sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

no país dos espelhos


Fase do rodo.
Puxa água daqui, puxa água de lá. Mais rápido até que a disposição do ralo em engolir as disposições antigas e a poeira de outros sentimentos goela abaixo.

As marcas estavam no piso-chão-fundo-do-momento-presente.
Não mais quartos escuros e recantos sob uma sombra feroz do si-mesma. Tudo ficara demasiado grande, grandioso ou engrandecido, enorme, imenso – até o si-mesma. Então, nem quartos nem recantos. Agora era até mais poético, posto que mais profundo; mais intenso, posto que largo e tridimensional. Saíra do delimitado, fora à paisagem. Encontrava-se no vale, no mais vertical de seu vale, no mais abaixo, na altitude mais ínfima. Estava no charco. No charco de seu vale verde. Rodeada de montanhas que iria escalar ou que já havia escalado. Cercada por leves borboletas às voltas com o daqui a pouco. Atolada até os joelhos, até os cotovelos ou até os cabelos, quando agachava-se. E precisava deslizar, de tempos em momentos.

O instante exato de assimilar um dos mais delicados e fundamentais aprendizados da jornada mítica da heroína que já era: no fluxo impermanente e transcendente da existência, as imensidões daqueles que haviam cruzado a fronteira teriam inevitavelmente montanhas e vales. E isso não significava nada além disso: estava na borra do café, num dia de domingo, de natividade, de lua cheia, de maré alta e gutural. Quanto mais denso o charco, mais admirável a trilha de subida à montanha.

Era, portanto, momento de paciente espera, esperança. Momento de identificar, no berçário do mangue, os brotos com raízes, os sem raízes, os sorrisos e as sabedorias-girinos. Descubro-me anfíbia, além de humana-alada. Uma anfíbia alada, totalmente humana. Que vive na água, na terra, no ar. Os heróis – sem nenhuma arrogância, sem nenhuma modéstia – têm mil faces, intuiu Campbell mítico. Diariamente descubro uma, reencontro outra, assisto dolorida à ecdise de uma mais.

Um vale, um charco, oxigênio abundante mas rarefeito naquele momento. E grande, grande, grande, tudo é muito amplo e tão universal, único e divino. A angústia do viver, disse Rilke, é o momento do estar-em-Deus mais evidente e palpitante. Deixar-se nEle. Porque somos nada, sou nada, ainda que heroína, heróica. Sou um tudo muito miúdo atolado num charco dentro de um laaaaaaaaaaaaargo vale.

Confiança.
Paciência.
Perseverança.
O rodo. E continuemos escorregando ralo adentro as desnecessidades e os trapos dos aprisionamentos egóicos.
Briluz.


quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Para a Gabi Y

Quando a mulher viu de longe o vulto, não lhe deu as costas nem se aproximou: estendeu-se docemente no chão, quase entre o devaneio e a devoção, como se pedisse para que fosse descoberta. Ou despertada. Ou amada, loucamente amada, por qualquer ser vivente que farejasse. Havia uma disposição louca e veemente para a vida, além de um profundo respeito pelo mistério. Não importa o que se passou ali: importa mesmo é o que se passa cá dentro, além-músculos, num espaço chamado coração, num tempo chamado alma. E se fez a luz... e da luz, do barro, desse espaço e nesse tempo, surgiu a mulher. Essa.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Cotidianidades (ou: amor para quê?)

