(2007, MF)
“Mas de repente tudo já não cabia mais só dentro dele; precisava de um acontecimento externo que justificasse toda aquela largueza de dentro. A coisa externa não acontecia. E, se acontecia, não justificava. Por que não se render ao avanço natural das coisas, sem procurar definições?”A Chave e a Porta, Caio Fernando Abreu
Caminhava distraidamente. Nem notara a faixa de pedestres, a buzina agressiva do carro apressado, o esbarrão proposital do rapaz engravatado. Seu pensamento era um caos de fragmentos de outros tantos pensamentos. A madrugada de domingo. A garrafa de vinho pela metade. O primeiro encontro. O encanto surgido não sei onde, não sei quando, no meio de tantos cacos de sentimentos. A palavra mágica: venha. Os dez reais emprestados para o táxi da volta. A colcha amontoada do lado da cama, esperando a ida à lavanderia. A camisinha vazia, a camisinha cheia. A camisinha não usada, a sensação do gozo em suas mãos – quente e urgente. A frase que terminava em vírgula. O olhar assustado. Seu próprio riso, envergonhado. O vento morno, o vento frio. A negativa, a confusão. Frases que agora terminavam em ponto final. O beijo de novo, beijo úmido. O toque dela, o arrepio dele.
Ah,
Outra faixa de pedestres. Sem buzinas, sem esbarrões. Uma multidão, mas ela se imaginava sozinha, como se encapsulada. Nada protegida, porém ao menos se encontrava vestida – vestida pela aceitação da ausência dele.
Ah,
Outra faixa de pedestres. Sem buzinas, sem esbarrões. Uma multidão, mas ela se imaginava sozinha, como se encapsulada. Nada protegida, porém ao menos se encontrava vestida – vestida pela aceitação da ausência dele.
Ah, aquele dia em que descobriram as coincidências todas. Ah, aquela noite em que se deu conta de que o desejava. Sonhou com ele, quase teve um orgasmo. Uma freada pudica brecou suas lembranças quase indecentes. Não podia ir rápido demais, nada acontecera. Nada? Beijo, abraço, sexo...? Nada? O que havia acontecido? Um irresponsabilidade consciente, ele dissera. E para ela? O tiro da roleta russa. Bala no coração. Ele nem se comovera com a metáfora. Tinha a namorada – finalmente a mulher idealizada! –, depois de tantas mudanças queria segurança, era mais visual que sentimental (isso significava que ela era feia?), onde foi parar a estabilidade. Saudade.
Suspirou. Todas as indagações inspiradas se transformaram em lamentos expirados. Sofrimento desse tipo precisa ter data de validade. Sonhou-se criadora, criativa: pois bem, novos personagens, novas paisagens, novos cenários, novos roteiros. Ele era prolixo, mas não falava mais com ela. Da última vez, balbuciara qualquer coisa como “você vai pegar o metrô?”. Ela mal escutara e já respondera que não. Ele estava cinza naquele dia. Sem viço. Não era o mesmo homem, não era possível. Parecia uma lâmpada prestes a queimar e sem nada a dizer. Ploft. No entanto, para os outros, para o mundo, seguia com seu blábláblá.
Ah,
Outro suspiro, outra faixa de pedestre não notada – a calçada parecia uma reta contínua, eterna, e ela, uma mancha colorida recém-saída de um quadro de Miró –, nada contra o blábláblá dele, ela até gostava de ouvi-lo falar às vezes, mas preferia quando ele deixava aflorar o lado nada teórico. Quando ele falava de si, quando ele contava suas histórias, quando ele respondia as perguntas dela. Uma delas ainda pairava no ar: você foi um menino tímido? Ela sabia a resposta. Só que ele se esqueceu de responder. Ou não quis. Há mais de uma semana usava um nick em que afirmava que os olhos de alguém iam ser atendidos. Não eram os dela. Certamente – ela inspirou uma melancolia alheia, que passava ali naquele exato momento, exalada não sabia de onde – não seriam os dela. Expirou, suspirou.
E foi quando olhou para frente e o viu. Ainda estava na mesma rua, já havia caminhado bastante, cruzado tantas travessas. E, alguns passos à frente, ele, surgido de modo inexplicável. Puxa. O coração não acelerou, pelo contrário; contraiu-se. E soltou uma batida tão forte, assim, encolhido, que ela olhou constrangida para o lado. O senhor de boné e as duas moças que acabaram de passar à sua esquerda a olharam, curiosos. O engravatado à direita não ouviu. Nem ele. Piscou – ele ainda estava lá? A calçada, a rua, as pessoas, os faróis, as faixas de pedestre, os carros, as fachadas – tudo se transformou num grande quadro vivo de Pollock. Beat, batida, coração, seus olhos sendo atendidos. Em vez de um sim, veio um não. Muito forte para acreditar. Que seus olhos sejam atendidos?! E ele ali? A pincelada mais forte, mais intensa, mais chamativa daquela grande tela de Pollock? E o que ela, mancha de Miró, fazia ali? Quem estava fora do lugar?
Era o acorde mais alto de uma música pop. Era a pelotinha de sal na salada feita às pressas. O nozinho de lã no cachecol tricotado pela avó. A espinha na testa. Aquele fragmento negro na película há séculos em cartaz. Quem estava fora do lugar, então? Ele na vida dela? Ela na vida dele? Danem-se essas buzinas todas, essa brecada ruidosa. Não vem que não tem. Não me impeçam! Agora não estava mais encapsulada, continuava desprotegida, ficara desnuda, corada, acelerada, sentimental.
Ele é visual, lembra? Ele não a viu.
Foi por um átimo. Motivos misteriosos fizeram com que ele voltasse a cabeça para trás, como se quisesse certificar que estava sendo seguido, como se buscasse algo esquecido para trás, num tempo não muito distante mas não mais presente. Havia manchas entre eles – de Van Gogh, de Monet, de Paul Klee – ah, aqueles passarinhos amarelos do quadrinho do Paul Klee –, de Gustav Klimt. Muitos quadros se cruzando ao mesmo tempo, como se os museus e galerias do mundo tivessem despejado tudo naquele pedacinho de planeta. Mas ela podia ser também uma personagem de Almodóvar, de um dos últimos filmes do Almodóvar, enquanto ele estava definitivamente num filme de Antonioni. Godard, talvez. Ela, no primeiro episódio de Three Times. Ele, no último. Não houve um segundo, foi um átimo. Entre eles, uma multidão de figurantes, de coadjuvantes, de fragmentos e de scripts, de novidades e de medos, de desejos e de blábláblás, de des – vários des.
Ela o perdeu de vista. Ele virou para frente novamente.
O mundo readquiriu suas feições de mundo. A calçada, a rua, as pessoas, as faixas de pedestre, os carros, os faróis, as fachadas.
Por um átimo, por um átimo.
Sentiu uma gota na bochecha. Estava chovendo? Outra gota, mais outra, uma multidão de gotas. Carregava uma nuvem nos olhos, era isso. Putz.
Quando finalmente virou a esquina, tocava uma música: Dance Me To The End Of Love, na voz de Madeleine Peyroux.
2 comentários:
Nossa
Não parece ter sido tímido na infância.
Talvez um pouco medroso de conhecer-se mais fundo. Daí a prolixidade nas camadas já conhecidas de si mesmo.
Ele era visual, se fosse auditivo teria te visto.
"Que os seus olhos sejam atendidos", significa: ilusão desfeita. "Ploft."
Não foi por um átimo.
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