domingo, 27 de abril de 2008

Do mundo que vejo fora da janela de meu coração. Isso também é com você!


Me cansei das reclamações fáceis, dos julgamentos apressados, de um espanto estudado diante dos fatos e dos eventos cotidianos – oh! – e de uma falsa surpresa quando as feras individuais ou coletivas saem de seus casulos-donos-aparentemente-bem-comportados para arranhar com garras afiadas e gosmentas a singeleza artificial, fria e dormente de nossa sociedade. Cansada também dessa dependência patética do dinheiro, do adiamento de sonhos em nome de um nome: estabilidade, crença frágil numa segurança que não se segura na insegurança de corações agitados ou frustrados ou confusos. Estabilidade vem de dentro, não de fora. Paz vem de dentro antes, depois reverbera fora. Gaiolas para as loucas! Prisão para os assassinos! Os políticos não prestam! Abaixo as imoralidades! A turba grita, ensandecida. Enquanto isso, os repórteres comezinhos comem os pezinhos de suas notícias por falta de espaço. Ah, estardalhaço... Discursos de novidades em confronto com arcaicas metas de lucro: esse papo eu já conheço.


Pois estou cansada, mas não sou datada, embora seja esse o adjetivo que empreguem –(quem? como? onde? quando? por quê?), que vocês empregam?, vocês? também? – ao se deparar com indivíduos de ideais. Variações de “datada”, “datado”: louco, bobo alegre, romântico, inconseqüente, surtado, passado, futurado, alterado, cheirado, metido a besta. Dia desses, amigo antigo vendo a mim em foto feliz e autêntica, eu contente como palhaço, me disse: parece uma bêbada tombando na rua. Mais um sinônimo, portanto: bêbada tombando na rua. Sou eu.

Cansada, então. Cansada de fuzuês-redemoinhos, que giram em torno deles mesmos. Cansada de palestras de jornalistas para outros, quando ninguém acredita em mais nada. Cansada das CPIs todas, que gastam nosso dinheiro e energia elétrica e roubam minutos no noticiário televisivo das boas notícias. Existem essas? Perguntemos aos preguiçosos e pessimistas e eles dirão que não. Você... você que acredite no que quiser. Você acredita em algo? Cansada do discurso pseudo-social de que ‘nenhum filme presta, então prefiro não ver nada’. ‘Teatro é chato e peça que me interessa tem global e é cara. Que música é para os outros cantarem. Vou ao museu, sou legal e tal, mas nada me diz mais nada’. Cansei desse discurso alheio a, cansadíssima dos discursos alheios... Cansei de discursos. Ainda mais porque há vômitos de dizeres, mas pensares, refletires, sentires, impressionares, olhares, abraçares, sorrires, desprendimentos e disposições, será que há?


Cansada de gente rancorosa que não colabora por pura ranhetice, que finge não escutar porque quer devolver comportamentos, que cobra atitudes quando não tem nem sentimentos a oferecer. Gente ainda presa à Lei de Tabelião. Gente presa à tabela de calorias. Gente presa, pela própria pele botóxica, às aparências. Gente presa aos “fundamentalismos de standcenter”, baratos e vendidos como se fossem posições políticas consistentes e atuais. Ah, quiçá.
Eles passarão, diz Quintana, você passarinho.
Farto do lirismo comedido, grita Bandeira sem levantar ideologias de escritório.



Travessia, brada Pessoa, que podia ser Fernando, Fernanda, Maria, Márcia, Meire, Débora, Denise, Karina, Marina, Mariana, Alexandre, Alexandra, Alejandro, Edmilson, Edison, Roberto, Rudi, Regina, Graça, Ivan, Rosana, Rita, Ricardo, Jaki, Sercan, Pablo, Paco, Peter, Lilly, Rodolfo, Irene, Liane, Ana, Ada, Hassan, Haim, Naim, Breno, Bruno, Bruna, Busi, Bora, Bárbara, Xavier, Jefferson, Jane, Josi, Cidinha, Cecília, Olga, Eugênia, Fred, Fabio, Fabrício, Sonia, Cristina, Lucas, Guilherme, Gabi, Monique, Malu, Mišo, Waleska, Lisete, Susana, Patrícia, Priscila... Pessoas! Pessoa: tra-ves-si-a. Milton: Todo artista tem de ir aonde e onde o povo está.


Mas onde estão os artistas? Cansados, não. Enclausurados? Tampouco. Estão apenas reclusos, como os grilos jovens que esperam a chuva para terra-que-te-pariu. O sol, o vento, o céu azul, a poeira, até a poluição. E zunem esses. E estatelam nas paredes para fazer barulho. Mas estatelam ainda mais nas gentes quando bradam por companheirismo. O que é isso, companheiro? Démodé? Não.


Ontem assistia a um telejornal. Notícia sem link, sem imagem, sem repórter, sem reportagem. Notícia na boca do apresentador. Durou 15 segundos. Criança foi morta por não-sei-quem em não-sei-onde. Na seqüência, 15 minutos de links, imagens, reportagens e repórteres, transeuntes, polícia, advogados, promotores, refletores de caso Isabella Nardoni. Que encontrem os culpados e lhes apliquem a punição adequada. Mas que também encontrem os culpados e lhes apliquem a punição adequada no caso da criança anônima – sem holofotes, sem destaque, anônima, mera rubrica, traço, troço – dos 15 segundos. E da outra criança anônima morta também por alguém no meio da semana, esta com 10 segundos apenas de menção, em outro telejornal, em outra cidade, mas no mesmo país. E que encontrem os culpados e que lhes apliquem a punição adequada no caso de tantas crianças indigentes indigestas deixadas mortas violentadas esquecidas mal paridas desprezadas cansadas como eu, sentidas sem valor sem vida sem comida sem estupor sem futuro só no escuro, crianças que não têm nem um segundo de atenção crianças tantas desse Brasil que me, te, os, as, nos, vos pariu. E... se os culpados também formos nós?


Pessoa! Travessia. Pessoas! Vamos.