― Desculpe-me, o que a senhora disse?
― Estou apaixonada.
― Não estou compreendendo, sou uma caixa de banco.
― Como assim, uma caixa de banco? Uma caixa que serve de banco?
― Minha senhora...
― Senhorita!
― Senhorita, eu sou funcionária deste banco e estou aqui para receber seus pagamentos.
― Certo. É isso que estou fazendo: lhe dando minhas contas e meu dinheiro. Mas também estou lhe contando que estou apaixonada.
― Bom para a senhora. Para a senhorita.
― Não sei se é bom. Ele não... Não sei se ele também está apaixonado por mim.
― Acontece.
― Já aconteceu com você?
― ...
― Mesmo assim, eu continuo apaixonada.
― ...
― Ontem sonhei com ele. Estávamos caminhando lado a lado. Até que eu virei à direita e ele, à esquerda. Parecia natural que nos separássemos. Será que isso é um sinal?
― Perdão?
― Um sinal de que não vamos ficar juntos?
― Não sei. A senhorita vai pagar essa fatura adiantado também?
― Depende: se você disser que sim, que ficaremos juntos, eu pago. Se falar que não, não pago.
― Minha senhora... senhorita... não posso influenciar num pagamento.
― Estou apaixonada e ninguém se interessa.
― Talvez seja melhor pagar a fatura na data certa.
― Então...
― Bem, a senhorita decide. Eu, particularmente, nunca tenho dinheiro a mais para adiantar pagamentos.
― Mensagem cifrada? A paixão é uma fatura que não se deve pagar adiantado.
― ...
― A paixão é uma fatura! Ou seja: há sempre um preço a se pagar! E jamais se deve adiantar o pagamento. Tudo em seu tempo certo. Isso é muito sábio!
― A senhorita quer seu troco em cédulas de um real?
― Ele parece sempre tão afável comigo, sabe, que tenho dúvidas se faz isso por pura amizade ou porque quer inutilmente me conquistar. Digo inutilmente porque já fui conquistada, claro.
― Senhorita...
― No início, eu não o achava muito bonito, não, sua barbicha me incomodava, seu jeito de arrumar a gravata também, porém algo aconteceu. Algo sempre acontece.
― Tem um papel aqui que não é uma conta, é uma mensagem formal, timbrada e assinada por...
― Meirelles! Luís Gustavo de Meirelles!
― Perdão, tome, senhorita. Desculpe-me.
― Foi o bilhete que ele me deu. Anteontem. Pensei que o tivesse perdido, ufa. Eu guardo todos, sabe. Para um dia contar a história de nossa relação.
― Por acaso ele é seu chefe ou coisa assim?
― Eu lhe dei cem reais e setenta centavos, para ajudar no troco.
― Perdão?
― Falta um real. E lhe dou os trinta centavos de volta.
― Mil desculpas, senhorita. Eu me distraí.
― Vai ver você também está apaixonada. E não é correspondida.
― Não, perdão, é que...
― Ele não é meu chefe. É meu advogado.
― Ah...
― Que culpa tenho eu de me apaixonar por meu advogado? Por que todos ficam me julgando?
― Senhorita, perdão, não estou julgando nada e...
― Não fui casada, não estou me separando. Ele não é meu advogado para assuntos familiares. Nada a ver. As pessoas são muito chatas em seus comentários.
― ...
― Se você tivesse observado bem o bilhete, veria que ele usa o termo “estimada”. “Estimada” é quase querida. Li a carta de outros advogados e eles só usam “senhora isso” e “senhora aquilo”. Pode ser um sinal de afeição especial, não pode?
― Os advogados daqui do banco usam “estimada” sempre que escrevem aos clientes. O tom, inclusive, é parecido ao desse bilhete. Perdão, li sem querer.
― Decididamente, você é contra o amor. Vou pagar a fatura agora.
― Não!
― Tenho o direito! Vou chamar seu gerente!
― Perdão, senhorita, pague a fatura quando quiser. Não sou contra o amor, foi isso que quis dizer.
― No cartão de débito.
― A seu dispor.
― ...
― ...
― ...
― Acho que a senhorita deve fazer o que tiver vontade. Não há regra.
― ...
― Passei anos escondendo meu amor por meu colega do caixa número três.
― E?
― E nada. Um dia ele mudou de banco. Meses depois, mandou convite de casamento. Eu chorei e chorei e chorei. Daí passou.
― Que triste.
― Um dia, um cliente desabafou comigo como a senhorita está fazendo.
― Ele também era apaixonado por um advogado? Ou uma advogada?
― Não.
― E então?
― Era apaixonado por mim.
― ...
― Seu cartão.
― Oh!
― Nos casamos, nos separamos.
― Simples assim?
― Pronto, tudo pago, minha senhora. Nosso banco agradece sua preferência.
― E...?
― E nada. Chorei, chorei e chorei. Daí passou.
― Lamento. Lamento tudo: minha paixão, sua paixão, seu cliente, sua preferência.
― Tenho de atender o próximo cliente, senhora. Senhorita.
― Você acha, então, que devo me declarar?
― Suas finanças estão em ordem, senhorita. Talvez o advogado não a importune mais.
― Que frieza. Que pessimismo!
― ...
― Mas você tem razão. Cada um para seu lado. Sempre que venho ao banco, o advogado some. Não devo mais pagar as faturas. Mas ele sempre me escreve para me lembrar de pagá-las, e eu me comovo. Daí sonho sempre o mesmo sonho antes do dia 15...
― ...
― Mas seu ex-marido...?
― Boa tarde. O próximo.

...

