A vida invisível, você sabe, ela existe.
Um dia ela bate na porta. Ela bate a porta.
Melhor manter o abajur aceso, o alarme ligado, a agenda aberta.
O telefone em seu volume máximo, o celular do lado, o cartão de crédito.
É melhor.
A vida invisível, para uns poucos apenas, certo dia passa a coincidir com a vida concreta. Essa do dia-a-dia. Essa de todo mundo. Essa.
Você acorda e tudo parece igual. Mas não. Não.
Uma sensação profunda e física. Incompreensível no plano da razão. Totalmente abstrata e absurda, mas sua. E pura. E intensa. Insensata. E intransferível. Quase uma dor. Quase.
Um duplo. Você não está só, porque também está lá. Mas lá você tem o mesmo nome, quiçá quase a mesma origem, a mesma idade, só que uma outra vida. Repleta, contudo, de coincidências com sua vida daqui. Um ser autônomo e, ao mesmo tempo, parte de você. Uma outra existência no aqui e agora. Sua companheira.
Ele, o copo de vodca na mão, o silêncio quebrado por uma dor insuportável, mais doída que os conflitos sangrentos ali do lado. O que é que dói, me diz, me diz? Quase bêbado, ele não diz. Ele dorme.
Ele, o cigarro de maconha na mão, um não, dois, três, o silêncio quebrado por uma dor insuportável, mais doída que o peso daquela dor necrosada da infância misturada à da adolescência ferrada. Fale comigo. Ele não fala. Calado, some, se esconde.
A vida invisível.
Ela, a outra.
Ele, ele, as portas.
Histórias voadoras. Frio no pé numa noite de verão.
Um verão que não é nada do que eu havia pensado.
E a busca por respostas em páginas alheias, sob notas e acordes doloridos e doídos e olhos pesados de sonho. Não quero que acabe, mas não sei por onde começar, Kieslowski. Bem que você estava me dizendo.
É dessas coisas que eu quero saber.
Estou em Buenos Aires também, morando em Barcelona com meu homem palestino. Mas estou também andando de bicicleta com a bermuda quadriculada e as sandálias, mochilinha preta nas costas, rodeando o rio BioBio. Estou na Noruega dando aulas de filosofia antes de voltar a Salvador, para a casa antiga que comprei. Estou no Chipre decidindo se faço um mestrado na Croácia ou se volto a Istambul. Fizemos amor no mar, na piscina. Hoje fui conhecer os voluntários que constroem casas com e para os moradores de comunidades carentes, quero participar de um mutirão. Voltei da Amazônia com a sensação de que o tempo não passou ao passar rápido demais. Não, não voltei. Citei Salif Keita, achei que você devia conhecer. Apareceu um sorriso no seu rosto cansado, você sorriu! Meu pai morreu, um vazio. Minha sobrinha nasceu, e a cítara já me contou uma série de segredos do mundo, justamente esses da vida invisível.
Dessa que me conecta a você.
Dessa.
Com você.
Invisível. Invisível. Invisível.
À porta.
Um comentário:
"Quase uma dor. Quase".
-- bem assim --
"Um verão que não é nada do que eu havia pensado".
-- Percebi que não havia pensado nesse verão, e sim no meu. Num mar de idéias, notícias frecas, veraneio intelectual --
"Não quero que acabe, mas não sei por onde começar".
-- Cartão de crédito... telefone, celular, e-mails, propagandas de mim mesma em pleno veraneio --
"Invisível. À porta".
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