Não fechem meu espaço aéreo. E o espaço aéreo etéreo esquecido olvidado apagado de Eldorado dos Carajás? Vigário Geral? Candelária? Irmã Dorothy Stang? Raposa Serra do Sol? Do agricultor morto esta semana lá no Pará por denunciar a ação nefasta das madeireiras livres leves e cínicas? E os mortos do Carandiru? Fecharam o espaço aéreo quando da prisão dos criminosos culpados assassinos daquela família queimada viva no carro no interior de São Paulo? A turba, a polícia, a mídia, os políticos – queremos a cueca usada do Abadía!!! Os cartões corporativos!


Pergunta: Menino, o que você quer fazer? Resposta-roleta: Ganhar o BBB ou ser reitor da UnB!
E você, poeta?
“O meu olhar é nítido como um girassol./ Tenho o costume de andar pelas estradas/ Olhando para a direita e para a esquerda,/ E de vez em quando olhando para trás.../ E o que vejo a cada momento/ É aquilo que nunca antes eu tinha visto,/ E eu sei dar por isso muito bem ../ Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras.../ Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do mundo ...” Para a eterna novidade do mundo, caro Caeiro! Nascendo-me já, descanso e não mais cansada caminho, feito girassol.


“E vivam os dólares e os euros das Olimpíadas, danem-se os monges e seus protestos, danem-se todos, iraquianos e afegãos, leio a Veja e me basto, faço sexo mas me castro, tirando a sensibilidade humana que me caracterizaria”, grita um homem de um milhão de dólares, adorado por muitos, invejado por tantos, até por uma vizinha minha, mulher de bom coração. Deus! Deus! Por que nos abandonastes? Ou fomos nós que O/A (heresia!) abandonamos para estar com nossa mesquinha pequenez tosca de auto-suficientes heróis dos tempos?



Miscelânea, você pode dizer. Faltam-lhe objetividade, português castiço, centímetros a mais nas pernas e nos cabelos, quilos a menos, isso é dor-de-cotovelo de desempregada fingindo-se de libertada, mulher encalhada e mal-amada, feia, poros abertos, cravos, cruz. Corrijo: via-sacra, sacra mas não dolorosa, dolorida mas não de sofrimento: de vida.
O que digo, o que grito, o que então?


Fiquem com seu pseudocaminhão, que eu sigo – cansada mesmo, embora tão empolgada e disposta – o meu caminho. Ao lado de Pessoa, de Pessoas, pessoando, pessoaizando, girassol, criança recém-parida, partindo para, humaníssima, irmanada, claro.

>> Quinze vezes se for necessário:
PORQUE O NOSSO CANTO NÃO PODE SER UMA TRAIÇÃO À VIDA. E SÓ É JUSTO CANTAR SE NOSSO CANTO ARRASTA CONSIGO AS PESSOAS E AS COISAS QUE NÃO TÊM VOZ!!! (Ferreira Gullar)
Nota de repúdio (dá-lhe, Meiroca!)

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Estou num labirinto. Nem feio nem bonito, nem frio nem fabuloso, um mero labirinto. Neutro. Nada ameaçador. Inevitável.

Estou no meio do labirinto, portanto. Não sei mais voltar, porque fui sem fio de Ariadne. Só que não quero voltar. Porém, em algum momento, por alguma razão, me perdi. Não tive a sensação de equívoco; talvez tenha sido um breve momento de distração, um desligar de segundos. Ou então, desmaiei tão docemente quanto um sono e achei que apenas descansava quando, na verdade, me perdia.

E agora estou aqui, perdida. Todos os caminhos parecem me levar ao começo de tudo, ao retrocesso, ao retorno ou ao ponto de partida. Será que o fim do labirinto é o recomeço? A volta ao início? Retornar para onde tudo se fez ou se formou?

Não quero mais a auto-suficiência.
Preciso de um guia, de alguém que partilhe uma orientação.
Quero achar uma saída para o labirinto.

terça-feira, 22 de abril de 2008

... e mais ou menos às nove e tanto da noite sentiu que o chão agitou-se, a mesa tremia, a cadeira balançava, ela parada e o mundo, o solo, a cidade, a placa tectônica movendo-se à revelia. era princípio de labirintite de loucura de paixonite um stress porque a ordem dos fatores alterava seu humor?

algo se movia dentro dela de tal forma que, paralisada, reverberava na cadeira, na mesa, no computador, no chão, na cidade, na placa tectônica.

a verdadeira revolução, de grandes graus da escala Richter dentro e fora do ser, revolve as profundezas puro parto partida passos pessoas e possibilidades.

e uma, de mais de 5.2 graus, estava apenas começando em sua vida de esperantos e esperanças.
epicentro: a alma. sem alarmes, mas com muita bossa. pacífica.

Ela usava óculos

Ela usava óculos. E eles já foram seus maiores inimigos. Funcionaram como a maior muralha. A barreira certeira. O esconderijo perfeito. Os reveladores, os denunciadores. Suaram muito com ela. Choraram também. Estes, agora, estabeleceram uma relação harmoniosa, serena e um tanto divertida. Folgas durante a semana, décimo terceiro salário, cuidados higiênicos, até elogios. Os anteriores sofreram; uns foram despedaçados, sem querer, com os pés. Outros, de propósito, com as mãos. Ela era ela, com ou sem eles. Mas eles só eram eles com ela.

Ele também usava óculos. Eles eram amigos, parceiros, companheiros, aprendizes. Eles guardavam seu tique, disfarçavam sua timidez-não-tímida, saíam estrategicamente de cena quando fosse tempo de deixá-lo olhar, de deixar com que fosse olhado. Ele era ele de óculos, mas sabia ser-se-a-si sem eles. Eles o queriam incondicionalmente, pois se sentiam sós e sensíveis.

Ela gostava dele de qualquer jeito. Ele não sabia que ela usava óculos.
Eles eram parecidos.
Eles também eram parecidos. Pretos, vermelhos. O dela trazia florzinhas.

