tentei gritar: quem está aí? A voz não saiu. Tentei levantar. Acordei. Os olhos mal abriam. O corpo estava pesado. O corpo estava lá, mas eu estava em outro canto e, por isso, num lapso de tempo, num átimo, houve um descompasso entre mim e meu corpo. Eu estava no sonho, meu corpo estava sonhando, na hora de juntar ambos, faltou pouco para a sincronicidade. A única diferença entre o sonho e a realidade é que a imagem do topo de cabeça masculina refletida estava nítida. Na realidade, sou míope, jamais enxergaria nitidamente se não estivesse de óculos. Não coloquei os óculos no sonho imitação da realidade. Realmente, enfim, eram cinco da manhã, e eu pensava que estava no segundo nível dos sonhos, uma vez que me despertei dentro do próprio sonho de um sonho sonhado anteriormente e que, apressada, não deixei que o sonho do andar térreo se desenrolasse. Talvez o dia que se seguira tenha sido estranho por causa disso. Faltou um sonho. Como uma cebola. Faltou a última camada. Ou melhor: como uma torta, um sanduíche. Fiquei sem cobertura. Ou foi ele quem ficou.
II.
And that’s another day
Another time and another celebration
If there is another opportunity
Give me an insight
Turn on the light
At my unknown way
I’m fine, finally, without exasperation
Finding myself in the unity
Looking for my side in this site
– Unique
III.
Risoto de arroz congelado com molho preparado por mamãe ... R$
Lata de ervilha com cenoura ... R$
Lata de sardinha cujo azeite virará, quiçá, biodiesel ... R$
Omelete de um ovo só com salsinha congelada e cebola ardida, porém fresca ... R$
Água.
Água do filtro entupido pelo pó. Grátis. O pó, grátis, a água, líquido precioso.
IV.
fila, quando eu cheguei, porém não precisei esperar muito. Apenas três reais na bolsa, pensei, mas descobri uma moeda e inteirei quatro. De nada adiantou, pois gastei dois e quarenta, passei a catraca, não precisei esperar muito e entrei no vagão, pensando que um e sessenta não dá para nada. Não precisei esperar muito e já estava na estação em que precisaria descer. Fui até o consultório na rua de trás, eram já três e seis, e nem precisei esperar muito porque
V.
— E por que você quer entender tudo?
— Por que precisa estar tudo tão mastigadinho?
— Por que você não aceita o cuspe dos pensamentos?
— Por que tem de fazer sentido sempre?
— Por que a cueca amarela do Chucky Berry – nem sei se é assim que fala, com “ck” – tem de ser cor amarela?
— Ah? Secá?
VI.
Diálogo no filme. Jesse e Celine. Ela diz para ele: “Sabe, se Deus existe, não acho que esteja em cada ser humano, mas sim no espaço entre duas pessoas.”
A cada duas pessoas, um tantinho de Deus.
Ouvi alguém perguntar: “o que é interstício?”
Responderam: “Um complemento de armistício.”
Sempre assim, vício.
VII.
Taquigrafia.
Mas, antes, momentinho de paquera. Andava depressa. Três rapazes, o do meio sorria, reconhecendo-a. Seus olhos, porém, num segundo, se desviaram para o alto e lindo rapaz da direita, que a sugou, instigante.
Datilocardia.
– MLXVI...
Teve sede, mas tomou chuva. Teve medo, mas arrancou os cabelos. Era uma vez, mas foi tantas outras.
E, quando bateu o sono, certificou-se de que estava mesmo acordada.
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domingo, 10 de fevereiro de 2008
A Massai Branca
Assisti, ontem, finalmente!, ao longa-metragem “A Massai Branca”. A história é previsível: uma suíça, em férias no Quênia, apaixona-se por um guerreiro de uma tribo local. Vai viver com ele e, depois de alguns anos, já não suportando mais a diferença, volta para seu país de origem. Pronto, contei o filme! Isso, porém, não tira o mérito da película, que não só me encantou como me trouxe alguns sentimentos contraditórios, talvez por eu ter me identificado com a protagonista em vários aspectos. Pois é.
O caçador de pipas -- Achei que “A Massai Branca” tem mais personalidade, como filme, que “O Caçador de Pipas”, por exemplo. Aliás, fiquei decepcionada com esse último. A narrativa é bonitinha, os atores são cativantes, mas algo não funciona nele. Não me emocionou como eu esperava (embora não tenha lido o best seller que o originou – preguiça... –, já conhecia a história). Ainda não sei exatamente o que, na minha opinião, faltou. Ou deixou a desejar. Achei a direção do Marc Foster qualquer nota (pena!) e a montagem me incomodou. Mas não foi só isso. Parecia uma história em terceira pessoa, em que todos – autor, roteirista, diretor, atores – sabiam que estavam falando de outrem, com distanciamento, apuro técnico e muito cuidado para não fazer apologias ou tomar partido. Eles representavam, não interpretavam. Talvez tenha sido esta a razão do meu estranhamento. Faltou alma. Ou atitude. Ideologia? Tudo me pareceu ensaiado demais. A única exceção parece ter sido o garoto que faz o Sohrab, filho de Hassan, este sim presente. Seu olhar profundamente melancólico e desiludido, adulto demais para um menino de sua idade, me pareceu a síntese do povo afegão hoje. Outro ponto débil, a meu ver: o filme (talvez o livro) pára antes da invasão norte-americana ao Afeganistão, o que também me deixou irritada, com a sensação de incompletude. “Ah, América dos meus sonhos.” Enfim.
