Beto não se importava em pagar uma rodada de cerveja aos colegas de trabalho, não rachar o estacionamento quando dava carona ou subtrair algumas dezenas de reais dos gastos de combustível da conta dos amigos que vez ou outra acompanhavam-no na ida à praia. Beto era tido como um cara generoso – e, de fato, entre os seus, não hesitava em pagar sanduíche alheio quando fazia questão de determinada companhia. Raramente deixava as namoradas abrirem as bolsas no jantar à luz de velas; claro, respeitava aquelas que faziam questão de dividir, mas delicadamente compensava com flores durante a semana. Beto também acudia os parentes, mesmo antes de lhe pedirem algo. A generosidade, mais que um gesto espontâneo, um traço de sua personalidade, era uma obrigação prazerosa para Beto. Tinha que, tinha de. Precisava, por alguma razão obscura de seu passado difícil e pontuado por privações, evitar que a gente querida se sentisse impedida de fazer algo por causa de dinheiro.
Mas, para Beto, gradativamente todas as outras relações – humanas, financeiras e até políticas – passaram a ser mediadas por dinheiro. Seria seu trabalho, dez ou mais horas diárias rodeado por cifrões e discussões sobre reais, dólares, euros, libras? Considerava injusto pagar tal quantia por um grelhado no almoço; se fosse um ensopado, ficava menos aborrecido. Os preços das coisas subiam, o combustível, o teatro, a soja, até o barbeiro, Beto chiava, mas pagava. Jamais fraudou o Imposto de Renda. Jamais desonrou seus compromissos. Dizia que o governo era refém das atrocidades especulativas, mas repetia detestar política. Tudo para Beto era pagável. Se caísse na rua, como ocorreu uma vez, sentia-se no dever de pagar ao samaritano que o acudisse, como fez ao homem que o ajudou a levantar e gentilmente recolheu os papéis de sua pasta. Quando a mãe lhe levava uma torta ou o arrozinho-da-infância, sentia o impulso de pagar-lhe. Mas, filho, faço isso por amor! Uma amiga deu-lhe umas fotos do fim de semana na praia e ele, impulsivamente, lhe pagou por isso. Certo dia, tão habituado, depois do sexo foi logo abrindo a carteira para agradecer à nova namorada por prazer tão especial. Pediu desculpas quando ela lhe bateu a porta na cara, mas não pestanejou ao pagar o porteiro que a ajudou a encontrar um táxi naquela hora.
Beto acreditava na generosidade – na dele, mas não na dos outros. Criticava essa gente interesseira que só pensava em dinheiro e não sabia mais o que era partilha. Deu quantia vultosa ao moleque, um turista também, que o acompanhou naquela bela trilha da praia carioca, durante o feriado de Corpus Christi. Não entendeu a indignação do amigo do amigo que, em pleno domingo à noite, passou em sua casa para entregar-lhe o pen drive esquecido. Será que ele achou pouco 50 reais?, perguntou-se. Um dia, uma senhora puxou papo com ele na livraria que adorava frequentar. Contou-lhe histórias de infância, motivada talvez pelo título de uma obra. Comovido, Beto quis lhe pagar; não tinha dinheiro, indagou se ela aceitava cheque ou cartão de débito. Ninguém tem obrigação de nada nessa vida, afirmava Beto, por isso cada gesto tem seu preço. Suspirava: culpa desse capitalismo selvagem que nos ronda...
Ele tinha salário de cinco dígitos, poupança e fundos de seis dígitos e nutria um certo medo das oscilações econômicas desse governo de merda. Não sei se o dinheiro vai dar, não sei... Porém, não divulgava tais preocupações íntimas, não queria apavorar os amigos, a família. Tampouco ajudava os pedintes na rua: não posso lhes dar o peixe, afirmava. Alguém precisa ensinar-lhes a pescar.
Beto era honesto, nada arrogante, não ostentava seus cifrões, rapaz simples, e, vez ou outra, quando tinha de pegar metrô, pois o carro ia para a oficina, achava injusto o preço da passagem. Solidarizava-se com os anônimos, trabalhadores como ele. Beto era querido, pois não deixava de ajudar um amigo. Beto era cidadão, pois pagava seus impostos e contas corretamente. Na somatória de tudo, diríamos, Beto é um homem dos nossos tempos. Beto tem a generosidade dos nossos tempos. Beto estranhou, dia desses, quando quis pagar a si mesmo pela bondade que o reflexo no espelho teve ao lhe sorrir, assim tão enternecido, tão espontaneamente. Só podia ser sinal dos tempos. Desses nossos tempos.
Um comentário:
eu AMO tuas ficções.
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