Ele de óculos, ela sem óculos, logo de cara a identificação se instalou. Ela olhava sem maiores preocupações, ele olhava com curiosidade. Afetuosos e expansivos. Agrandando-se, ambos, na vida um do outro. Sem saber. Distraídos. Expostos. Nada de rótulos ou definições. Quem eram eles depois de um e do outro? Ela sentia, ele ainda tentava entender. Ela partia, ele queria até acompanhar.

Os óculos. Os dele iam e voltavam. Os dela ainda não foram revelados. Precisava?

Ela gostou do que viu.
Passado um tempo, gostou mais. Deu vontade de lhe dar um beijo. Nele, com ou sem óculos, sem pedir licença a eles. Mas nem sabia se. Como agradecimento.

Sentiu ternura. Quis passear suas flores e suas hastes vermelhas pelo rosto dele. Um milagre. Um achado. Um carinho.
Eles haviam se reconhecido! Pressentiram a existência um do outro. Espelhados, simétricos.
Ela tinha um quê de mistério, ele disse. Mas era ele quem se revelava pela metade.
Pois ele levava óculos.
Ela queria levá-lo em si.

No fim de tarde, depois da chuva, ambos redescobriram um céu luminoso e iluminado além de quaisquer lentes embaçadas.
E eram eles. E estavam ali. Inteiros, brilhantes e presentes.

Testemunhas oculares do bem-querer.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Esse Campeonato Paulista já tinha me dado bode desde as primeiras rodadas. Hoje, quando vi que havia chuva lá fora, céu nublado e friorento, constatei que faltava o vermelho sangüíneo ao meu time. Assim, quando acabou a luz aos 40 e já de quarentena, dei graças a Deus. Desliguei a TV e fui brincar de Rapunzel porque deste modo iria, ao menos, me surpreender muito mais. Ei, troquem os príncipes e os imperadores. Me achem um rei.


Na mochila, é claro, além da canarinho, segue a 10 do segundo uniforme tricolor. Bonita, bonita, bonita que só.


Entre o porco e a macaca, fico com a gata que eu sou. Miau.

domingo, 20 de abril de 2008

Câmera na mão, idéias na cabeça e tal.

Pois então me deram um olho diferente para olhar, eu que sabia só escrever. Um olho que respondia a comandos outros, que não os meus cerebrais. Que precisava de minhas mãos firmes. Que pedia minha sensibilidade. Minha perspicácia. Que me exigia atenção e presença. Luz, foco, enquadramento. Escolhas. Tripés. Microfones. Áudio e silêncio.

Olhar o mundo com uma câmera nas mãos muda muita coisa. Muda a gente, muda o mundo, materializa invisibilidades que só sua alma capta.

Cenas vieram à mente. Wong Kar-wai, Almodóvar, Sean Penn, Nuri Bilge Ceylan, Gus Van Sant, Beto Brant, Antonioni, Agnes Varda e tantos outros que me emocionam.

Agradeço à Ana, que me fez entrar nesse mundo mágico das imagens que brotam dos meus olhos, das minhas mãos, dos meus passos e do meu novo olho. Por que demorei tanto? Não sei por que contive meus ímpetos de ter esse novo olho, de registrar aquilo que meu coração já sentia de antemão. De imaginar que você e ele e ela e os outros podem partilhar, por breves momentos, do olhar que é só meu.

A câmera entrou na minha vida, largou a porta destrancada. E trouxe junto o ganzá.
Ih, ferrou!!!

sexta-feira, 18 de abril de 2008

~*~ NAMORABILIDADE ~*~

(MF, 2007, Mar Mediterrâneo)




Namorabilidade me lembra disponibilidade, me lembra mar, me lembra amora, me lembra namoro e amor. Ter tudo isso junto não é tão fácil -- acho que há muita gente que namora sem namorar, apenas para fugir da solidão triste e stricto sensu que é essa sensação de desencontro com a própria alma.



Namorabilidade também me recorda habilidade, hora e nanar: um lançar-se ao outro, aos braços do outro, partilhando no momento certo o encanto, com ternura, num tempo de delicadezas. Não acho que estejam todos prontos para isso, embora os rótulos anti-Clarice (que já avisava: "por não andarem distraídos...") sejam grudados em relacionamentos superficiais e medíocres numa vã tentativa de mentir para eles mesmos: estou infeliz, estou namorando. Ou vice-versa. Na namorabilidade cabe saudade, cabe vida. Vida de verdade, não mortos-vivos disfarçando-se de casaizinhos quando estão, na verdade, noivos cadávares atrapados a suas dores e neuroses.



Namorabilidade é para os corajosos. Porque os medrosos, covardes e banais contentam-se com os vapores baratos de um relacionamentozINHO, frisando com orgulho cheio de cólicas o diminutivo. Porque talvez fujam do afeto, fujam das perguntas pessoais e das confissões íntimas, fujam do sexo a dois (transam com eles mesmos, sempre, e para eles mesmos), não bebem na mesma taça, não dividem o sanduíche, talvez fujam das almas.




Namorabilidade traz disposição para os riscos, risadas e lágrimas. E se instala quando você já se namora. Namorabilidade pressupõe um reconhecimento de si mesmo -- de suas fronteiras, de suas montanhas e vales, de seus rios e tormentos, de suas aves endêmicas e borboletas raras. Namorabilidade tira o pavor de perder o sonho-vôo-solo e lhe presenteia com a possibilidade do conjunto.




Olhe e enxergue. Quem sabe você comece a aprender as pegadas.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Blueberry nights (ou: Hora de atravessar a rua)

O novo Wong Kar-Wai. De encher os olhos, mas sem a densidade que eu esperava. "Pusilânime", disse uma moça no banheiro, ressuscitando um termo empoeirado. Não seria o meu adjetivo... Porém, tive lá meu momento epifânico e só por ele valeu. Cito de cabeça, com a permissão dos equívocos de tanto digerir e regurgitar as frases.

Elisabeth, em certo momento, conta que vai optar pelo jeito mais demorado de cruzar aquela rua. Dito isso, parte em busca de si mesma pelo interior dos Estados Unidos. Jeremy a procura, sem sucesso, mas descobre que o problema maior não são as chaves para trancar ou destrancar uma porta: a questão é se, atrás da porta, há uma pessoa que espera.