A massai é massa -- Voltando à massai: sua história era uma história que qualquer mulher poderia viver. Eu, por exemplo. Eu que já fui à Tunísia atrás de um homem. Um homem ocidental, morando lá temporariamente, mas tão avesso a compromissos que também parecia um guerreiro local de cultura completamente distinta. Carola, a massai branca que existiu de fato, foi uma mulher que respeitou a inexorabilidade de seu desejo. Não havia outra opção, entende? No fim, fica evidente que ela realmente precisava passar por todas as experiências que vivenciou para ser ela mesma. Foi lá, naquela tribo perdida no meio do Quênia, que ela pôde ser Carola, entender Carola e assumi-la. Há uma frase emblemática, que a protagonista diz quando está com o ex-namorado Stefan: “E eu vendo roupas.” E dá de ombros. Sua vida na Suíça já não faz mais sentido, mas faltava coragem e impulso para mudar. Carola precisava de um chacoalhão para pôr todas suas questões internas no lugar. O filme assume o ponto de vista dela – o que deixa claro logo nas primeiras cenas. Por isso, há ternura quando precisa haver, deslumbramento e decepção, e a triste – e rápida – conclusão quando a busca daquela etapa da vida chegou ao fim. Eu, espectadora, experimentei tristeza e alívio. Se ela não reconhecesse o término do ciclo, cometeria o mesmo equívoco de antes: suportar uma situação que não tem mais sentido apenas por medo ou comodismo. No entanto, a gente pensa: tanto sacrifício para terminar assim? Nada mais enganoso: ganharam os dois, o guerreiro e ela. Porém, ela vem de uma cultura, nem melhor ou pior, apenas mais flexível às mudanças que a dele. Se, por um lado, é uma cultura que esvazia corações e suga energias rapidamente, comporta mudanças bem mais velozes que a dele. Como o filme assume a visão de Carola, ficamos sem saber qual foi o impacto da passagem dela pela vida de Lemalian. Além disso, senti falta de um incômodo maior na narrativa, um embate entre a razão que tenta compreender a situação ao redor (isso há) e o imperativo irracional, que às vezes nos leva para caminhos espinhosos. Mas alma tem, aqui e ali.
Nada de mais? -- Fiquei pensando se eu bancaria uma história assim; um guerreiro africano seria demais, porém... e um palestino muçulmano? Um turco judeu? Lembrei-me de uma amiga brasileira, que vivia na Suíça, e se relacionou com um rapaz muçulmano de Kosovo. No início foram flores, depois as diferenças cultural e religiosa vieram com uma força tremenda. Ela se sentiu humilhada pelas atitudes dele. Nós, brasileiras, especialmente as de cidades grandes ou metrópoles, por conta de nossa liberdade de ser, vestir e nos relacionarmos (afetiva e sexualmente), corremos o risco de sermos mal-interpretadas – digo por experiência própria e com base na vivência de minha amiga (que não fez “nada de mais”, segundo nossos padrões). Não acho que isso seja um ponto a favor dos homens brasileiros, muitos ainda no beabá do tato e da sensibilidade, pelo contrário. Mas como lidar com diferenças culturais às vezes impregnadas em nossa própria personalidade? Em alguns casos, abrir mão delas representa ressignificar quem nós somos.
Curiosidade -- Na base dessa questão, está o atrativo do diferente, que – aparentemente ou de fato – complementa e desloca nossos lugares-comuns. Um diferente que carrega – aí sim, aparentes – semelhanças: os desejos, as buscas, a necessidade de um maremoto interno. Eu vivo isso em todas as minhas viagens. Não sei aonde isso vai me levar. Mas todos, sem exceção e independentemente do grau de envolvimento, me acrescentam algo. Constatei que o desafio de me relacionar com o diferente, seja um diferente similar ou um diferente-diferente, me atrai de modo inexorável. Não sei explicar, só sei que é assim. E que eu o busco assumidamente. No fundo, há inegavelmente uma curiosidade sexual incrível (às vezes, quase incontrolável). Mas isso não depende só de mim, hehehe. E existe também um impulso grande a terremotos e maremotos internos, uma esfoliação de alma e de conceitos, um renovar constante.
Sou assim.
Ah...
Musos, onde estão vocês?
sábado, 9 de fevereiro de 2008
ERA UM GAROTO
Quer dizer, nem sei se amava os Rolling Stones.
Mas, certamente, amava os Beatles bem mais que eu.