― Pois não.
― Preciso pagar uma fatura. Ei, você não é a moça da praia? Olha, desculpa se eu...
― O próximo!

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Romântica inveterada

(MFV, 2007)

A manhã foi densa, dessas manhãs arrebentadas de tantos suspiros e desatinos calados. Um ônibus me levou para longe e me trouxe de lá, preenchendo de imagens banais – mas nem por isso desagradáveis – a película cotidiana que passava diante de meus olhos inseguros. Sim, estavam prestes a desabar, a cair em desatino, a revelar todos os segredos. Olhos com saudade... O que fazer numa manhã densa quando seus olhos sentem... saudade?

O coração espremido e socado, sovado, dentro de um tórax protetor, também ele saudoso. O que fazer quando todo seu corpo sente saudade?

Fora do ônibus, atravessava a rua com a delicadeza daqueles que sabem que os momentos podem ser imensamente frágeis. Cuidado. O sorriso prestes a dissolver... E aquele olhar, olhar de candura, eu diria, um olhar encantado. Pertenceu a mim. Um dia esse olhar encantado pertenceu a mim. Os momentos. O coração virando gomo de fruta. Delicadeza. Espreme, espreme que chora. Eu quase não queria avançar no espaço: sentia um respeito imenso pelo encontro de moléculas no ar, não queria separar nenhum dos casais de oxigênios, nitrogênios, gás carbônico. Meus olhos, os olhos dele, já não estávamos. Por que já não estávamos? Odeio o tempo. Hoje, agora, odeio o tempo. Amanhã... Mas a flor seguia perseverante no meu jardim. A flor dele, imberbe e selvagem, deixada à própria sorte. O coração encolhidinho, quase um feto. Não respiro. Essa densidade toda... O mundo invisível estava fazendo amor, que forte. Tudo está muito junto, muito grudado, muito abraçado. O sol com as nuvens, daí o nublado. O vento com o vapor d’água, daí a umidade. Uma borboleta com um beija-flor, como no samba da moça descalça, daí a poesia. Densidade. E saudade.

Em casa, previ um desmaio. É o amor que arrebenta na aorta, avisou o poeta, e pensei que fosse cair sufocada em mais um sofá de desesperações.
Incurável. Romântica incurável. Inveterada.
O mundo das miudezas faz amor enquanto eu engulo a saliva das impossibilidades...

Não! E sim.

Uma mulher romântica e um telefone. Nas teorias de gênero e nos filmes de Hollywood o que aconteceria? Quem se importa?
Telefonei – e danem-se as regras, os idiomas, os custos do DDI.
O coração: um gomo, um cogumelo, um coelho, um espelho, um mundo tão grande e tão cheio de gente, um universo com um trilhão de vias-lácteas.
Os números... um a um... fazendo sentido numa grande conexão de cabos e transmissões que eu nem entendo. E caminhando, feito soldados, do meu telefone até:
Hello.

Os olhos. Os olhos saudosos saltitavam por causa dos ouvidos sortudos. Esses ouvidos que recebiam a música do bem-querer.
Houve algum susto do outro lado. Um susto, uma entonação de surpresa e uma frase com tom de sorriso. Eu vi os olhos, eu os vi, eles me pertenceram por alguns segundos!

Delicadeza.

A tarde seguiu densa, os amores invisíveis não deixaram o dia de hoje, a miudeza ruidosa em orgasmos tão suaves quanto gentis, e meu coração ainda espreme, espreme que chora. Mas sou uma mulher romântica por natureza, e não posso deixar de me encantar pela poesia. Um beija-flor com uma borboleta. Ele lá, eu aqui. Um telefone. A flor imberbe, ah, florzinha. E, no silêncio da distância e dos fusos, sonhos difusos, quereres indecisos, nossos olhos admirados pelas surpresas que não hão de esgotar.

a vida invisível

(MFV, 2009)



A vida invisível, você sabe, ela existe.
Um dia ela bate na porta. Ela bate a porta.

Melhor manter o abajur aceso, o alarme ligado, a agenda aberta.
O telefone em seu volume máximo, o celular do lado, o cartão de crédito.
É melhor.

A vida invisível, para uns poucos apenas, certo dia passa a coincidir com a vida concreta. Essa do dia-a-dia. Essa de todo mundo. Essa.

Você acorda e tudo parece igual. Mas não. Não.
Uma sensação profunda e física. Incompreensível no plano da razão. Totalmente abstrata e absurda, mas sua. E pura. E intensa. Insensata. E intransferível. Quase uma dor. Quase.