Elisabeth também fala que, na noite da partida, chegou a estar com a mão no trinco da porta do bar para se despedir, quem sabe comer a torta, como de hábito. Mas sentiu que, se fizesse isso, estaria sentada na mesma cadeira até aquele momento e seria a mesma pessoa de quase um ano atrás. Ela não queria mais ser aquela mulher, sentia necessidade de ser outra. Por isso, decidiu atravessar a rua. Atravessar demoradamente a rua.

Um amigo chamou a atenção para minha foto da "pombinha turca", que está num post aí abaixo (Solidão de Indivíduo). A pomba parece indecisa em seguir atravessando a rua. Por que uma pomba atravessa a rua? Para ver o que há do outro lado, é a resposta. Por que a gente sai em jornada? Para ver o que há do outro lado. Para ver a nossa vida do lado de fora da vitrine, da janela, da porta, do bar, da rua.

Uma amiga me falou que não tenho obrigação nenhuma de ir até o fim, com objetivo de provar coisas, se não sentir vontade. Estou de acordo, ainda mais porque nem sei qual é o fim -- por isso, voltarei para algum ponto anterior quando e se o coração pedir. Mas o que desejo, neste momento, e isso ficou bem claro, é atravessar a rua e ver o que há do outro lado. Durante o trajeto, partilho, presto atenção nas boas iniciativas. Uma vez do outro lado, aí sim, tomo a decisão: re-atravesso a rua e volto para o lado onde estava ou sigo naquela calçada por um tempo até atravessar uma nova rua, em outra direção?

Essas são questões para as quais não tenho respostas e nem me preocupo.
Olharei para os dois lados com prudência, antes de pôr meu pé fora da calçada.

E, como Jeremy, beijarei o beijo que meu coração pedir. E não me preocuparei com as chaves, porque abrirei as portas que tiver de abrir. E, se for para ser, haverá alguém à minha espera.

Reinações de Mariazinha

( 2007, MF)


Ao Terrível, o homem mais interessante dos últimos tempos
Ao J. Dreamer, constante fonte de inspirações e afetos
À amiga de Bethania e Clarice, companheira nas descobertas epifânicas


Quando explicaram o mundo à Mariazinha, não mencionaram que a intuição muitas vezes se choca com as convenções, com as confusões no mundo interno das pessoas e com certas verdades ressecadas que, de tão antigas, parecem até uma verruga de nascença.



Mariazinha se esqueceu de várias das explicações recebidas, como era de se esperar, e foi aprendendo o mundo na medida em que vivia. Descobriu que a dor do arranhão é diferente da dor de trincar o osso do braço direito e, mais ainda, bem diferente da dor de tirar nota baixa na escola ou passar vergonha. Quando cresceu, porém, Mariazinha se deparou com a dor das impossibilidades, uma dor extremamente mais doída e dolorida. Tendo ignorado a recomendação de só trabalhar com possibilidades e com alternativas catalogadas, foi pega de surpresa.



Sua intuição teimava em levá-la a um certo coração masculino. Porque Mariazinha, embora não se importasse muito com as convenções, era irremediavelmente atraída para dentro dos corações masculinos. Mas ninguém havia falado a ela que o fato de um coração ser masculino, exalar os cheiros masculinos e feminilizá-la ainda mais significava um dono necessariamente disponível ao feminino. Não.



A intuição de Mariazinha passou, então, a chocá-la e a chocar-se com as impossibilidades. E esses choques davam pane em seu sistema emocional. Porque agora ela só enxergava corações masculinos, independentemente do corpo que os abrigasse, das tendências e dos debates; Mariazinha não dava mais bola a blábláblás ou peitos estufados, bíceps mentais ou saldos intelectuais, e era atraída por aquilo que tais corações reluziam. E todos os corações masculinos que a chamavam estavam abertos apenas para outros corações masculinos – em qualquer acepção, qualquer que seja o significado disso. Ou fechados ao feminino dela, Mariazinha.



E tudo doía porque tudo lhe parecia inexplicável e inexato. Uma sucessão de impossibilidades, a impossibilidade-mor ainda tão dilacerante.



Pois, então, Mariazinha iniciou-se sozinha no solitário aprendizado do não-pedir, sobre o qual escritores, poetas, músicos, palhaços e peregrinos já a haviam alertado. E notou que seu próprio coração tinha uma disponibilidade itinerante, posto que ainda indeciso e jovem, posto que sedento e aventureiro.



Então, os manuais estavam certos?



Contudo, ao não pedir, ela também se distraía. Distraindo-se, ela compartilhava. Compartilhando, ela criava teias de possibilidades. Sendo possível, ela se alimentava. Alimentando-se, crescia. Crescendo, era mais e mais humana. Humanizando-se, disponibilizava-se. Disponibilizando-se, encontrava outras disponibilidades. Apurou seu olhar, seu sentir, seu intuir. A intuição, afinal, estava certa. Mas seus quereres de Mariazinha não tinham ainda entendido com plenitude a mensagem. E descobriu, então, que os caminhos eram vários, as impossibilidades apenas protegiam os encontros de queimaduras óbvias, e que há sempre corações à espera de outros corações, independentemente do gênero e das fronteiras, além de tudo.


Virou Maria. E é ela que por ali vai.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

PROSTRAÇÃO



Um homem de qualquer canto
do mundo
de lugar nenhum

lançou ao mar ao céu ao vento ao âmago
uma garrafa embriagada de
indagações.

Angústias que o ocaso se encarregou de
dissipar.
Ecos sem gritos ou sonhos sem tons
Uma nuvem rasga o horizonte,
lá longe.
apenas sementes de raízes
a brotar aos borbotões
sob a delicada membrana
de acordos de paz.