Naquela cidade mineira apinhada de paulistas, eram duas as opções para o domingo de Carnaval: ouvir moda de viola ou cantar com os covers dos Beatles. O bloco carnavalesco, formado por jovens fanfarrões de latinha de cerveja na mão pulando ao som de um funk indigesto, já havia circulado pelas ruas principais durante à tarde. Deixara um rastro de cansaço, confetes e casais de adolescentes aos beijos nas esquinas pudicas, mas escuras, do local. Decidi, então, ver os Beatles. Ou melhor, uma versão mineira do quarteto de Liverpool. Um protesto contra o fim das marchinhas clássicas e a comercialização do samba. Rock neles!
Bebericava minha cerveja, quando os covers chegaram. Meninos de tudo, garotos que devem ter nascido na segunda metade da década de 80, mais novos que as músicas que iam cantar. Vestiam uma gravata engraçada – “por conta do clima de Carnaval” – e não usavam penteados românticos, como seus ídolos. Nenhuma comoção enquanto eles se ajeitavam, espremidos, no palco. Apenas uma troca de cadeiras para ter uma visão melhor do baterista, o único que fizera meu olhar se deter por alguns instantes. O único de gravata amarela e sem microfone para os vocais. Um baterista, antes de tudo. O come-quieto de uma banda. O conquistador nato. O bambambam dos pratos.
E o show começou, com som potente e envolvente. Nem me recordo da ordem das músicas. “Lucy in The Sky with Diamonds”, “All you need is love”... Um click. Baladas de sinos, talvez. Não sei quando, ao certo, aconteceu. Se foi quando passei da cerveja às caipirinhas de cachaça. Se foi quando eles cantaram “Yesterday” ou “From me to you”. Meu olhar se cansou de buscar o baterista porque foi irresistivelmente atraído pelo vocalista e baixista. Cantava com a alma esse menino. Alguém poderia enxergar só caras e bocas de um cover de Paul McCartney. Eu via alma, sorte minha. Pena que ele estava de óculos escuros, estratégicos óculos escuros de aros brancos, que não o deixavam se aproximar de mim. Olhos nos olhos, quero ver o que você faz.
“I want to hold your hand”.
E, então, ele tirou os óculos.
E cantou com mais alma. E seus olhos verdes quase lacrimejavam pela vitória. Ele vivia cada verso de cada música. Seu rosto era de prazer, havia um gozo implícito e explícito. Suor misturava-se com lábios e os olhos verdes, com expressões orgásticas. Eu já nem sabia que música ouvia. A música era apenas uma moldura para o nosso – o meu e o dele – momento de intimidade. Segure minha mão, ele dizia. Ele se entregava. Eu, hipnotizada, murmurava refrões difusos. Ele, com a face de quem faz amor, quase chorava. Era lindo. Era lindo vê-lo lindo em puro delírio de prazer. Ele fazia amor... Me deixando participar de seu orgasmo. Me deixando vasculhar sua alma, seus olhos, seu rosto, seu coração naquele instante. Meu Deus. Não tínhamos ontem nem amanhã, antes ou depois, havia só o agora, aquele agora, Beatles repercutindo em sua voz e em seu dedilhar de baixo, nos meus ouvidos e no meu pulsar cá embaixo.
“Help”.
E durou muito tempo, foi quase infinito. Eu só sorrisos e olhos verdes, ele só gozo e entrega, uma relação das mais puras e também das mais delicadas. Porque tinha muita alma, porque tínhamos ambos muita alma, porque éramos almas puras, puras almas. Em instante de devoção e contemplação. Silêncio e expressão. Beatles.
“Hello, goodbye”.
E então os garotos de Liverpouso (Alegre, sul de Minas) pararam de tocar. Intervalo, fim do show, o que tenha sido. Dispersão. Enxuga o suor, bebe um copo de cerveja, gatinhas esperando no fundo do salão – meninos que tocam não ficam sós. Ele, meu parceiro de delírios, circulava pelas mesas, recuperando-se da entrega ininterrupta. Sorria. Cumprimentava ou era cumprimentado. Transpirava. Um menino, gordinho e despenteado, um menino como qualquer outro menino. “Let it be”. Quando passou por mim, sem me olhar, toquei-o nos ombros. Parabéns. Obrigado, valeu, olhos baixos. Timidez? Desinteresse? Nada de mais. De novo o conto “Tentação”, de Clarice Lispector? Suspiros. A garota ruiva e o cão bassê também ruivo...
“The long and winding road”, que eles não tocaram.
Que ele não cantou.
Talvez porque o instante não volta. E se trata de instantes: aquele acorde, aquele suor, aquela voz que sai daquele jeito e cativa um ouvido e desencadeia um pulsar, dois, três.
Levei um tempo para compreender o que havia acontecido.
Quando fui embora, espiei a mesa em que o quarteto, suas gatinhas e amigos descansavam e sorviam bebidinhas. Ele estava lá, olhar aguado, um tanto triste, suado, garoto de camiseta preta, cabelo desgrenhado, ares de pós-sexo. Não sei se sua namorada desconfiara de algo. Se ela tinha idéia da capacidade de amar daquele menino. Da entrega. Tampouco sei se ele compreendeu a dimensão da troca. Tem coisas que vêm só com a maturidade.
Sei que era um garoto que, como eu, amava. Ele amava os Beatles. Eu amo os garotos como ele.
Bis: “Let it be”.