Um duplo. Você não está só, porque também está lá. Mas lá você tem o mesmo nome, quiçá quase a mesma origem, a mesma idade, só que uma outra vida. Repleta, contudo, de coincidências com sua vida daqui. Um ser autônomo e, ao mesmo tempo, parte de você. Uma outra existência no aqui e agora. Sua companheira.

Ele, o copo de vodca na mão, o silêncio quebrado por uma dor insuportável, mais doída que os conflitos sangrentos ali do lado. O que é que dói, me diz, me diz? Quase bêbado, ele não diz. Ele dorme.

Ele, o cigarro de maconha na mão, um não, dois, três, o silêncio quebrado por uma dor insuportável, mais doída que o peso daquela dor necrosada da infância misturada à da adolescência ferrada. Fale comigo. Ele não fala. Calado, some, se esconde.

A vida invisível.
Ela, a outra.
Ele, ele, as portas.
Histórias voadoras. Frio no pé numa noite de verão.
Um verão que não é nada do que eu havia pensado.
E a busca por respostas em páginas alheias, sob notas e acordes doloridos e doídos e olhos pesados de sonho. Não quero que acabe, mas não sei por onde começar, Kieslowski. Bem que você estava me dizendo.
É dessas coisas que eu quero saber.

Estou em Buenos Aires também, morando em Barcelona com meu homem palestino. Mas estou também andando de bicicleta com a bermuda quadriculada e as sandálias, mochilinha preta nas costas, rodeando o rio BioBio. Estou na Noruega dando aulas de filosofia antes de voltar a Salvador, para a casa antiga que comprei. Estou no Chipre decidindo se faço um mestrado na Croácia ou se volto a Istambul. Fizemos amor no mar, na piscina. Hoje fui conhecer os voluntários que constroem casas com e para os moradores de comunidades carentes, quero participar de um mutirão. Voltei da Amazônia com a sensação de que o tempo não passou ao passar rápido demais. Não, não voltei. Citei Salif Keita, achei que você devia conhecer. Apareceu um sorriso no seu rosto cansado, você sorriu! Meu pai morreu, um vazio. Minha sobrinha nasceu, e a cítara já me contou uma série de segredos do mundo, justamente esses da vida invisível.
Dessa que me conecta a você.

Dessa.
Com você.

Invisível. Invisível. Invisível.


À porta.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Ana mishtak ilak.
Só por hoje, abra a porta. Agora é sua vez. E a minha de saber se está tudo bem.
Por favor.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

* ( * * That night ** ) * *

To Q. el qways, dearest forever


That night
Night of dreams and desires
I was trying to get the hidden meaning behind the stars:
‘cause the full moon was so deeply beautiful that
I felt myself connected to something else and bigger and intense and magic.
What could it be?
It was that night.

That night I cried not because of sadness
It was happiness – a deep happiness I couldn’t understand at that moment
Something close to happen
Flow of tears
The stars didn’t tell me anything, they let me realize by myself
That night
When you knocked the door.

That night
As you knew what was going on
In fact I opened two doors, but I hadn’t known this yet
The first one you could see me through
The second one was from my heart.
And then. And then.

That night
My tears
Smiles
Your long, long eyelashes touching my feelings
Surprise.
Who were you?
Who could you be?

Other evenings and nights came
Breaking rules both of us
Trying our first time, different first times,
Together, always both of us,
All experiences had been special
And delicate like small and wide flowers.

But that night, the first one, will be forever in my memory:
Because behind the stars was written a name,
Only now I got it.
And that name was yours.
The one who pointed me the way to follow
At the beginning of the new stage in my life.
With love.
With so true love,
Between dreams and desires.

momentos miúdos

No cinema, "Ninho Vazio", de Daniel Burman.

Na cabeça, uma profusão de idéias. Diálogos ininterruptos com o filme, com a história, com a estética.

No coração, a vontade de flutuar. As lembranças. A saudade. Lágrimas furtivas. Era a paisagem da Terra Santa, era a piscina de Cuba na qual eu flutuava. Eram eles, era eu.

Na rua, a feliz constatação: a vida real já estava coincidindo com a vida invisível. Bom sinal.

A trilha sonora: "Summer", de Joe Hisaishi.
O figurino: a saia florida.
O sabor: chá verde com gengibre e laranja. Gelado.
A característica: bochechas rosadas. Sempre.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Che sarà della mia vita, chi lo sà?