Erupção.

sábado, 12 de abril de 2008

digerindo a notícia, ainda sobre Pippa

Depoimento de meu amigo turco Sercan, em cuja casa Pippa esteve hospedada antes de partir (e de ser morta):

"Ao criar a paz, você enfrenta dificuldades. O mais importante é satyagraha, ou seja, insistir na verdade. Gandhi foi morto também quando trabalhava pela paz. Os riscos estão em todo o lugar. Temos de olhar positivamente para o futuro e com bons sentimentos. Se nós desistirmos e somente nos sentirmos tristes, quem mudará o mundo então?"


Palavras reconfortantes de minha amiga Márcia:

"Notícias como esta nos lembram de que o mal existe. Que está disponível para todos. Ele está aí, tão perto de nós, é parte infelizmente predominante do mundo em que vivemos. Por isso, a alegria de encontrar pessoas iluminadas. Porque são poucas. De tanto convivermos com elas, esquecemos às vezes do mal que predomina. Será que Pippa estava errada em seguir sua jornada? Será que a intuição dela não a alertou para o mal que se escondia naquela carona? Será que o fim violento é punição por ela ter sonhado, como muitos dirão (inclusive aquela voz alta dentro de nós)? Acho que não. Acho que não é só porque trilhamos o Caminho que estamos protegidos do mal. Não. Ele existe, simplesmente existe e não há o que possamos fazer se fizer parte do nosso Caminho cruzar com ele. O Deus que está em mim não adota a meritocracia segundo a qual aqueles que O ouvem gozarão de protecão divina integral e os que não O ouvemserão punidos. Não. (...) Acho que Deus simplesmente traça caminhos segundo a misteriosa lógica dele e pode ser que o encontro com o mal faça parte. Simples assim. Saber disso e ainda assim seguir o que nossa alma manda é, realmente, entregar a vida a Deus. Seguir o Caminho sem qualquer garantia de nada. Nem contra o mal. Essa é a verdadeira entrega."

Continuemos a jornada, portanto.
O sonho não pode morrer.

De novo Ferreira Gullar: "Porque nosso canto não pode ser uma traição à vida e só é justo cantar quando nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz."

uma lágrima para a artista italiana Pippa Bacca

A italiana Pippa, assim como sua amiga Silvia Moro, era uma artista corajosa e idealista. Ambas saíram de Milão, em 8 de março, com um objetivo: cruzar os Bálcãs e o Mediterrâneo, vestidas de noiva, pedindo carona até chegar a Israel. A idéia era partilhar o cotidiano com as gentes no decorrer da trajetória e, por meio do específico traje, criar uma arte interativa e pacífica. Na volta, fariam uma exposição dos vestidos usados ao longo do caminho, com suas marcas, suas manchas.


Pippa foi encontrada morta hoje, nos arredores de uma cidade não muito longe de Istambul, Turquia. Estava nua. Tinha sido violentada. Seu corpo estava enterrado. Aparentemente o assassino lhe havia oferecido carona.
O mundo não está preparado para iniciativas inocentes como essa, de pura confiança no ser humano.


À Pippa e a todos aqueles que pagam, com suas vidas, a fé depositada nesse mundo de merda, minha lágrima de solidariedade. O sonho deles, o nosso sonho, o sonho de todos não pode sucumbir à maldade.


Fiquei péssima com a notíca. Péssima. Sensibilizadíssima. Mais triste e mais desconsolada do que quando vi o filme "Filhos da Esperança" e me dei conta de a merda brota aos borbotões nas cabeças e nos corações dos indivíduos. Porque Pippa não era personagem de filme; Pippa existia e sonhava -- como eu existo e sonho, você também, nós, eles.
http://bridesontour.fotoup.net/

sexta-feira, 11 de abril de 2008

* * * Transfiguração * * *

Nem vazio,
nem deserto:
silêncio.



Um grande sertão.
Veredas de águas claras
encorajando
tantos corações esgazeados.
Ah, e como é bom.



O sepulcro vazio
escancara a vitória
abundante
que se quer próxima e íngreme
sem pódios
sem festejos fugazes
sem vazios.

com o silêncio.
Testemunhante.



Na quiescência plena da vida,
o moleque contempla
absorto
o nascimento da imensidão.
Reluz.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Mulher-em-trânsito

"Que seja infinito enquanto dure."
Vinícius de Moraes


Vagas em garagens ou em estacionamentos até existem, mais ou menos disputadas, umas com goteiras, outras apertadas. Mas a condição é implacável: impossível estacionar por menos de duas horas. Dois meses. Dois anos. Duas décadas. Dois séculos.

Não há vagas para uma mulher-em-trânsito. Não há transe sem essa mulher. Não há transa com essa mulher – e não porque ela não queira. Não topam transitar ao seu lado, ou nela, ou em conjunto. Porque não há tempo, dizem. Não há tempo.

A maior contradição: a possibilidade do compromisso de duas horas, dois meses, duas décadas, dois séculos é argumento plausível e usado sem qualquer pudor para as corridas de velocidade. Mas a não-existência da possibilidade é fator ainda maior de pavor.


Muitos já imaginam o fim para justificar o não-começo. E não começam. E, então, aí não começam.


Enquanto a posse for mais importante que o sentimento, a mulher-em-trânsito sempre transitará sem vontade de pousar. Sozinha. Aturdida. Odiada.

DOIS PONTOS

(2005, MF)

“― Eu penso, interrompeu o homem e sua voz estava lenta e abafada porque ele estava sofrendo de vida e de amor, eu penso o seguinte: ”
Clarice Lispector,
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres

E lá estava ele, contemplando os dois pontos.


Coordenava um grupo de estudos que se debruçava, vez ou outra, sobre os sinais de pontuação. Já haviam falado sobre o travessão, a vírgula e a interrogação (esta rendeu uma discussão interminável, reuniões e mais reuniões, discordâncias homéricas, filosóficas até. Preferiram todos, de comum acordo, depois de muitos parênteses e colchetes, passá-la para o fim das reflexões). Mas o fascínio dele pelos dois pontos tinha menos a ver com o tal grupo de estudos do que com seu próprio estado de espírito. Sim, hoje ele era um homem de dois pontos. Da pausa antes de falar, mesmo que os pensamentos e as frases brotassem aos borbotões em sua mente quente e irrequieta. Da necessidade de frisar os apostos que usava. Da vontade de destacar as explicações que vinham a seguir. Da experiência em conter seus arroubos. Calma, muita calma nessa hora. Serenidade a duras penas conquistada.


