segunda-feira, 7 de abril de 2008

Nos olhos meus

"Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei.
Não sei se fico ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo."
Cecília Meirelles




E ele olhou bem nos olhos meus. Naquele dia nada ajudava muito. A espinha obscena no queixo. O cabelo, horrível, repartido ao meio e preso em dois coquinhos na nuca. Elegância zero, alguns quilos a mais, lábios ressecados, café com leite da padaria perfumando o hálito. Pés sujos de andar no chão, escondidos nos chinelinhos também encardidos. As unhas da mão esquerda mais compridas que as da direita. Estava um rascunho de mim mesma naquele dia. Os olhos, porém, destoavam. Pareciam mais vivos do que nunca, se faziam presentes, davam inúmeras voltas ao redor do mundo e retornavam para aquele mesmo lugar: os olhos dele.


E ele olhou bem nos olhos meus.


Pega de surpresa, assim, recuei. Aceitei o olhar, relutante, desviando-o para lá e para cá. Para o balcão, para a amiga que estava parada no balcão, para detrás do balcão.
E ele fez perguntas que respondi sorrindo.
E eu me esfarelava de vergonha – daqueles olhos invadindo docemente os meus, de meu ar-rascunho, dos meus chinelinhos encardidos, dos meus olhos despudoradamente encantados com os olhos seus. Meus olhos me desnudavam – e eu queria negá-los. Por pura timidez.


E aí ele desviou os olhos dos olhos meus. E seu olhar era de adeus. O momento passou, outros e outras passaram na frente, e, quando me dei conta, já era tarde e inexplicável.


Tentei consertar com palavras escritas, com notas desafinadas ou tentativas infrutíferas de harmonia e afinação. Em vão. Ele já não olha mais para mim. Quando olha, não enxerga mais os olhos meus. Vê a espinha, o cabelo, os quilos a mais, os lábios ressecados, os pés sujos. Vê o rascunho. Vê mais um monte de coisas sem importância. Ele olha e não me vê. Também eu fujo dos olhos dele. Antes de olhar, já penso uma infinidade de coisas e aí a vista fica turva, o olhar se perde e não vejo mais nada.


Às vezes, fico vesga quando tento impressioná-lo. Inutilmente.


Os olhos meus.
Os olhos seus.


E se mantenho os olhos fechados, ainda o vejo olhando fundo nos olhos meus, tentando revirar aquela areia fina e pura, cheia de conchinhas e fragmentos de algas, de almas, que suspira embaixo d’água. E soluço, coração apertado, de vontades.

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