Me cansei das reclamações fáceis, dos julgamentos apressados, de um espanto estudado diante dos fatos e dos eventos cotidianos – oh! – e de uma falsa surpresa quando as feras individuais ou coletivas saem de seus casulos-donos-aparentemente-bem-comportados para arranhar com garras afiadas e gosmentas a singeleza artificial, fria e dormente de nossa sociedade. Cansada também dessa dependência patética do dinheiro, do adiamento de sonhos em nome de um nome: estabilidade, crença frágil numa segurança que não se segura na insegurança de corações agitados ou frustrados ou confusos. Estabilidade vem de dentro, não de fora. Paz vem de dentro antes, depois reverbera fora. Gaiolas para as loucas! Prisão para os assassinos! Os políticos não prestam! Abaixo as imoralidades! A turba grita, ensandecida. Enquanto isso, os repórteres comezinhos comem os pezinhos de suas notícias por falta de espaço. Ah, estardalhaço... Discursos de novidades em confronto com arcaicas metas de lucro: esse papo eu já conheço.
Cansada de gente rancorosa que não colabora por pura ranhetice, que finge não escutar porque quer devolver comportamentos, que cobra atitudes quando não tem nem sentimentos a oferecer. Gente ainda presa à Lei de Tabelião. Gente presa à tabela de calorias. Gente presa, pela própria pele botóxica, às aparências. Gente presa aos “fundamentalismos de standcenter”, baratos e vendidos como se fossem posições políticas consistentes e atuais. Ah, quiçá.
Farto do lirismo comedido, grita Bandeira sem levantar ideologias de escritório.
Travessia, brada Pessoa, que podia ser Fernando, Fernanda, Maria, Márcia, Meire, Débora, Denise, Karina, Marina, Mariana, Alexandre, Alexandra, Alejandro, Edmilson, Edison, Roberto, Rudi, Regina, Graça, Ivan, Rosana, Rita, Ricardo, Jaki, Sercan, Pablo, Paco, Peter, Lilly, Rodolfo, Irene, Liane, Ana, Ada, Hassan, Haim, Naim, Breno, Bruno, Bruna, Busi, Bora, Bárbara, Xavier, Jefferson, Jane, Josi, Cidinha, Cecília, Olga, Eugênia, Fred, Fabio, Fabrício, Sonia, Cristina, Lucas, Guilherme, Gabi, Monique, Malu, Mišo, Waleska, Lisete, Susana, Patrícia, Priscila... Pessoas! Pessoa: tra-ves-si-a. Milton: Todo artista tem de ir aonde e onde o povo está.
Mas onde estão os artistas? Cansados, não. Enclausurados? Tampouco. Estão apenas reclusos, como os grilos jovens que esperam a chuva para terra-que-te-pariu. O sol, o vento, o céu azul, a poeira, até a poluição. E zunem esses. E estatelam nas paredes para fazer barulho. Mas estatelam ainda mais nas gentes quando bradam por companheirismo. O que é isso, companheiro? Démodé? Não.
Ontem assistia a um telejornal. Notícia sem link, sem imagem, sem repórter, sem reportagem. Notícia na boca do apresentador. Durou 15 segundos. Criança foi morta por não-sei-quem em não-sei-onde. Na seqüência, 15 minutos de links, imagens, reportagens e repórteres, transeuntes, polícia, advogados, promotores, refletores de caso Isabella Nardoni. Que encontrem os culpados e lhes apliquem a punição adequada. Mas que também encontrem os culpados e lhes apliquem a punição adequada no caso da criança anônima – sem holofotes, sem destaque, anônima, mera rubrica, traço, troço – dos 15 segundos. E da outra criança anônima morta também por alguém no meio da semana, esta com 10 segundos apenas de menção, em outro telejornal, em outra cidade, mas no mesmo país. E que encontrem os culpados e que lhes apliquem a punição adequada no caso de tantas crianças indigentes indigestas deixadas mortas violentadas esquecidas mal paridas desprezadas cansadas como eu, sentidas sem valor sem vida sem comida sem estupor sem futuro só no escuro, crianças que não têm nem um segundo de atenção crianças tantas desse Brasil que me, te, os, as, nos, vos pariu. E... se os culpados também formos nós?
Pessoa! Travessia. Pessoas! Vamos.
Não fechem meu espaço aéreo. E o espaço aéreo etéreo esquecido olvidado apagado de Eldorado dos Carajás? Vigário Geral? Candelária? Irmã Dorothy Stang? Raposa Serra do Sol? Do agricultor morto esta semana lá no Pará por denunciar a ação nefasta das madeireiras livres leves e cínicas? E os mortos do Carandiru? Fecharam o espaço aéreo quando da prisão dos criminosos culpados assassinos daquela família queimada viva no carro no interior de São Paulo? A turba, a polícia, a mídia, os políticos – queremos a cueca usada do Abadía!!! Os cartões corporativos!
Pergunta: Menino, o que você quer fazer? Resposta-roleta: Ganhar o BBB ou ser reitor da UnB!
E você, poeta?
“O meu olhar é nítido como um girassol./ Tenho o costume de andar pelas estradas/ Olhando para a direita e para a esquerda,/ E de vez em quando olhando para trás.../ E o que vejo a cada momento/ É aquilo que nunca antes eu tinha visto,/ E eu sei dar por isso muito bem ../ Sei ter o pasmo essencial/ Que tem uma criança se, ao nascer,/ Reparasse que nascera deveras.../ Sinto-me nascido a cada momento/ Para a eterna novidade do mundo ...” Para a eterna novidade do mundo, caro Caeiro! Nascendo-me já, descanso e não mais cansada caminho, feito girassol.
“E vivam os dólares e os euros das Olimpíadas, danem-se os monges e seus protestos, danem-se todos, iraquianos e afegãos, leio a Veja e me basto, faço sexo mas me castro, tirando a sensibilidade humana que me caracterizaria”, grita um homem de um milhão de dólares, adorado por muitos, invejado por tantos, até por uma vizinha minha, mulher de bom coração. Deus! Deus! Por que nos abandonastes? Ou fomos nós que O/A (heresia!) abandonamos para estar com nossa mesquinha pequenez tosca de auto-suficientes heróis dos tempos?
Miscelânea, você pode dizer. Faltam-lhe objetividade, português castiço, centímetros a mais nas pernas e nos cabelos, quilos a menos, isso é dor-de-cotovelo de desempregada fingindo-se de libertada, mulher encalhada e mal-amada, feia, poros abertos, cravos, cruz. Corrijo: via-sacra, sacra mas não dolorosa, dolorida mas não de sofrimento: de vida.
O que digo, o que grito, o que então?
Fiquem com seu pseudocaminhão, que eu sigo – cansada mesmo, embora tão empolgada e disposta – o meu caminho. Ao lado de Pessoa, de Pessoas, pessoando, pessoaizando, girassol, criança recém-parida, partindo para, humaníssima, irmanada, claro.