Mas ele já tinha sido um homem de exclamações, muitas, três de uma vez, quando mais jovem, bebendo conhaque sob a lua que o deixava comovido como um poeta sentimental e discutindo política, o PT no poder, a vitória das massas, a ascensão do proletariado, democracia exercida até a última gota, o mundo mais justo, a gente mais feliz. Era um idealista. Um idealista que se esquecia das vírgulas, ignorava todas as pausas e destilava considerações e mais considerações em voz cada vez mais exaltada. A revolução, a revolução!!!!!! Um amigo daqueles velhos tempos dizia que ele era movido a álcool – antevendo, quem sabe, uma saída para a economia nacional (note os dois pontos): o investimento em etanol e uma provável parceria com os Estados Unidos, suprapotência, inimigo histórico. Ah, esses ianques!!!!!!


Depois do conhaque e da rebeldia política, veio o cinema, paixão antiga, filmes intermináveis na Mostra Internacional de São Paulo, aquela turma que sempre se reencontrava, as discussões regadas a cerveja (e a uma ou outra dose de conhaque para ele e os demais iniciados). Os pontos de exclamação deram lugar aos pontos finais. Inevitável. Opiniões incontestáveis sobre os longas-metragens vindos do Oriente. Ponto. Kiarostami é um gênio e ponto. Tem influência do Bresson, sim. Ponto. Godard é outro gênio. Ponto. Wim Wenders tem seus méritos – adoro Asas do Desejo e ponto. Gosto do Tarkovski em Nostalgia, prefiro até, ponto. Acho isso e aquilo. Ponto. A turma toda discutia tudo – mas sempre os fins de sentença eram em ponto. Ao menos, naquela época, as exclamações eram consideradas over (“o cara é um exagerado, até parece que todos os cineastas do momento viraram mestres, nada a ver”) e as reticências, “coisas de gente que só vai ao cinema uma vez por mês”. Foi com a turma dos pontos finais, seus novos companheiros, que ele externou publicamente sua paixão e criou um site dedicado aos filmes, já que os amigos das exclamações haviam dispersado, uns inclusive sucumbido à falácia da centro-esquerda ou da alienação da máquina capitalista. Ah!!!!!! Ah.


Naturalmente, virou professor. Não bastavam os ideais e as imagens. Era preciso ir além, além do lugar-comum das exclamações e dos pontos finais, das vírgulas ignoradas, das aspas mal-amadas e dos impropérios dos parênteses. Do não-dito gritado, escancarado. Virou um professor machadiano, um Quincas Borba dos tempos contemporâneos, dedicado ao léxico e à sintaxe, às leituras e às escrituras, ao Humanitismo e à humanidade das palavras, das frases e das pessoas, tudo com uma releitura pós-moderna. Se Memórias Póstumas de Brás Cubas lhe abriu as portas para os sinais de pontuação (o que é aquele capítulo “Velho Diálogo de Adão e Eva” senão um exercício artístico de síntese por meio de exclamações, interrogações e reticências potencializadas?), Dom Casmurro lhe apresentara Capitu. Ou melhor, lhe explicara Capitu. Justamente a ele, um romântico confesso mas disfarçado, mantido sob controle em nome da maturidade da “metade da vida” (Jung dizia que, em média, o ser humano atingia a metade da vida aos 35 anos). Ele, um homem que, entre as quatro paredes, diante de uma mulher, falava em suspiros e itálicos, perdoava as aspas e as travessões, ignorava os pontos finais e se enchia de reticências. Ha-ha! Ele usava reticências! Isso era inconfesso, que fique entre nós, não espalhe. Pois é, ele reeditava sempre o velho diálogo de Adão e Eva, caprichando nas reticências...


Professor de melancolia? Que nada. Professor da simplicidade. Das coisas simples da vida. Queria ser um escritor como o protagonista de 2046, filme arrebatador, que lhe tirou do sério, que lhe deixou atordoado por dias e dias a fio. Esse romantismo ainda me mata, vai acabar com meu fígado, pensou. Por isso, precisava escrever. Histórias de amor com a poesia dos grandes, a sutileza dos conquistadores e as tintas dos mestres. Simples, simples assim. Se pudesse, como professor, ensinaria aos alunos a simplicidade de uma história como a de Jules e Jim. E como a de Bentinho e Escobar. Com a presença aturdida, mas necessária, sempre necessária, das respectivas Catherine e Capitu. Meus alunos, não temos o controle sobre nada nessa vida. É falsa essa ilusão de controle, de que existe um destino e que nossos passos estão já previstos, de que nós mesmos podemos prever nossos passos e traçar nossos caminhos. O acaso, meus alunos, é o segredo, a grande graça da vida está no acaso. Em deixar as coisas acontecerem naturalmente. Como ocorrera com ele: agora era professor, antes nem imaginava. E contemplava os dois pontos. Impressionante esse acaso. Ele, antigamente, queria tudo no registro da paixão e da urgência. Repercussões imediatas de atos refletidos. Encantava-se com uma garota e já a via como sua mulher, a colocava dentro de sua casa, imaginava filhos, cachorros, finais de semana divertidos numa charmosa casa construída no terreninho lá em Mairiporã. Lula no poder e todos os problemas nacionais resolvidos, com as soluções mais duradouras e exemplares – incluindo aqui o desempenho da seleção brasileira, a valorização do real, uma realidade melhor para todas as gentes, o vigor do cinema nacional. Um mundo em que os filmes de Wong Kar-Wai, Hou Hsiao-Hsien e Arnaud Desplechin fizessem frente aos blockbusters esmagadores e vazios e conquistassem definitivamente o público, o grande público, seus alunos e seus pais, suas futuras namoradas, sua Capitu. Aqui, agora, já. Exclamações! Pontos finais.