(retrato de uma artista quando jovem... por mari mello, 2005)



Não sei exatamente como tudo começou – no mundo interno, invisível, eu quero dizer. Seria mais um romance de férias, restrito aos dias calientes e às noites longas numa ilha sensual e instigante. Continuaria eu mesma, com meus carinhos e meu jeitinho, meu modo tão meu de reagir e de sorrir, com meus momentos de solidão. Mas não.

Tinha tudo para ser, logo de início, o cara errado. Destoante de quaisquer expectativas. Ele deixou claro que não era príncipe nem perfeito. Anunciou seus defeitos e suas fraquezas em tom solene até. Machucado de amores frustrados de um passado nem tão longínquo, ele mostrava suas muralhas com algum orgulho. Mas abria portinhas aqui e ali e quase me implorava para entrar. Eu já estava lá dentro, sem querer e sem perceber, e me sentia acolhida. Nem segura, nem confortável. Acolhida.

Já não entendia muito do que acontecia; aceitara o pacote completo, a sensibilidade e a rudeza, a acolhida e a defesa, o ataque e o gostar, e agora lidava com alguém cujo comportamento me provocava. A razão achava defeitos, exaltava as incongruências de uma relação esquisita, quase equivocada. O coração, por sua vez, seguia caminhando nos labirintos do castelo do lado de dentro das muralhas. Não buscava um príncipe, seguia um homem como qualquer outro homem, tão atrativo para a mulher que eu era naquele momento. Meu coração o seguia, apenas. Que estranho. Tudo tão deslocado dentro de mim, embora os momentos se encaixassem numa cadeia perfeita de eventos.

A ruptura com meu modus operandi foi imensa, foi intensa. Descobri eu minhas muralhas, escondidas atrás de ciprestes e de belos caminhos de hibiscos. Desmontei as bibliotecas de consulta para meus discursos amorosos e minhas desculpas e minhas recusas e meus tudos e nadas. Fiquei assustada. Mas era o cara errado! Quem disse, razão? Eu me sentia tonta com tantas revelações.

Veio o adeus, até breve ou até nunca, a distância, o silêncio e uma reação já tão conhecida de minha parte. A frieza durou pouco, a saudade foi mais forte. E, aos pouquinhos, para não me espantar ainda mais, reconheço pedacinhos miúdos de aprendizado dentro e fora de mim. Reconheço também que sigo nos labirintos, mas revezo entre os meus e os dele. Que o que será não importa, embora eu queira reencontrá-lo para saborearmos juntos, no verão, novidades e surpresas. Continuar a operação desmonte, acabar com a operação sabotagem, lançar-me numa convivência que salutarmente recusa os caminhos mais sabidos dentro de mim.

Hoje quero aprender a carregar comigo e com carinho o vaso de vidro com as frescas flores de um gostar, que também ainda não conheço. Um presente que, aos poucos e com tato, estou aprendendo a identificar. Não é a paixão de antigamente nem uma vontade um tanto doentia de estar junto. Já não me sinto atacada por atitudes que são apenas outras e de um Outro. No comecinho da manhã, quando desperto de madrugada, às vezes me atordôo com a falta de explicações para meu sentir, meu suspirar. Tem um experimentar que é quase artístico, que é quase divino, posto que tão humano e falível.
Trata-se da entrega. E é nessa direção que quero continuar.

(Barcelona?)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

intersecções

(Dé Didonê, 2008)
Para a espevitada e sonhadora amiga,
que, aos poucos, aprende a usar suas belas asas



Distraídos com outras brisas e com o sabor de cafés de outros tempos, com outros temperos e açúcares, ele e ela se deixaram escorregar num encontro macio e acolhedor. Salvador reluzia, exalava condimentos e cores, muita música, muita percussão, as ondas estalavam nas praias todas e nos corpos todos. Para que pressa, então? Expectativas, cubos de gelos, meias ou luvas?

Era a intersecção de duas vidas inteiras, vividas de verdade, na composição de um poema fluido na primeira pessoa do plural. Nós. E sorrisos, e partilhas, e histórias, e olhares, e suspiros. Suspiros?

Não era nada de mais, ainda assim era tudo. E era bom, continuava macio e acolhedor, era bonito também. Tinha jeito de pôr-do-sol com céu rosado e brilhante, à beira do mar. Porque não tinha nada excepcional, exuberante ou com show pirotécnico; e, por isso mesmo, pela singeleza do escorregão suave um na vida do outro, devagarzinho, como se fosse um balé, aqueles encontros tornavam-se tão especiais.

