domingo, 4 de outubro de 2009

retrato em sépia


Quando meu sofá saiu de seu lugar de sempre, rumo à casa de uma nova dona bem longe de mim, chorei. Naquele dia, chorei mesmo. Menos pelo sofá em si, também por ele, mas a constatação do vazio na sala ecoou cá dentro. Como que se a mudança se anunciasse concreta, inadiável, de algum modo irreversível. Ora, eu já vinha me preparando há tempos para a despedida gradativa dos móveis, do espaço outrora ocupado, de um certo estilo de vida. Mas o primeiro passo, o primeiro ato, o primeiro teste me trouxeram um ar fresco e forte de pura realidade. Um susto, um corte inesperado, algum sangramento. Era e ponto. Ou melhor, foi.

Assistindo a “Caos Calmo” me dei conta: meu sofrimento fragmentado de 2009 advém de um luto. Sim, estou vivendo um luto simbólico. Porque voltei e não encontrei mais meu sofá (o metafórico). Porque voltei e reconheci o vazio deixado por ele. Porque me desapeguei totalmente dele (não sinto mais sua falta). Porque a mudança já se instalou de modo inevitável. E, porque, abismada, não encontrei palavras decentes para dizer que eu não tinha nada a ver com aquela imagem minha mantida à revelia no freezer. Que pessoas não podem ser guardadas congeladas a fim de que não mudem depois de experiências tão instigantes. Não descongelam e aí ficam iguaizinhas a antes, não. Que há coisas que desgrudam da gente no meio do caminho porque não fazem mais sentido. Outras são deixadas propositalmente, pois não se encaixam mais no presente rumo ao futuro, como o sofá. Desapegar é duro e dolorido, mas isso nos torna ainda mais próximos do que somos de fato. E o mais difícil é desapegar da gente e da imagem do outro que carregamos em nosso bem-querer.

Meu luto simbólico vem sendo povoado de respiros, por isso foi tão complicado identificá-lo. Vivi outros lutos antes: o luto pela morte de meu pai, meu luto pós-cirúrgico, meu luto pós-demissionário, o luto breve – e belamente grávido – pela morte daquela que eu era no início de grande e mítica jornada. Mas esse luto de agora é capcioso, pois vivo as perdas dos outros quanto a mim. Passo por um luto que é meu, me pertence, mas envolve também os pedaços de mim que ficaram com os outros e que são chorados por eles (mas não são mais meus). Como que se me devolvessem roupas doadas, já tão justas, a fim de que eu volte a ser quem era antes, cabendo nelas de algum jeito. Já falei disso, não é? Essa repetição faz parte do processo.

Ando num caos calmo, como o Pietro do filme. Tenho meu banco de praça e minhas viagens. Já passei pelo período mais complicado, o da raiva seguida pela depressão. Agora, aos poucos, caminho para a aceitação. Também não sou mais aquela do início do luto. Não choro mais pelo sofá – hoje eu nem teria um outro. Mas sua lembrança me conforta nessas noites esquisitas de primavera, em que às vezes o frio da ausência quer chamar mais atenção que o natural brotar das flores. Jamais poderia ter empreendido a jornada mítica com o sofá a tiracolo. Assim como não posso seguir adiante, neste momento, carregando determinada bagagem de sentimentos, relacionamentos e posturas. Que se eternizem num belo retrato em sépia.

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