Mas não era mais assim. Por isso, apaixonara-se pelos dois pontos, pela singeleza da pausa e da possibilidade de reflexão. De não temer o passo seguinte, mas dar a ele seu tempo de elaboração e concretização. Como se fosse um suspiro mais solene. Dois pontos, dois passos. Ninguém avança se pisar só com o pé esquerdo ou só com o pé direito. Um pé para frente, depois o outro. Os dois pontos representavam isso: a aprendizagem do caminhar, do ouvir o outro e do falar. Versáteis, os dois pontos davam ênfase, serviam de introdução, sugeriam uma explicação, continham ânimos exaltados mas não eram definitivos. Quer sinal mais orgânico? Pense bem: o cérebro e o coração formam dois pontos. O coração e o sexo. O cérebro e o sexo. A cabeça e os pés. O Céu e a Terra. Tudo são dois pontos. Abstraia mais ainda. O medo do goleiro diante do pênalti (ele era goleiro nos rachas entre os cinéfilos): dois pontos. Seus olhos nos meus olhos: dois pontos. Ele em São Paulo, ela em Tóquio: dois pontos. Os dois pontos abriam espaço ao acaso. O que vem depois deles? Ele não sabe, você também não, nem eu.


Naquela tarde de sexta-feira, o sol tentava avançar no céu nublado. Dali a pouco, ele iria encontrar os amigos para um filme, um chope e uma balada. Mas havia se prometido, já fazia algumas semanas, revisitar suas ficções, voltar a escrever, colocar no papel todas as histórias incríveis que lhe vinham à mente no longo caminho de casa até a faculdade onde lecionava, da faculdade para casa, do cinema para casa, da casa para o cinema, da faculdade para o cinema (às vezes, isso acontecia). Esquentou pela terceira vez a xícara de café – era a quarta que tomava naquela tarde, um sono, o sono da semana inteira lhe fazendo companhia. Havia mais de duas horas estava diante da tela do computador. Tocara no teclado apenas uma vez. No documento aberto do Word, lá estavam eles, reluzentes: os dois pontos. Pois então, havia mais de duas horas ele estava lá, fazendo companhia aos dois pontos. Contemplando-os, admirando-os. Diria até que os meditava, sorvendo-os. Aprendendo com eles uma sabedoria escondida e sutil:

segunda-feira, 7 de abril de 2008

É chegada a hora

(2007, MF)


Trilha sonora: Time after Time, Cindy Lauper



O assunto é finito
E as palavras vão e vêm
Já não há o que dizer
E o tom, há tempos,
Parece ser de desdém
(mas ninguém checou)



O silêncio tem algum sentido
Reminiscências remoídas,
Alguma dor distante,
Certos pensamentos
Mas depois de uns minutos
Não tem sentido algum



Nem os talheres ousam
Desafiar o vácuo
O vazio, a incompreensão
A falta do dito novo dito



A única palavra que ainda
Cabe nesse silêncio interdito
É adeus.

Nos olhos meus

"Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei.
Não sei se fico ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo."
Cecília Meirelles




E ele olhou bem nos olhos meus. Naquele dia nada ajudava muito. A espinha obscena no queixo. O cabelo, horrível, repartido ao meio e preso em dois coquinhos na nuca. Elegância zero, alguns quilos a mais, lábios ressecados, café com leite da padaria perfumando o hálito. Pés sujos de andar no chão, escondidos nos chinelinhos também encardidos. As unhas da mão esquerda mais compridas que as da direita. Estava um rascunho de mim mesma naquele dia. Os olhos, porém, destoavam. Pareciam mais vivos do que nunca, se faziam presentes, davam inúmeras voltas ao redor do mundo e retornavam para aquele mesmo lugar: os olhos dele.


E ele olhou bem nos olhos meus.


Pega de surpresa, assim, recuei. Aceitei o olhar, relutante, desviando-o para lá e para cá. Para o balcão, para a amiga que estava parada no balcão, para detrás do balcão.
E ele fez perguntas que respondi sorrindo.
E eu me esfarelava de vergonha – daqueles olhos invadindo docemente os meus, de meu ar-rascunho, dos meus chinelinhos encardidos, dos meus olhos despudoradamente encantados com os olhos seus. Meus olhos me desnudavam – e eu queria negá-los. Por pura timidez.


E aí ele desviou os olhos dos olhos meus. E seu olhar era de adeus. O momento passou, outros e outras passaram na frente, e, quando me dei conta, já era tarde e inexplicável.


Tentei consertar com palavras escritas, com notas desafinadas ou tentativas infrutíferas de harmonia e afinação. Em vão. Ele já não olha mais para mim. Quando olha, não enxerga mais os olhos meus. Vê a espinha, o cabelo, os quilos a mais, os lábios ressecados, os pés sujos. Vê o rascunho. Vê mais um monte de coisas sem importância. Ele olha e não me vê. Também eu fujo dos olhos dele. Antes de olhar, já penso uma infinidade de coisas e aí a vista fica turva, o olhar se perde e não vejo mais nada.


Às vezes, fico vesga quando tento impressioná-lo. Inutilmente.


Os olhos meus.
Os olhos seus.


E se mantenho os olhos fechados, ainda o vejo olhando fundo nos olhos meus, tentando revirar aquela areia fina e pura, cheia de conchinhas e fragmentos de algas, de almas, que suspira embaixo d’água. E soluço, coração apertado, de vontades.

domingo, 6 de abril de 2008

>> >> >> Garrafas >> >> ao mar >> >> >>

(MF, 2007)


E, então, naquele dia, mais precisamente naquela manhã, ela lançou uma garrafa ao mar. O que não sabia ela era que, também precisamente naquela manhã, ele pensava nela e igualmente pensava em lançar-lhe uma garrafa ao mar. Mas achou a idéia exagerada, talvez exacerbada, ou irrefletida. E lançou-se apenas ao mar, a si mesmo, sem a garrafa.