O dia ganhava uma hora a mais, além das obrigações todas, do comer e dormir e escovar os dentes e trabalhar e passear e limpar as janelas, que era a hora deles.
Deles.

Minutos, dias, semanas. Há sempre uma despedida – mas a largura dela não nos pertence, ainda menos a mim, que assisti à história de longe, de ouvidinho e coração em compasso melódico, suspirando eu também por um escorregão aquático e lunar na vida de um alguenzito meio torto, meio rude, mas tão alguém.

A despedida daqueles dois foi menos uma ruptura e muito mais reticências ou travessão. Porque era preciso iniciar um novo parágrafo. Ou um novo verso, talvez. Ou ainda, uma história longa e linda. Singular, plural, quem sabe?

Suspiros.
Suspiros e saudades, no plural, porque saíam com aquela mesma distração de antes e olhares ainda recém-nascidos para a descoberta.
Eles não sabiam de nada, embora sentissem tudo. Eu, daqui do meu cantinho, tampouco sei. De mim, do alguém e deles. Mas acho tudo muito bonito, porque me soa vida, porque me soa amor. Porque me soa humano e verdadeiro.
Sem porquês.

(Minha versão para a história narrada em http://didoneante.blogspot.com/2008/10/reentrncias.html )

domingo, 11 de janeiro de 2009

Era una vez un soñador

(MFV, 2008)



Para Felipe,
por el documental que nos elegió y no lo hicimos


Era una vez un soñador, que caminaba por La Habana como si estuviera volando. En realidad, él volaba, volaba lejos, pero estaba siempre tan presente. Era él, simplemente era. No buscaba nada, la vida era quien lo buscaba a él.

Las chicas: sospiros.
Los chicos: compadre!
La ola del Malecón: qué onda?

Hubo una tarde en la cual habló de amor. Los ojos, los ojos estaban descubiertos y tristes. Había una frase no dicha que se perdió en el pecho una o otra vez. Una duda, una indecisión, el reconocimiento de un entonces?
Quien sabrá?

Tranquilo, flotaba por imágenes reales y otras ni tanto. Contaba sus segredos a la cámera, ni siempre sorda esa cámera, registrando mucho más que encenas de afuera. Era él propio ahí. Con o sin música. Con o sin papel higiénico. Con la rica pizza de Bejucal, sin el miedo del mundo. Siempre con la habitación de muñecos de su casa. Sin una cierta mezcla muy suave de angústia y añoranza que le apretaba la voz cuando estaba muy despierto. Preferia, a menudo, soñar.

Cierta vez, dijo que iba tomar un avión. Cargaba un diploma, una camisa blanca, lentes oscuras. El pelo llargo, un aire de broma casi queriendo salir.
Jamás fue visto.
Y ya no sé escuchó más notícias de él.

Pero cuando aún es madrugada y mis alas todavía tienen fuerza, desde arriba lo puedo identificar en tranvías que ya se perdieran en el tiempo, caminando despacio hacia rutas que lleban hasta donde, hasta el horizonte.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Muro em Belém, Cisjordânia (Palestina), construído pelo governo israelense. (foto, arte e tristeza: MFV)

P.S.: Ah, eu não sabia que os termos "holocausto", "genocídio" e "gueto" tinham copyright...

(do cartunista palestino Naj al-Ali, morto em 1987)

P.S. 2: ISAAC! IBRAHIM! Eu vou contar para Abraão!


labidumba

















(Ao som de Sérgio Pererê)

“Vive”, diz Nietzsche, “como se o dia tivesse chegado.”

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

*primeiro*de*ano*

(MFV, 09)


Eu me lembrei.

Me lembrei daquele dia na piscina, você de braços abertos, peito pedinte de abraço, eu sereia de tudo, misteriosa em meus sentimentos até para mim mesma. Água conduz corrente elétrica?

Me lembrei daquele dia na praça, sentemos para ver a tarde bonita, diante da igreja, feito cidade do interior. O banco verde reluzente e convidativo. E as bermudas de ambos manchadas com a tinta fresca. Tudo, na verdade, parecia fresco. E manchava, e borrava, e coloria as expectativas todas. Ah, verão. Ah, ano novo...

Me lembrei do caldinho de feijão que bebia enquanto você falava um monte de bobagens nas quais eu não estava interessada. Estava vidrada no mais desajeitado de você, que me parecia tão charmoso, só que você jamais se daria conta disso. “Puft, puft”, eu fazia, e você seguia falando. Como uma locomotiva velhota, nós dois, e nem éramos clowns.

Me lembrei de quando apareci de vestido vermelho e você só me disse: “Meu Deus!” Havia uma champanhe em sua mão, que ficou para depois. Usamos taças, eu me lembro, e não tecemos nenhuma consideração. Saúde! Hehehehe.

Me lembrei de que não foi nada de mais, mas que assim mesmo o ano que se seguiu foi muito bom. Como se tivéssemos, os dois, ligado um vaporizador de frescores e sabores em nossas vidas meio tortas, meio opacas. Porque nos abrimos ao improvável.

Alguém me desejou boas surpresas nesse-novo-ano-que-começa-agora e, bem por acaso, foi disso que me lembrei.


quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

VOLVER

Música: "Me Gusta", da Zélia Duncan

Obs: janeiro de 2009, claro...

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

POR VOCÊ, PALESTINA.

(MFV, 09)


Epifania primeira: limpeza intestinal


Não havia premissas expectativas lingüiças sentimentais
No instante primeiro da viagem primeira do início do começo
Logo na minha chegada já uma pré-partida


Um chamado, apenas um chamado
E um sim.


Então, sim.
Cheguei. Estou. Sou. Aqui.
Olhos encantados vibrados um quase deserto
Profetas de diferentes regiões e épocas buscaram seus desertos
Monges e sábios
Príncipes e heróis
Viajantes


Os verdadeiros viajantes também vão em busca de seus desertos.


Paisagens de tons claros no contraste com o céu azul
Nenhuma semelhança com a megalópole brasileira que se vê cosmopolita
– mas não sabe nem usar fita no cabelo, pena, não saber usar fita. Nem chita.


Meus olhos cativados paravam nas oliveiras
Na imensidão das oliveiras
Nas paragens secas porém úmidas de formigações espirituais e sentimentais


Vomitei no muro, muro feio, muro mau
Muro da discórdia arrogante inoperante do poder babado e equivocado
Ah, como podem se cegar de modo inexorável e intencional?
Impuseram às minhas oliveiras o limite desse muro.
Eles, do lado de lá, apontando armas, rindo sarcásticos.


Com minha língua provei o húmus da terra que já me pertence
Que pertence aos de cá, pertencia, pertencerá
Periferia, preferiria paz a aquecer meu chá
Respirei menta, hortelã no céu azul sem chuva, sem chuva
Folhas de uva torcendo grãos de arroz
E a doçura de um queijo coberto de grãos de milho tostados e açucarados
Ainda com voz


Nos olhos das gentes dos jovens das crianças
Brotam esperança e cílios longos longuíssimos longos cílios
Suavidades que respondem como petardos e pedras
Às agressões cotidianas
Essas agressões...
Umas barulhentas, soldadescas, tanques e mandatos
Outras silenciosas.
Secretas.
Cruéis e pontiagudas, checando em check-points tempo todo
Desviando rodovias porque decidiram assumir-se inimigos e instalar-se bem ali.
Onde famílias se reuniam nos momentos de lazer.

—Fazíamos piquenique no pé daquela montanha, mas hoje já não mais – diz moça menina mulher, 23 anos, filhinha, marido preso por sete meses, jornada de 6 horas de trabalho, quase pariu no meio da estrada porque não havia soldado no check-point infeliz que os infelizes precisaram criar para se sentirem felizes e poderosos. Porcos. Infames.

Desculpa, desculpa, essa raiva é minha, porque a deles é diferente. Me sinto ocupada, violentada, abusada por aquele governo mau, o do muro, lobo mau disfarçado de vovozinha recebendo dinheiro de lobbies poderosos internacionais. Lobo lobby lobotomizando loucuras.

Ora direis... agora você vê?

Governo mau como muitos governos maus
Quem somos nós para aceitar tudo isso?
Mas aceitamos!
Aceitamos, aceitamos, aceitamos e continuamos com os saltos altos
Nós! Sapos feios e grudentos exalando ideiazinhas banais de nossa vitória-menos-régia
Nós! Trapos altos destratando destrapados atrapados a gosmas e gozos falsos
Nós! A desfilar nossas dietas e nossos umbigos pelas ruas cosmopolitas das cosmopolicies mundiais.

É bom ser cego, dizem muitos. Os piores: os cegos intencionais.

E eu?
Não quis cegar-me.
Desertifiquei-me para fluir a aqualidade toda de meu ser sobre essa terra
Essa paisagem de oliveiras e sonhos e culpas e sangue e sal
Essa paisagem tão de todos nós

Sabores e pistaches e amêndoas e sons
E mesquitas e véus nas femininas cabeças e shukran
E chaves ainda nas mãos refugiadas dos senhores e das senhoras com suas memórias sensíveis sobre um tempo que se foi e não sabemos se voltará


Epifania segunda: arroto
(aos inocentes de Gaza)


― Não suportamos mais essa ocupação!