Muito tempo passou. O lampejo daquela manhã tornou-se um vaga-lume que brilhava de vez em quando na bagunça de roupas e cacarecos espalhados dela.




Muito tempo.
Ele, lançado ao mar, com braçadas alcançou outro continente, outra gente, outras.
Ela seguiu escrevendo cartas de amor, verdadeiras ou fictícias, com ou sem destinatários, e continuou enchendo garrafas. Vidrada no mar.




Tempo.
O que é o tempo diante da própria infinidade de infinitudes que compõem a eternidade, a saudade e os sonhos?




Naquela manhã, houve um momento de conexão entre aquelas almas. Uma ligação em pulso ritmado e lembrança em compasso, o telefone tocou três vezes dentro de cada um deles e, quando atenderam, pensaram no outro. Sem qualquer explicação racional. Ela jogou a garrafa. Ele, a si mesmo.



O que são as fronteiras se os rios transformam-se em nuvens, as nuvens tornam-se chuvas e as chuvas alimentam os rios que correm ao mar?




E, então, a garrafa chegou até ele, e ele quis saber dela, responder-lhe, dizer-lhe coisas, e ele não sabia mais se a acharia ou não. Naquela data, mais precisamente – e embora pareça uma contradição – naquela noite em que ele lançou sua garrafa ao céu, ela achou o vaga-lume. Pensou nele. Na garrafa. No quanto tempo. Vislumbrou o rio, a nuvem, a chuva e o mar.



Coincidência?
Ele recolhe retalhos de sua colcha de passados para compreender a própria origem.
Ela recolhe os cacarecos para abrir-se caminho e, no impulso, alçar vôo para compor seu futuro.
Encontrar-se-ão? Ele a ele, ela a ela, ele a ela, ela a ele?


Que bonito, inesperadamente, achar a garrafa. Abri-la. Descobrir-se ali.
Quando o céu está límpido. O pensamento está limpo. E a alma, serena.


Ri-o-da-qui, cho-ve-de-lá.


O presente está naquelas garrafas que hoje bóiam no mar.

sábado, 5 de abril de 2008

~ Carta de Amor ~

"Todas as cartas de amor são ridículas."
Álvaro de Campos


Ao Homem, com prazer



Um dia importante, num ano importante, dentro do meu coração.


Você querido,


Conhece “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”, de Clarice Lispector? Eu não conhecia até fins de novembro do ano retrasado. Mas ele me pediu e eu, sem saber, o buscava. Estava há uns meses sem uma leitura arrebatadora, algumas semanas sem um filme arrebatador. Li com sofreguidão, mas não rapidamente. Falava de mim, para mim. O texto me perturbava, ecoava dentro aqui dentro. Lembro-me de que, no início, suava de tanto turbilhão. De tempos em tempos, fechava o livro. Parecia que uma corrente elétrica tomava conta de mim. Erótico ao extremo. Lírico também. Pulsante. E me descobri Lóri, totalmente Lóri, uma Lóri entregue aos próprios suores e desejos, em seus passos às vezes cautelosos e suaves, em outras vezes firmes e pesados, rumo à descoberta do Outro, do prazer e do amor.


Meu olhar mudou. Meus olhos mudaram. E comecei a descobrir um Ulisses aqui, outro Ulisses ali. Não muitos, mas eles existiam! Descobri Ulisses também no meu passado; era eu quem não o enxergava. E ele passou...


Veio “Dias Selvagens”, do Wong Kar-Wai, mas eu ainda prefiro o título original que diz: dias de ser selvagem. Era isso: eu, Lóri, estava em meus dias de ser selvagem. Por que não? Por que tanto medo da entrega? Ora, para não perder essa liberdade de movimento que tanto valorizo. Mas entrega e liberdade eram antônimos?


A vida continua pulsante e os dias, selvagens. As correntes elétricas continuam me dando choques de tempos em tempos (você “presenciou” o processo). Agora, um universo de possibilidades se abre diante de mim. Preciso tocar o mundo, senti-lo até o talo, estar com gente, gentes diferentes. Então, por mais que tenha sonhos “fixos”, ainda há esse grande movimento que clama por minha presença. O mundo, a humanidade, que preciso apalpar, em que preciso pôr minhas próprias mãos. Senão, acho que jamais vou sossegar. Sou demasiado inquieta, preciso de um longo caminho para achar o que está aqui do lado. Desde criança, adoro essas provas de caça ao tesouro...


... escrevo tudo isso para dizer que está cada vez mais difícil passar, apenas. Tenho tido cada vez mais vontade de ficar. Mesmo que meu “ficar” tenha, neste momento de minha vida, o sentido de “aqui e agora”. Ou, como falam por aí, “hoje é hoje, amanhã ninguém sabe o que será”. Quero dizer: não tenho nada de seguro para oferecer, nenhuma linha narrativa seguramente longa nem promessas de fidelidade ou compromisso. Mas tenho eu mesma para entregar e um monte de janelas abertas. Para o ar circular. Para o Ulisses entrar. E um lar, “infinito enquanto dure”, para proporcionar.


E vontade de receber. De intimidade. De construir uma casinha, mesmo que pequenita, mas que possa ser lembrada por toda a vida.


Estou com saudade, tenho vontade de repeteco e meu coração anda cheio de ternura por você. Sobrevivo bem assim? Sim, sobrevivo. Mas é sempre melhor partilhar – se possível, é claro.


Então, é isso. As janelas estão abertas.
Beijo grande, tão enorme de carinho que pode virar longa-metragem. Gênero: romance.


Eu,
a Mulher (nome duplo, olhos grandes e sobrancelhas, asas e coração maior que o mundo)

Solidão de indivíduo




"Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)"


Carlos Drummond de Andrade, em meu "hino" MUNDO GRANDE

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Reconquista

Sorri o sorriso mais original que eu podia
No meio daquela massa de comentários
Que tanto fazia
Estarem lá ou aqui
Tapei o bocejo com o guardanapo
E guardei o beijo para a sobremesa
Sem ter a certeza
De que, na minha frente, haveria alguém



Voltei do périplo e
O armário continuava igual