Os choros escoam junto com o sangue pelas ruas de estilhaços
Ruas de pedaços
Troços e traços de dignidade, de identidade, de corpos humanos
De roupas e de construções
Bueiros entupidos de tantas tripas
Tripas de gente e de acordos de paz e de cessar-fogo e de promessas
E de tantas, tantas promessas
O verme de dentro esfomeado e o lobo mau dono do muro mau
Em briga constante, em ódio constante, em baba constante.

Se essa rua, se essa rua fosse minha,
Eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas de afeto e liberdade
Só para ver você brilhar –
mas o choro e o sangue inundam os caminhos.
Não há mais caminhos.
Não há mais piedade.
Foi-se o tempo, foi-se, foram-se.

Entreguem-se à morte,
Pois essa terra prometeu-se aos vermes e aos lobos maus.
Entreguem-se à morte, pessoas de boa fé!

(aos jovens soldados de Israel, boa parte deles de boa fé)
A mão que acaricia é a mesma que mata
Quem mata também morre.
E morre sem carícias.


Epifania terceira: crucificação
(Epifania?)

Bum, catapum, ratatatá.
Explode, atira, o velho estira-se no chão.
Choros, choros, dor.

Por que, meu Deus, por que nos abandonaste?

(Silêncio sepulcral. Três horas da tarde ou qualquer hora do dia e da noite. O céu se abriu. Estrondos.)

E
Em fins de 2008
E início de 2009
O mundo assistiu – não mais estupefato, não mais chocado –
Ao holocausto do século 21.

No gira-gira de uma humanidade que ainda está presa na lei de tabelião,
Holocausto com holocausto se paga, mas desta vez em outro povo,
Como um jogo de batata quente.

Centenas de mortos.
Bum, catapum, ratatatá.
Não há mais choros de criança, não se escutam mais.

― Porque já não há mais crianças.




Num dia quente de afeto e ausente do tempo das coisas e dos homens falíveis e fálicos, num lugar livre das fronteiras e dos mapas, dos domínios e da apreensão humana falha, num dia iluminado de amor e pureza, as crianças da eternidade brincavam com as borboletas e com as estrelas. E eram felizes.

Cinzentos

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

PÁRA-QUEDISTAS



Ela queria pedir demissão, ir à China e perder-se por outros caminhos desconhecidos da Ásia.
Ele queria sair de casa, comprar um carro, experimentar o que jamais havia provado antes.
Ela tinha 32. Ele, 23.


Um dia, a cerveja que ele tinha pedido foi para ela. E o vinho dela foi parar na mesa dele. Assim se apresentaram, os dois.


Pularam de pára-quedas, pela primeira vez, juntos. Perderam-se por caminhos desconhecidos bem longe da China, aqui mesmo em São Paulo, onde moravam. Experimentaram novidades intensas e perigosas para ambos. Ela havia perdido recentemente a mãe. Ele, o pai. As ausências doíam especialmente nos domingos à tarde, quando ambos se fechavam no quarto dela, de mulher-separada-independente, e buscavam desesperadamente um outro tipo de amor. As diferenças gritavam quando tentavam se fechar no quarto dele, menino-que-ainda-mora-com-a-mãe, e ensaiavam planos para um futuro em comum. Em poucos meses, estraçalharam o mundo em que viviam, subiram e desabaram juntos várias vezes. E reaprenderam a gargalhar e a chorar copiosamente por vias às vezes prazerosas, às vezes dolorosas.


Ela segue no emprego, a China já virou país-destino de outro e às quintas pela manhã ela trilha uma rota bem conhecida: de seu apartamento até o consultório de sua terapeuta.
Ele segue na casa da mãe e dos irmãos, não tem ainda um carro e experimenta o que antes não conhecia: duas vezes por semana, vai a um psicólogo.


Ela, em alguns momentos, fica em dúvida entre ir à igreja rezar ou acender uma vela ao lado de um retratinho de família, sempre acompanhado por um vaso de violetas. Ele aprendeu a gostar de John Wayne, ídolo do pai, a despeito do desconhecimento cinematográfico de seus melhores amigos.

A foto do salto de pára-quedas, contudo, ficou no meio de um dos livros. Não se sabe se no quarto dela. Ou dele.